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Cabo Verde e a recessão de 2009: Estabilização cíclica e a sua relação com o crescimento e o desemprego

Por: Sandeney Fernandes

Em democracias com ciclos político-partidários reduzidos, os governos tendem a não contar com experiências governativas prévias de estabilização de desequilíbrios provocados por choques recessivos. Acresce ainda que, segundo os episódios históricos a volta das crises, as economias em desenvolvimento tendem a estar menos bem preparadas para empreender políticas orçamentais contra cíclicas. São factos que tornam o desafio de liderança ainda maior pela necessidade imperativa de, no tempo útil, assumir o que se está a passar. Igualmente, explicar como é que, provavelmente, será o comportamento evolutivo da crise, as consequências e os impactos na economia quanto à amplitude e persistência. Certamente implica conhecer por que canais se transmitem os efeitos e quem poderá ser mais afetado no campo microeconómico pelas suas exposições e vulnerabilidades. Com isso para, essencialmente, procurar suavizar as amargas dificuldades acrescidas a todos os agentes económicos que sempre acompanham uma crise. Embora o seu diferencial de origem, a sua transmissão no campo macroeconómico e as suas derivações microeconómicas tendem a apresentar padrões quanto aos canais pelo qual os choques afetam cada país em função das suas estruturas e configurações económicas. 

Assim, uma vez que cada facto precedente é uma história registada que, geralmente, apresenta insights que não devem ser desperdiçadas, torna-se profícuo analisar e compreender as dinâmicas recessivas. De um ponto, olhando para as características cíclicas pré e pós-crise ao nível da flutuação do PIB e das suas componentes. De um outro, como é que as políticas de estabilização cíclica podem impactar a dívida pública, o crescimento e o desemprego.

   

A última recessão registada em Cabo Verde teve como fonte de choque a crise financeira global que se iniciou em 2007 nos EUA pela combinação de vários fatores. Destaca-se, por exemplo, as dificuldades a volta do Lehman Brothers que veio a declarar falência no ano seguinte. Como sempre, muitas razões foram apontadas por ilustres como Reinhart e Rogoff que suportaram a celebre frase “This time is different”. Houve ainda espaço para previsões por parte do Roubini e Setser de que dar-se-ia um agravamento e colapso económico mundial, bem como argumentos e questões de peso como “Is this the Wile E. Coyote Moment?” por parte do Krugman. 

Apesar disso, a assunção daquela crise e dos seus efeitos não foi propriamente no tempo útil. Mesmo face às evidentes vulnerabilidades, à alta exposição e, subsequentemente, aos sinais de uma dinâmica económica em desaceleração que já tinha atingido o pico cíclico do PIB real em 2006, o Governo de então apresentava-se com discursos de que a economia cabo-verdiana estava imune à crise internacional. Talvez seja pelos motivos supra expostos e/ou por não relevância merecida aos estudos de ciclos na dimensão que permitira monitorizá-los, detetar turnig points e assim efetuar previsões consistentes da evolução do comportamento futuro da economia como forma de se preparar para todas as exigentes fases de estabilização cíclica quando fora necessário. 

Sem que sejam alguma novidade no campo técnico, exercícios propostos por Burns e Mitchell em 1946 e depois com vários desenvolvimentos têm vindo a permitir, por exemplo, ao NBER (National Bureau of Economic Research) fazer profundos e rigorosos estudos de acompanhamento do comportamento cíclico pela identificação de turning points na economia dos EUA. Assim, da mesma forma, permitem aqui evidenciar os resultados que se podem ver nos gráficos 1 e 2 dados pelo Diagrama de Diagrama de Burns-Mitchell para o PIB real trimestral da economia cabo-verdiana face, por exemplo, ao PIB real do sector terciário.

