Por: Sipriano Fernandes
Hurricane Season – II
A crónica de uma desgraça anunciada
O facto de termos responsáveis políticos incompetentes e corruptos a governar a CMP não pode esconder nem suavizar a irresponsabilidade dos interesses americanos que estão a pactuar com edificações no Taiti.
Em Julho do ano passado escrevi, neste jornal, o primeiro texto desta série “Estação dos Furacões”.
Nesse documento eu alertava para a irresponsabilidade com que as autoridades que governam o país estavam a tratar a necessidade de a cidade da Praia estar preparada para fazer face à grande catástrofe que tem estado à espreita todos os anos para desabar sobre a nossa capital no dia em que chover a sério.
E incidi sobre determinadas situações de perigo que demandavam a atenção dessas autoridades, nomeadamente a limpeza da vala de recolha de águas pluviais que vai do Palácio do Governo até à ponte velha da Vila Nova e que, devido ao aumento da taxa de impermeabilização dos bairros de Achadinha, Eugénio Lima, Terra Branca, etc. demandava, para além da limpeza óbvia, um trabalho profundo de redimensionamento, pois deixou de ter capacidade para dar vazão ao caudal que para ela fluirá devido ao aumento dessa taxa de impermeabilização.
As entidades competentes (Governo central e CMP) fizeram ouvidos de mercador e ignoraram totalmente tal chamada de atenção. Não só essa vala continua cheia de lixo e incapaz de cumprir a sua função, como continuaram a colocar verbas importantes em obras de calcetamento e asfaltamento de mais áreas da cidade que, por mais importantes e necessárias que sejam, correm já o risco de se tornar mera cosmética, se a recolha das águas pluviais continuar a não merecer a atenção adequada.
Eis que entrámos de novo na época chuvosa e permanece a mesma atitude irresponsável das autoridades que têm por missão velar e zelar pela segurança da população da cidade.
O facto é que depois de tantos anos a chamar a atenção dos governantes desta cidade e do Governo central (tanto do PAICV como do MpD) para estes perigos tão óbvios – Frónta ê águ ku lumi! – estou cada vez mais convicto de que eles já decidiram que nunca mais vai chover neste país.
Só assim se percebe, por exemplo, a criação de um lote na ribeira de Lém-Ferreira, justamente no troço final, logo depois da confluência de três ribeiras. Esse lote, com cerca de 400m2, ao que fui informado pelo Vereador de Obras da CMP, teria sido criado para (pasme-se!) a Direcção Geral do Ambiente (DGA). Ele, aliás, quando o abordei, foi logo dizendo que esse era um assunto pacífico, “absolutamente correcto” no qual eu não devia me meter pois a própria DGA havia feito o estudo de impacto ambiental e concluído que tal lote não traria quaisquer problemas!
Como é que o Governo deste país e os responsáveis da CMP podem ser levados a sério e merecer o nosso respeito com tiradas como esta?
Então o Governo (através da DGA) e a CMP não sabem que ao reduzir o leito da ribeira com esse lote estão a tentar obrigar as águas de TRÊS ribeiras a passar por uma faixa de apenas 25-30 metros? Então são incapazes de ver que o que fizeram é apenas e só aumentar o risco de destruição de propriedades e, quiçá, vidas humanas de uma boa parte do bairro de Lém-Ferreira? Como é que podemos acreditar na competência e seriedade de uma DGA que, para conseguir um lote não hesita em criar um cenário mentiroso para torcer o óbvio e colocar em risco a vida e a propriedade das pessoas?
Tudo isto para dizer que é notória a irresponsabilidade dos sucessivos Governos centrais deste país e de todas as administrações da CMP até este momento, para a criação e consolidação de situações inaceitáveis, que vão compondo cada dia o quadro da desgraça anunciada.
Tomemos, por exemplo, os muros de correcção torrencial que foram construídos logo após a independência. Não somente a “gestão” urbanística que foi feita permitiu que se construisse em cima deles em muitos troços, como também nunca aconteceu um programa de manutenção básica dos mesmos. Hoje, em muitos pontos, basta correr a ponta dos dedos sobre eles para se constatar a sua degradação e o quanto eles se transformaram em bengala rendida. Os bairros da cidade da Praia que dependem desses muros para proteção no dia em que chover estão hoje sob a ameaça do chamado “levee effect”, a falsa segurança que surpreendeu muitos moradores do Mississipi Valley nos Estados Unidos, que confiaram em muros semelhantes que foram construídos para conter esse poderoso rio mas que acabaram por se revelar impotentes para suster as inundações.
