PUB

Convidados

Assalto ao navio Pérola de Oceano foi há 50 anos

Por: Bruno  Spencer

Foi no dia 19 de Agosto de 1970 que se deu o assalto ao Navio Pérola de Oceano, uma  embarcação que pertencia ao armador conhecido por Antoninho Bernabé e que fazia as ligações Praia-Fogo-Brava-Praia.

A minha ligação pessoal com Pérola de Oceano deve-se ao facto do meu pai, António Spencer, ter sido tripulante desta embarcação na função de cozinheiro. Ele trabalhou até o momento em que Pérola deixou de fazer viagens entre as ilhas.

Tudo o que vou contar neste artigo sobre Pérola de Oceano é o resultado do relato que o meu pai me fez pessoalmente e, ainda, das conversas que tive com outros tripulantes da referida embarcação e do diálogo que encetei com algumas pessoas que conhecem a história do assalto. 

No dia 19 de Agosto de 1970, um grupo de pessoas, na sua maioria homens de Santa Catarina de Santiago, comandado por um Senhor de nome, José dos Reis Borges (JRB), assaltou o navio quando este zarpava da Praia rumo  à ilha do Fogo.

Normalmente, o navio saía sempre à noite, depois de tomar carga e passageiro. Nesse dia 19 de Agosto, JRB e seus companheiros chegaram cedo ao navio com bilhetes de viagem para destinos diferentes, sendo uns para Brava e outros para Fogo. 

JRB travou conversa com o meu velho e, nisso, passou a saber que era cozinheiro do navio. Por ter dito que tinha famílias no Fogo, o meu pai indicou-lhe o Contramestre, de nome Morgado, que, por sinal, era do Fogo.

Por sua vez, o Contramestre confirmou que conhecia familiares de JRB na referida Ilha. Antes, porém, JRB já tinha falado com um tripulante de nome Manuel da Ilha Brava, prometendo-lhe trabalho, dizendo que ia abrir uma grande empresa nessa ilha.

O assalto deu-se depois do navio ter ultrapassado o farol da Praia

O navio saiu do Porto da Praia e o Capitão, de nome Aníbal, fez toda manobra de saída e entregou o comando do leme a um tripulante de nome Nhonho.

Já era noite quando Nho Maninho, um tripulante cujo trabalho era cuidar dos passageiros, viu JRB e seu grupo por cima do compartimento do camarote dos passageiros a mudarem do traje civil para militar. Admirado com o que viu, confidenciou ao Nhonho o que tinha visto.

Uma vez que o seu trabalho exigia que estivesse em constante movimento, Nho Maninho foi ver, outra vez, os referidos passageiros, acabando por encontar a  morte, de que falo mais adiante.

Todos fardados, os integrantes do grupo dirigiram-se, primeiro, ao Nhonho, tendo um dos elementos lhe apontado uma arma ao ouvido, enquando JRB pedia-lhe que mudasse a rota do navio para Dakar, Senegal.

Amedrontado, Nhonho disse que não era Capitão, pelo que foi chamado o Capitão que acabou por desviar o navio da rota do Fogo para Dakar,.

Depois, JRB e o seu grupo quiseram saber onde ficavam as instalações de comunicação que se situavam no camarote do armador Antoninho Bernabé.

Chegados ao referido camarote, apontaram uma arma ao armador, pelo que este gritou com espanto: “Vocês matam um homem a sangue frio?”, ao que JRB respondeu: “Queremos levar o navio a Dakar”. O armador respondeu que podia fazê-lo mas alertou que o combustível e alimentação não davam para chegar a esse destino.

Da conversa havida, JRB acabou por decidir que o navio iria rumo à zona de Rincão para fazer o aprovisionamento dos produtos necessários para a viagem até Dakar. Antes,  tiraram o armador do seu camarote e desligaram os fios para que não houvesse nenhuma comunicação com exterior.   

Chegada a Rincão: água usada como estratagema para libertar o navio

Tendo a embarcação nas suas mãos, JRB decidiu reunir com todos os tripulantes. O meu pai que estava deitado, ouviu alguém a dizer: “Todos os tripulantes para cima”. Ele vestiu-se, saiu e quando viu homens fardados, interrogou a si mesmo “O que está passar connosco?”. Algumas frases ditas por JRB que ficaram gravadas na memória do meu pai até à sua morte:

“Não vim aqui para fazer mal a ninguém. Estou a fazer um trabalho de Amílcar Cabral. Vou levar-vos para outro local, onde não vão comer cachupa, etc”.