A análise aos dados trimestrais publicados pelo BCV evidencia um pico do PIB real no 3º trimestre de 2008, cuja taxa de variação homóloga foi de 13,6% correspondente a uma riqueza de 33 bilhões de CVE face aos seis trimestres precedentes. De seguida, deu-se início aquilo que podemos chamar de dinâmicas ao longo do lado recessivo do ciclo económico, tendo o crescimento homólogo sido de apenas 0,8% (-12,8 p.p.) no 4º trimestre de 2008. Com isso, verificou-se uma perda real de 453 milhões de CVE face ao pico, ano em que a economia cresceu 6,7%, mas ainda assim -2,7 p.p. face ao pico anual registado em 2006. Após cinco trimestres consecutivos face ao pico e com um crescimento praticamente nulo nos dois primeiros trimestres de 2009, atingiu-se um mínimo de 31,7 bilhões de CVE no 4º trimestre de 2009 (Cf. gráfico 2). As dinâmicas para aquele mínimo foram marcadas, sobretudo, por uma performance de -3,1% e -2,8% no 3º e 4º trimestre, respetivamente, configurando-se naquilo que se denomina de uma recessão económica que veio a ficar registada por uma performance anual de -1,3%. O PIB real recuou para o nível igual ao de 2º trimestre de 2008, traduzindo-se numa perda da riqueza real de 1,4 bilhões de CVE face ao pico, ou seja, -6 trimestres de produção.

A crise financeira do subprime, para além dos sinais que o mundo vinha dando desde 2007 como vantagens para, por exemplo, se fazer como o NBER e, em sequência, se preparar, deu oportunidades para países como Cabo Verde. Pois, do seu anúncio em 2007 desenrolou-se até a explosão do boom, afetou a Europa pela dimensão ao nível da crescente ligação entre os mercados financeiros, abertura da balança de capitais e conexões transfronteiriças, tendo apresentado um comportamento temporal desfasado. Obviamente, pelas relações da economia cabo-verdiana com o mundo, sobretudo, com a Europa a nível do comércio, do turismo, do IDE e das remessas e ajudas, o contágio era inevitável. Haviam sinais de alerta quando se olha para as vulnerabilidades e para o comportamento de algumas variáveis pró e contra cíclica. Por exemplo, para o comportamento do PIB real do sector terciário pela sua alta correlação e pelo peso do VAB na riqueza cabo-verdiana, da taxa de inflação, da massa monetária, da balança corrente, do IDE e das remessas de emigrantes. 

Uma outra vantagem prende-se com a conclusão a que se chegou no artigo de opinião publicado no jornal A Nação nº663. Verificou-se que o país apresentava um baixo grau de risco para a estabilidade macroeconómica e uma boa margem de manobra para a utilização de instrumentos de estabilização cíclica. Com essas condições necessárias, mas não suficientes, bem como diante de uma crise com desfasagem, era preciso a sua assunção com frontalidade, lealdade para com os demais agentes económicos e consciência de que fazer face àquele choque exógeno com o fito de suavizar os seus impactos, as ações deviam ser no tempo útil. Isto porque, fala-se de estabilização anti cíclica quando se ocorra ao longo da transição do lado recessivo do ciclo até ao ponto mínimo e de seguida, para o outro lado expansionista. Quando assim é, ela tem um papel de grande mais-valia naquilo que será, de facto, o comportamento das variáveis macro quanto ao retorno, sem elevada persistência, às suas tendências de longo prazo.

Contudo, o processo de estabilização em Cabo Verde começou deveras tarde. Em 2008 não se assumiu a crise, ano em que as variações das contribuições para o crescimento económico de todas as componentes da procura agregada foram negativas, com destaque para as dos investimentos e das exportações na ordem dos 11,5 p.p. e 13,6 p.p., respetivamente. Essa não assunção está patente na proposta do OE para 2009, de setembro de 2008, onde quanto às perspetivas para 2009 não se fez nenhuma referência aos impactos da crise. Quanto ao crescimento económico lê-se “irá situar-se no intervalo de [6%; 7%]” que, no entanto, veio a ser uma recessão de -1,3%. Por outro lado, o próprio programa de investimento público tido como a solução para o crescimento ficou nos 16,8% do PIB em 2009, ano que, segundo as contas nacionais publicadas pelo INE, a FBCF pública apresentou uma variação negativa de 4%.

Com a tomada de consciência, já na proposta do OE para 2010, de setembro de 2009, multiplicaram-se as referências aos impactos da crise na economia nacional. Para fazer face, as políticas económicas adotadas foram, essencialmente, a volta do programa de investimento público na linha do que já vinha do DECRP 2008-2011, contrariando assim as recomendações do FMI na altura. O nível de investimento público previsto para 2010 passou para cerca de 20,1% do PIB correspondente a 31 bilhões de CVE, tendo cerca de 64% sido para o eixo de infraestruturação. Nesse ano, os dados do INE evidenciam uma taxa de variação de 65%.