E, por falar nos Estados Unidos, é de se lamentar a notícia dada pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros cabo-verdiano, há pouco tempo, em como haveria a intenção, da parte do Governo dos EUA, de investir cerca de 200 milhões de dólares na zona do Taiti, nos próximos anos.
Todos os cabo-verdianos sabem que desde há muito tempo tenho apoiado a luta titânica feita pelo Arquitecto Pedro Martins para que no Taiti seja criado um parque urbano e se impeça nele quaisquer construções. Quando respondi pela Ordem dos Arquitectos até 2010, esse foi um assunto recorrentemente colocado diante dos responsáveis pela gestão do território nacional tanto a nível central como local.
É incontestável que, do ponto de vista da economia urbana, com excepção de um parque, nada há que se possa permitir no Taiti que seja mais seguro, mais pagante e contribua mais para a valorização da capital e para a melhoria da qualidade de vida dos habitantes de uma cidade cuja “gestão” urbanística consumiu criminosamente todos os espaços verdes originalmente planeados para acontecer, entregando-os à especulação urbanística, sempre com muita corrupção como pano de fundo.
Sendo uma zona pantanosa com um nível freático extremamente elevado, cuja única vocação sensata é receber plantas, qualquer criança de cinco anos pode perceber que esse local se tornará uma “piscina” enorme no dia em que chover a sério e que não somente é péssima ideia construir ali, como também é criminoso que a CMP licencie construções nesse local.
Ora, o facto de termos responsáveis políticos incompetentes e corruptos a governar a CMP não pode esconder nem suavizar a irresponsabilidade dos interesses americanos que estão a pactuar com edificações no Taiti.
Por que razão os EUA estão a querer construir numa zona que pode ser severamente alagada, quando têm organizações tecnologicamente tão poderosas, como a USGS e a FEMA, que podem apresentar detalhadamente as razões por que não se deve construir ali? Se nos Estados Unidos a FEMA produz e mantém actualizado o mapeamento de áreas alagáveis a 10, 25, 50, 100 (e mais) anos em todo o território, sendo que o valor dos terrenos urbanizáveis é definido em função desse mapeamento, como é que nós os cabo-verdianos podemos compreender o Governo americano a querer enterrar 200 milhões de dólares no Taiti?
Porém, o mais grave é a notícia de que essa intenção de investimento americano vai obrigar ao deslocamento da Escola Secundária “Cónego Jacinto” justamente para dentro do Taiti! Isto necessariamente leva à suspeição de que os americanos, sabedores de que não devem construir no Taiti (pois não se pode acreditar que não tenham trazido discretamente a USGS ou a FEMA para fazer os estudos necessários), terão forçado(?) as autoridades cabo-verdianas a lhes entregar o terreno mais seguro dessa escola pública e deslocar esta para a zona mais perigosa…
É sabido que a cidade da Praia é uma bomba-relógio que pode explodir a qualquer momento se chover torrencialmente. Os Estados Unidos da América podiam, se quisessem de facto ajudar, mandar elaborar e manter actualizado o mapeamento das zonas de risco que abundam na capital cabo-verdiana e usar todo o seu poder de influência para obrigar os nossos governantes irresponsáveis e incompetentes a evitar tantas decisões que cada dia são tomadas temerariamente para colocar ainda mais gente em risco.
Há riscos demasiado óbvios em construir no Taiti para quem não é tão estúpido para negar as alterações climáticas. Estas já estão a ter consequências dramáticas em pequenos Estados insulares como Cabo Verde e, como é sabido, por um lado podem exacerbar situações de seca como a que estamos vivendo já vai para 3 anos e, por outro lado, podem fazer cair, em Cabo Verde, chuvas torrenciais em Março…
Perante tudo isto, entendo que é caso para deixar claro às autoridades americanas:
As a nation, we may well have shithole leaders. But Cabo Verde definitely IS NOT a shithole country!
Publicado no semanário A Nação, edição 626, de 29 de Agosto de 2019