Por: Milton Monteiro*
Racismo português: a discussão novamente veio à baila, só que desta vez com muito mais borbulho, pois ela ferveu também em Cabo Verde. O crime bárbaro cometido covardemente por quinze indivíduos em Bragança contra o jovem cabo-verdiano Luís Geovani foi a gota d’água.
Após duas semanas de silêncio, nem precisou um único culpado ser identificado ou detido para que a tardia cobertura e investigação iniciassem descartando a motivação racial. No entanto, o fogo já tinha sido atiçado nas redes sociais, pelos cabo-verdianos, portugueses e até políticos. Por exemplo, a deputada Joacine Katar cutucou: “a história de Giovani não é a história da juventude negra portuguesa, mas sim a história de cada um de nós, a história da sociedade portuguesa e da sua incapacidade de ver e sentir como iguais os negros e negras deste país ou que cá se estabelecem para estudar ou trabalhar”.
Já a advogada Suzana Garcia botou pra quebrar, merecendo voltar ao jardim de infância.
Em meio às indignações e incertezas dos motivos, a discussão ficou também recheada de clamores para que o caso fosse desvendado e resolvido com celeridade, presteza e imparcialidade, por parte das autoridades, que são alvos constantes de desconfianças e críticas quando a justiça é para negro. Isso acontece porque não faltam casos de tratamentos policiais discriminatórios e condenações injustas, inclusive envolvendo cabo-verdianos. Por exemplo, em 2018, o jovem Adilson Pereira, de 27 anos, foi acusado injustamente por assassinato e preso por engano, sem justificação e mandado. Já o outro cabo-verdiano, Éder Fortes, solto em 2010 após um indulto, esteve preso seis anos porque a Justiça o condenou erradamente pelo furto de um celular.
Ou seja, casos graves e notórios de racismo e discriminação, até na Justiça, são recorrentes em Portugal, mas pouco se debate e mal o problema é encarado. Joana Gorjão Henriques, quem botou a boca no trombone e foi galardoada com medalha de ouro, em 2018, pela sua obra “Racismo em Português: o lado esquecido do colonialismo”, explica: “magistrados e outros agentes do sistema judicial reconhecem que há duas justiças, uma para negros e outra para brancos”. Ainda, segundo ela, “há motivos raciais para que as taxas de encarceramento de pessoas com nacionalidades dos PALOP sejam 15 vezes superiores às dos portugueses: a discriminação que associa o negro ao criminoso condiciona quem prende, quem acusa e quem julga” (p.14). A professora Cristina Roldão corrobora dizendo que o racismo “acaba por penetrar no próprio funcionamento das instituições”.
No seio estudantil, o mar de rosas que é sonhado no país de origem é rapidamente desfeito ainda na Embaixada, quando pede visto, ou ao chegar em Portugal, quando procura imóvel para alugar e recebe um não da imobiliária ou do dono por motivo racial. Um estudo publicado ano passado sobre “o acolhimento de estudantes internacionais” mostra que é comum o “complexo da metrópole” nas universidades: professores pedindo para brasileiros e africanos falarem “o português”, o genuíno. “Volta para a sua terra, preto” é cantiga conhecida por qualquer imigrante, mesmo sendo cidadão.
Entender a questão do racismo em Portugal implica automaticamente em recuar no tempo e achar as raízes das nefastas heranças, o que não é difícil. Joana começa o livro dizendo “escrevi este livro por causa da minha revolta com a forma como os portugueses negros são tratados por portugueses brancos. Esta relação de invisibilidade. De silenciamento sistemático, de discriminação ativa da população negra em Portugal tem as suas raízes no processo da colonização e da escravatura” (p.9).