“Cabo Verde como país independente presenciou a ocorrência de quatro recessões globais, sendo em 1975, 1982, 1991 e 2009. (…)Verifica-se a existência quatro breakpoints que marcam a história de crescimento económico de Cabo Verde, sendo em 1978, 1990, 2000 e 2009.”

Contudo, o crescimento anual médio de investimento bruto caiu drasticamente para -0,02% no período pós-2009, que é largamente inferior ao nível verificado para a maioria dos anos 2000. Segundo os estudos do Banco Mundial, aquela queda justifica-se pela diminuição acentuada nas taxas de crescimento de investimento público e privado. Pois, a pressão sobre as finanças públicas colocada por aquele tipo de investimento público e por algumas empresas públicas deficitárias como a Electra e a TACV, que o Estado previa privatizar naquela altura, levou a Economist Intelligence Unit a escrever, em 2014, que são empresas que ameaçavam a sustentabilidade da dívida pública e debilitavam a performance económica do país.

Com uma economia perante os quatros pontos que se fez referência no outro artigo de opinião como fontes que colocam o país num patamar de elevado nível de vulnerabilidades, com destaque para o modelo de oferta e procura ancorado no turismo, não é novidade que o setor comportara pouca diversificação quando se olha, sobretudo, para o produto turístico e os seus players. A combinação dos fatores e o modelo vigente fazem com que os seus impactos sejam muito baixo do ponto de vista dos fluxos de capitais, dos gastos médios por turista e, sobretudo, pela interação com os outros sectores. Por exemplo, os sectores da agricultura e pesca que vêm registando uma dinâmica descrente do VAB para o PIB apresentam uma correlação negativa com o sector do turismo. Eles têm sido incapazes de, pela sinergia e pelo efeito multiplicador potencial do turismo, contribuírem para a diminuição do gap entre o produto e o seu potencial, bem como para a geração de mais emprego e rendimento.

Sem que se queira dizer que o sector do turismo não devera continuar como um master driver, entende-se que o pensamento económico que esteve subjacente às medidas de política estribadas no investimento público para o combate aos efeitos da crise financeira global representou uma oportunidade perdida. Como qualquer crise, representava um momento para a análise, avaliação do estado da arte face à visão estratégica reavaliada e, subsequente, reposicionamento das bases do crescimento que permitira sustentabilidade e mitigação das vulnerabilidades e riscos. 

Pelas estruturas e configurações das bases que têm suportado as dinâmicas económicas, o lado da procura agregada tende a ser um elemento padrão quanto ao canal pelo qual os choques exógenos afetam a economia cabo-verdiana. Apesar disso, tendo em atenção que a economia por si só dispõe de estabilizadores automáticos, o posicionamento para a mitigação das vulnerabilidades e riscos através de políticas de estabilização e de relançamento devera ser do lado da oferta, onde o Estado deva ter um papel impulsionador à economia de mercado. Por conseguinte, acompanhado de reformas estruturais que permitam, por exemplo, o crescimento da produtividade total dos fatores e a redução dos custos de contexto, a premiação devera ser para as empresas e para o investimento privado. Isto como forma de alavancar o setor privado onde de facto se cria emprego e riqueza com impacto na melhoria da balança comercial. Por fim, pela produtividade que se remunera os capitais às famílias e às empresas, dar-se-ia espaço para que sejam estas a impulsionarem a procura agregada nacional pela via do consumo/lazer e reinvestimento, diminuindo assim as margens para que o estado das finanças públicas entrara num ciclo espiral de desequilíbrios.

A premiação da estabilização através de investimentos públicos não deixou de ser a manutenção do status quo. Isto, sobretudo, pela via obras que padecem de alguns males quando são em economias insulares de pequena dimensão como Cabo Verde. Pois, o custo de investimentos em infraestruturas, estes que, por vezes, relevam ser ineficientes e não rentáveis, pode ter impactos macroeconómicos severos. Por um lado, a implementação das obras por fatores exógenos em conjugação com o financiamento externo cria duplo fluxo de capitais para o exterior como remuneração e reembolso daqueles fatores. Por outro, elementos de várias ordens a volta da gestão tendem a criar necessidades de meios não programados, com efeitos sobre o défice e a dívida pública.

