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Colunistas

Entre silêncios e narrativas

Por: Natacha Magalhães

A questão não é saber se Cabral é ou não figura de Estado e a sua foto deve ou não estar em locais públicos.  A questão vital é outra: o que conhecemos da nossa Historia e que mensagem estamos a passar às novas gerações, com certas discussões? 

1. Disse alguém que, em Cabo Verde, basta se despoletar uma questão relacionada com a nossa História e o nosso passado para se ver como pensam os cabo-verdianos e qual a sua relação com a sua identidade. Eu usaria o ditado que diz que há males que vêm para o bem. O debate que se abriu em decorrência do post do deputado Emanuel Barbosa espelha bem tudo isso. Não me lembra a memória de se ter falado e debatido tanto sobre Amílcar Cabral quanto se fez por esses dias. Quase ninguém ficou de fora, nem mais velhos nem mais novos. Ouviu-se e leu-se de tudo. 

Mas polémicas à parte e quase tudo dito sobre a questão, não deixa de ser claro como água que a figura de Cabral, sendo incontornável, continua a causar fricções e até incómodos entre os cabo-verdianos. Ninguém se entende sobre esta figura e sobre que tratamento lhe dar. Cabral continua a ser uma espécie de assunto mal resolvido que, enquanto não for amplamente clarificado, continuará ad eternum a produzir discursos e declarações polémicas e a dividir os cabo-verdianos. Por outro lado, não deixa de impressionar a forma como esta figura desperta sentimentos bastante negativos, de ressentimento e até manifestações de profundo desprezo por tudo que fez, não apenas por Cabo Verde e Guine Bissau, mas pela Humanidade. Se não, como classificar um comentário, segundo o qual Cabral é o único culpado de não termos permanecido como colónia portuguesa, facto que faria de nós cidadãos portugueses, ainda que “de segunda”? 

A verdade é que o debate sobre se Cabral é ou não figura de Estado e se a sua foto deve ou não ser afixada em locais públicos serviu para desnudar o essencial. Permanece o profundo desconhecimento, por parte de uma significativa franja da sociedade, da nossa História e do nosso passado e, consequentemente de todo o processo que conduziu à independência do país bem como o papel desempenhado por Cabral e seus pares. O político cuja vida e pensamento são estudados em várias universidades do mundo, é, em Cabo Verde, mencionado ocasionalmente, entre coroas de flores, visitas ao seu memorial e discursos da ocasião. Pergunte-se à nova geração o que sabem de Cabral. Responderão tratar-se de um herói que lutou pela nossa independência. E mais nada. 

Aquilo que de mais importante nos legou, o seu pensamento e o que este representa enquanto referência para a nova geração, completamente desprovida de modelos, passa completamente ao lado. E como diria alguém, não vale nada erigir estátuas ou colocar sua fotografia em locais públicos, se não se ensinar o pensamento de Cabral nas escolas.  Isso sim, seria dignificá-lo.

Certo é que o desconhecimento e a ignorância são caminhos abertos para a desinformação, ruídos e narrativas duvidosas. Que se faça um julgamento sério e justo da figura de Amílcar Cabral. Mas com base nos factos. Feitos estes esclarecimentos é a partir daqui que poderá ser feita uma discussão sobre o homem, o pensador e o político. É hora de se colocar os pontos nos “is” e se clarificar tudo e, se preciso for desfazer mitos. Caso contrário, continuaremos a debater e a nos dividirmos sobre tudo quanto nos deve unir enquanto Nação. 

Todavia, no meio de tanto barulho, houve silêncios que não deveriam existir. Também aqui, tomaria de emprestado a frase que se atribui a Martin Luther King: “o que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons” Em tempos conturbados, onde o populismo ameaça fazer escola, esta frase é de um valor incalculável. 

2. O filósofo e sociólogo francês Jean Baudrillard defendeu a teoria de que vivemos numa era cujos símbolos têm mais peso e mais força do que a própria realidade. Segundo Baudrillard, esse fenómeno surgem os “simulacros”, que mais não são do que simulações malfeitas do real que, contraditoriamente, “são mais atraentes ao espectador do que o próprio objeto reproduzido”. A par dessa reflexão, junta-se uma outra. A de Joseph Goebbels, que diz que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade. Para os “espalhadores” dessas inverdades, pouco ou nada importa a verdade. Criam e vão alimentando uma representação da realidade, e, com o resguardo da imprensa – e não só-, que não se atenta nem desconstrói tais manobras, e das redes sociais, vão eternizando discursos e narrativas imbuídas de interesses outros. 

Uma das inverdades que vem fazendo escola é a de que a ilha de Santiago – não, sejamos mais claros, a cidade da Praia – sonega a todas as outras ilhas o direito de receber investimentos de vulto e, consequentemente, alavancarem as suas economias. Se uma narrativa fosse, Santiago seria a personagem vilã que tudo rouba e come e deixa os outros à míngua. Os santiaguenses seriam os maus e cruéis da novela que não permitem que os mocinhos aprendam a andar com seus próprios pés. Não! Não é verdade. Trata-se uma narrativa falaciosa que, claro está, começa a dar seus frutos. Vejamos. 

Sim, o Governo está na cidade da Praia, que é a capital do País. Onde mais estaria? Mas terá a dinâmica económica, social e cultural de Santiago e da Praia alguma coisa a ver com isso?  Que investimentos públicos de vulto receberam a capital e Santiago, nos últimos dez anos, e que tenham contribuído para melhorar significativamente a vida das populações do interior norte, a braços com uma séria crise de subsistência devido a falta de chuva? Que de tão significativo foi feito pelo Executivo que tenha transformado a cidade da Praia numa cidade culturalmente fulgurante, dinâmica, cosmopolita, de várias iniciativas económicas privadas? Que culpa tem a Praia de ter um governo local ativo, que cria condições para que a cidade seja atrativa em todas as suas dimensões? E que pecado tem Santiago se outras ilhas, particularmente aquelas onde tanto se investiu, não conseguem descolar ou resolver seus problemas estruturais? 

O debate é extenso e não há aqui, espaço para tal. Todavia, não nos passa despercebido um aspeto.  E mais uma vez, socorro-me duma expressão muito conhecida que diz que “quem não chora, não mama”. E há quem já percebeu que, com esse governo, basta chorar para mamar. São Vicente percebeu. E com tanto “choro”, a ilha com os melhores investimentos do país – estradas, porto, aeroporto, instalações sanitárias, parque industrial, entre outros – , recebe, até 2021, mais de 13 milhões de contos para requalificação urbana e ambiental, acessibilidades, habitação, água, turismo, TIC, saúde e segurança, sem falar do campus do mar e do oceanário, do parque tecnológico, das obras de asfaltagem de estradas, da requalificação de bairros e acessibilidades, e do recentemente anunciado projeto “outros bairros”, de  requalificação de bairros informais que terá a ilha como área de intervenção piloto. 

Em narrativas, os finais dependem daquilo que os seus autores quiserem. E dos silêncios de quem não se pronuncia. Afinal, se quem chora não mama, quem cala, consente.   

Publicado na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 610, de 09 de Maio de 2019

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