Por: Emanuel Brito*
O Governo disse na Assembleia Nacional, pela voz inflamada de um dos seus membros, que ‘’nós ( entenda-se Cabo Verde) somos aliados dos Estados Unidos da América’’.
Uma aliança entre estados pode ser estabelecida informalmente. Uma vez que Cabo Verde e os Estados Unidos não assinaram um acordo que formalize uma aliança, há que admitir que possa existir uma aliança informal. Todavia, os EUA não anunciaram, por seu lado, que são ‘’aliados” de Cabo Verde; aludiram apenas a um acordo de defesa, em perspetiva. Pelo que, em substância, o que existe é uma declaração unilateral do Governo de Cabo Verde.
Em se tratando de uma aliança militar ( o tipo de aliança a que, provavelmente, se referia o membro do Governo, em pleno debate sobre o SOFA), é prática que ela seja formalizada através de um tratado diplomático, que deverá ser devidamente ratificado e publicado ( Título II, da Constituição). Ora, este tratado não existe. Assim sendo, quase que se poderá dizer que a ‘’aliança’’ subentendida na frase do membro do Governo em causa, só existe num plano meramente virtual.
Um “protectorado oferecido’”
O que, de facto, existe é a instalação gradual de uma base militar americana, na ilha do Sal. Na semana passada ficámos a saber, por fonte credível, que aviões, veículos e militares americanos vêm circulando livremente pela ilha, com acesso às instalações das forças armadas de Cabo Verde. Esta movimentação tem cobertura legal no SOFA (em vários dos seus artigos), na variante que um comandante-adjunto do US AFRICOM classificaria de ‘’instalações temporárias’’ (‘’Diário de Notícias’’, versão online, artigo de 04 de Maio de 2018), não obstante configurar uma violação clara da Constituição de Cabo Verde ( Artigo XI, número 4).
O que também já existe, de facto, é a impunidade de militares americanos, em solo cabo-verdiano, também, nos termos do SOFA. Facto evidente em Outubro de 2019, quando um militar americano foi detido pela Polícia Nacional pela prática de três crimes de ofensa à integridade física, contra funcionários de um hotel no Sal, foi apresentado ao ministério público e imediatamente libertado (segundo se argumentou, ‘’nos termos do SOFA’’).
Os factos sugerem, deste modo, que, contornando a Constituição da República, o Governo de Cabo Verde vem transformando o país num protectorado aos Estados Unidos da América. Mas um ‘’protectorado oferecido’’ : não negociado, formalmente, não aprovado pelas instâncias competentes e sequer objecto de avaliação cabal, sobre o interesse da outra parte.
Na verdade, os EUA têm dedicado pouca atenção a Cabo Verde ( se excluirmos o caso ‘’Álex Saab’’), defraudando expectativas do Governo, que remontam a 2017, altura em que se assinou o SOFA.
Cabo Verde vem sendo rejeitado, sucessivamente, na luta por um terceiro pacote da Millenium Challenge Account: em Dezembro de 2018 e, de novo, em Dezembro de 2019. Depois do SOFA ter sido publicado ( Agosto de 2018), Cabo Verde esteve sem embaixador dos EUA durante doze meses ( Setembro de 2018, Setembro de 2019), numa delonga jamais vista, que pode evidenciar ‘’perda de valor estratégico’’ de Cabo Verde, para os EUA ( nomeadamente, em comparação com o Senegal, que lhes ofereceu uma base militar em 2016).
Nesta linha, importa igualmente registar que o SOFA foi assinado em Setembro de 2017, mas só foi publicado em Agosto de 2018. Uma demora injustificável, vinda de um país que se declara, solenemente, ‘’aliado’’ dos EUA. Por outro lado, o SOFA foi motivo, no plano político interno, para dois pedidos de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade, criando-se, por essa via, um ambiente de incerteza sobre o acordo.
Acresce que o ‘’princípio de negócio’’ para a construção de novas instalações da Embaixada dos Estados na Praia parece estar em causa. As obras deveriam começar após a construção de novas instalações para o Liceu da Várzea, (em dois anos, de 2019 a 2021) numa zona, em que, afinal, contrariando as informações do Governo, está sendo erguido, nesta data, um imponente templo da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.
“Não é crível que a sociedade cabo-verdiana esteja disposta a aceitar uma mudança tão profunda, no estatuto de que o país vem gozando, entre as Nações. São décadas e décadas de exercício de um ‘’soft power’’ geopolítico, com base na diversificação de parcerias (e na construção de um capital de credibilidade) que, muito dificilmente, poderão ser desvalorizadas com declarações unilaterais, de aliança e negociações de soberania, à margem da Constituição da República”
Uma ‘’inovação insólita’’
Em boa verdade, entende-se porque o atual Governo quer que Cabo Verde seja uma espécie de ‘’estado associado ‘’ dos Estados Unidos. O Governo anterior assinou uma parceria especial com a União Europeia, em 2008, que nunca se aproximou da fórmula ‘’everything but membership’’ ( isto é, a melhor das hipóteses ‘’livre circulação para o passaporte cabo-verdiano’’, estava, à data das legislativas de 2016, ainda bastante distante, apesar de alguns avanços, no plano bilateral). Conclui-se que o atual Governo considera possível inovar, fazer melhor, ou seja, obter um estatuto igual ou superior ao de… Porto Rico.
Mas entre ‘’parceiro especial da União europeia’’ e ‘‘protectorado americano’’ há, por um lado, diferenças importantes, conducentes, na sua essência, a um Cabo Verde na periferia da Europa, mas incólume na sua dignidade e de acesso facilitado, à União Europeia ( com ou sem ‘’brexit’’) ; e, por outro lado, cenários muito prejudiciais para Cabo Verde, sendo um deles, o país passar a ser um micro-estado, ainda mais insignificante, absolutamente submisso aos interesses estratégicos da superpotência mundial, com os riscos de segurança (leia-se: terrorismo jihadista) e as limitações de relacionamento externo, daí decorrentes.
A propósito de ‘’relacionamento externo’’ fica por compreender como é que um governo cabo-verdiano acaba por inviabilizar, com uma declaração unilateral, de aliança informal com os EUA, uma parceria tri-partida para a Guarda Costeira, perfeitamente inovadora (Cabo Verde, Luxemburgo, Portugal) , esboçada num plano irrealista, é certo (com navio polivalente logístico, fragatas, patrulheiros, aviões, helicópteros, etc.), mas muito promissor, sem dúvida. Inviabiliza-se uma excelente oportunidade, que há décadas vinha sendo procurada, por governos anteriores.
Cabo Verde, um protectorado americano? Não é crível que a sociedade cabo-verdiana esteja disposta a aceitar uma mudança tão profunda, no estatuto de que o país vem gozando, entre as Nações. São décadas e décadas de exercício de um ‘’soft power’’ geopolítico, com base na diversificação de parcerias (e na construção de um capital de credibilidade) que, muito dificilmente, poderão ser desvalorizadas com declarações unilaterais, de aliança e negociações de soberania, à margem da Constituição da República.
Ainda por alguns anos, esta declaração inflamada do actual Governo irá causar estragos à imagem de Cabo Verde. Mas virá o dia em que não passará de mais um simples ‘’fait-divers’’.
*Tenente-Coronel