Diante desses factos, a dita política de estabilização para fazer face à crise financeira global além de não contribuir para a mitigação das vulnerabilidades, deu lugar a grandes desequilíbrios macroeconómicos. Com isso, fez-se com que, diante de um défice orçamental médio da volta dos 8,1% do PIB, a dívida pública cabo-verdiana tenha atingido os 200 bilhões de CVE em finais de 2015. Representou um aumento de 115 bilhões de CVE face aos registos de 2009 conforme a Conta Geral do Estado. Não sendo, do ponto de vista absoluto, algo a temer per si, quando se olha na sua relação com a riqueza gerada, a situação tornou-se alarmante. Pois, diante de um crescimento médio a volta de 11,3 p.p., a economia nacional, pese embora as previsões do Governo que sempre apontavam para um crescimento elevado, não passou de um valor médio de apenas 1% ao longo daquele horizonte e com alguma volatilidade (Cf. gráfico 3). Trata-se de uma performance bastante aquém da que teve os SIDS como Mauritius e Seychelles que registaram um crescimento médio a volta de 5% no pós-crise. Aquela dinâmica, fez-se com que o rácio da dívida cabo-verdiana tenha atingido os 127,8% do PIB, representando um aumento de 67,7 p.p. face aos registos de 2009 (Cf. gráfico 3 – variação anual no 4º trimestre em p.p.). 

     

Mesmo no setor do turismo, aquelas políticas não contribuíram para a reinvenção do modelo vigente a fim da tão necessária diversificação e nem para a criação de cadeias de valor endógenas como forma de reduzir a dependência externa quando se olha para o mercado de abastecimento. A agricultura e a pesca continuaram com as suas tendências decrescentes, com pouquíssimo valor agregado, sem resiliência e mantendo as suas correlações negativas com o turismo. Da mesma forma, não impulsionaram a manutenção da competitividade, tendo as receitas por chegadas diminuído e ficado abaixo em comparação com as dos pequenos estados insulares do Pacífico e das Caraíbas que se mantiveram no mesmo nível. Isto porque, aquelas políticas não fizeram com que o crescimento das entradas de turistas tenha voltado à sua tendência pré-crise. Verificou-se uma diminuição da taxa de crescimento médio anual de dormidas. Igualmente, de estabelecimentos, de camas e de pessoal ao serviço. A dinâmica do número de pessoas ao serviço das empresas foi praticamente nula, tendo a taxa média sido de 0,3%. É um indicador em como a estabilização implementada não foi um impulsionador à economia de mercado e não teve qualquer impacto no fortalecimento do setor privado para que assim as empresas pudessem criar mais emprego e gerar mais rendimento.

O desemprego é uma variável anti cíclica dada pela lei de Okun. Contudo, o efeito da crise do subprime em cabo verde só começou a produzir efeitos negativos no mercado de trabalho a partir de 2011, ano em que se verificou a inversão da dinâmica negativa que a taxa de desemprego vinha registando (Cf. gráfico 4). Ou seja, pese embora se tenha verificado uma tremenda desaceleração da economia a partir do pico do PIB no 3ºT de 2008 até ao vale no 4ºT de 2009, a taxa de desemprego continuou a sua trajetória decrescente até 2010. Isto mostra um comportamento desfasado de um ano face ao vale da crise, para começar a registar aumento, dando assim margem de manobra e uma nova oportunidade. Apesar disso, as políticas de estimulo económico não foram capazes de gerar crescimento suficiente para manter o emprego. Pois, a taxa de desemprego aumentou para 12,2% em 2011 e manteve-se acima desse valor por 5 anos consecutivos até voltar a cifrar nos 12,2% em 2017 e 2018. Pelo caminho chegou-se aos máximos de 16,8%, 16,4% e 15,8% em 2012, 2013 e 2014, respetivamente.

Face ao exposto, conclui-se deixando aqui um lembrete a volta da proposição Ricardo-Barro. Na verdade, devido aos timings rígidos que, geralmente, as autoridades estão sujeitas nos processos de diagnóstico, decisão, aprovação e implementação, no limite uma política de estabilização anti cíclica pode gerar efeitos só quando ou mesmo após a economia estiver já em recessão. Com isso, sem qualquer efeito sobre o produto e as demais variáveis macroeconómicas, acabando muitas vezes por agravar a situação ao nível do défice, da dívida, do crescimento, do desemprego e, subsequentemente, do risco para a estabilidade macroeconómica. 

Pois, de um baixo grau de risco precedente à crise financeira global, as analises de sustentabilidade da dívida realizadas pelo FMI e Banco Mundial no final de 2015 indicaram que se passou para um alto grau de risco.

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