Se Portugal quer beber às margens das águas doces do passado, é também necessário sentar lá e encarar as turvas e não adoçar as amargas. A colonização mansa é um grande mito, mas a escravidão ligada a uma raça, a negra, e sua cor de pele, é uma invenção portuguesa, e a maior atrocidade humana. Foi para financiar principalmente a ambição dos descobrimentos e construir o império lusitano que 12 milhões de cativos, por quase quatro séculos, foram inferiorizados e transformados em mercadorias. Dom Henrique, segundo Stephen Bown, foi “o pioneiro e o patrono do negócio de cativos africanos”. Laurentino Gomes, na primeira obra da sua trilogia “Escravidão” conclui:
“A segunda característica que deferência a escravidão na América de todas as demais formas anteriores de cativeiro é o nascimento de uma ideologia racista, que passou a associar a cor da pele à condição de escravo. Segundo esse sistema de ideias, usado como justificativa para o comercio e a exploração do trabalho cativo africano, o negro seria naturalmente selvagem, bárbaro, preguiçoso, idólatra, de inteligência curta, canibal, promíscuo, só podendo ascender à plena humanidade pelo aprendizado na escravidão”; “sua vocação natural seria, portanto, o cativeiro, onde viveria sob a tutela dos brancos, podendo, dessa forma, alçar eventualmente um novo e mais avançado estágio civilizatório.” (p. 73).
Não foi este pensamento que se tinha quando, hábil e perversamente, se dividiu os africanos para reinar nas colônias, criando sistemas divisórios, como Lei do Indigenato de 1954, e acicatando guerras étnicas? A resposta da autora, que considera “um privilégio ter nascido com a cor de pele que ainda é a cor do poder” seria positiva (p.10). Para ela “o racismo é um sistema tentacular que afeta desde a funcionária da repartição de finanças que não quer tratar do assunto de uma pessoa negra até à educadora da escola que comenta o cabelo crespo da sua filha com um risinho” (p.10). Continua: “não sabemos quantos negros existem em Portugal. As diversas insistências da ONU e de associações de afrodescendentes no terreno para que o estado português recolha dados desagregados por raça não tiveram qualquer resposta. Receberam apenas silêncio ao longo de mais de dez anos. As instituições estatais que o poderiam fazer vedam o acesso a essa informação” (p.19).
Por mais que Portugal continua a negar o problema, a desconsiderar os alarmes, o racismo está no âmago da nação portuguesa e isso começa ainda nas escolas, onde são negadas às crianças uma parte da sua História: “Em Portugal reflete-se pouco sobre o papel dos portugueses enquanto colonizadores e, especialmente, sobre a responsabilidade no desiquilíbrio das relações raciais entre brancos e negros, bem como sobre a sua responsabilidade na criação e na persistência do racismo”. “Há motivos raciais para que as pessoas oriundas dos PALOP exerçam três vezes mais profissões poucas qualificadas e recebem menos. O estereótipo do negro apenas habilitado para profissões de baixa qualificação, incapaz de exercer determinados cargos e de assumir posições de liderança, condiciona quem coloca os seus currículos de lado, antes mesmo de os avaliar” (p.13). “A ideia de ser negro e ser português não faz parte do imaginário nacional” (p.11).
Tanto é glamouroso a glória quanto a verdade, reconciliação e reconstrução dos cacos. No mês passado, o presidente francês admitiu que o “colonialismo foi um erro profundo”. Em 2005, o então presidente do Brasil, ao visitar a Porta do Não Retorno na Ilha de Goreia, em Dacar, pediu perdão, simbolicamente, pela escravidão, atitude que o presidente português Marcelo Rebelo preferiu evitar ao também passar pelo local em 2017. Para Joana, “só tem medo de enfrentar um passado violento quem não quer corrigir o presente” (p.10). Ela pergunta “como é que, até hoje, nunca tenha existido um Museu da Escravatura em Portugal? “ (p.16).
Lilian Thuram, ao pronunciar em defesa de um jogador negro vítima de racismo, disse que “brancos pensam ser superiores e acreditam nisso, pois o racismo é uma construção de séculos e muito difícil de ser mudada”. Difícil, mas é possível. Por isso, como disse Ângela Davis, “não basta não ser racista, há que ser antirracista”.
O passado reatualiza no presente, ou seja, é Portugal um país racista? Responda você.
*Cabo-verdiano radicado no Brasil e professor universitário
Publicado na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 645, de 09 de Janeiro de 2020