Terminada a reunião, os tripulantes que não estavam de serviço regressaram aos seus camarotes. O sono desapareceu dos olhos do meu velho só de pensar na família que tinha deixado.

Depois de o navio estar ancorado no Porto de Rincão, JRB desembarcou, tendo utilizado uma motorizada de um dos passageiro para se deslocar. 

Uma vez que JRB demorava em regressar, o sobrinho da esposa dele, de nome João, que também pertencia ao grupo de assaltantes, fez-se à terra à procura de  JRB.

 

“A minha ligação pessoal com Pérola de Oceano deve-se ao facto do meu pai, António Spencer, ter sido tripulante desta embarcação na função de cozinheiro. Ele trabalhou até o momento em que Pérola deixou de fazer viagens entre as ilhas.

Nos documentos que pude ler, diz-se que o objectivo de José dos Reis Borges, em conluio com a PIDE, era desmantelar a organização clandestina do PAIGC em Cabo Verde. Por outro lado, também se refere que o plano não se cingia apenas a Cabo Verde mas também chegar à Guiné Conakry onde estava a sede do PAIGC.

Face á diversidade de versões sobre a história desse assalto fica claro que esse acontecimento merece uma pesquisa mais exaustiva, nomeadamente através do Arquivo Nacional da Torre Tombo em Portugal que, conforme um amigo meu, dispõe de muita documentação sobre Pérola de Oceano. Fica pois o meu desejo de que um dia tudo seja esclarecido.”

 

Foi então que os tripulantes, ao constatarem que o número de assaltantes estava a diminuir, utilizaram ardilosamente a água como estratagema para libertar o navio. Assim, o Contramestre mandou esvaziar no tanque os barris que continham água e, acto seguido, disse ao responsável do grupo de assaltantes que já não havia água e que era necessário mandar dois tripulantes à terra para trazerem o precioso  líquido.

O responsável acabou por aceitar mas com a condição de que um elemento do grupo dos assaltantes acompanharia os tripulantes. Chegados à terra, dois dos tripulantes conseguiram fugir à vigilância do assaltante e foram, a correr, à Ribeira da Barca, e ali contaram a um polícia de alfandega o que tinha acontecido e este telefonou, imediatamente,  às autoridades na Assomada que, acto contínuo, mandaram forças para prender o assaltante em Rincão.

Entretanto, no navio, os tripulantes e mais alguns passageiros conseguiram desarmar os elementos do grupo de assaltantes e a embarcação regressou ao Porto da Praia. Uma vez chegado ao Porto da Praia, a PIDE, polícia politica, já estava ao corrente do que se passara, logo abordou o navio, prendendo os integrantes do grupo de assaltante.

A morte de Nho Maninho foi homicídio ou não? 

Oficialmente, a morte de Nho Maninho aconteceu porque ele atirou-se ao mar. Analisando bem, a conclusão a que chego é de que, se isso passou, foi um acto de suicídio porque estando o navio Pérola a caminho do Fogo, portanto longe da terra, como pode alguém lançar-se ao mar? Ele só podia fazer isso, se estivesse perto da terra firme, ou seja, com a possibilidade de nadar até chegar à terra.

Porém, há um facto que desfaz a tese de que ele atirou-se ao mar. Um tripulante, cujo nome prefiro não revelar, contou-me que um dos seus companheiros de trabalho teria encontrado, depois do assalto, uma faca ou punhal com sangue no convés. Só que esse tripulante, ao invés de entregar a arma às autoridades, lançou-a ao mar.

PIDE ofereceu cervejas aos tripulantes do navio

Meu pai foi prestar declarações à PIDE duas vezes. Contou-me que na segunda vez, juntamente com os seus companheiros tripulantes, a PIDE ofereceu-lhes cervejas. Meu pai não quis beber e pensou de si para si. ”Não foi alegria que me trouxe aqui. Como vou beber?”.

O agente da PIDE que estava ouvi-lo em declaração, disse: “Você poderia estar morto. Como não morreu, deve agora comemorar-se”. Para agradar ao agente, meu pai acabou por beber uma garrafa de cerveja.

Outro facto que o meu pai contou-me é que a PIDE tinha vários fotos, não só dos elementos do grupo de assaltantes como das outras pessoas. Aliás, deu para atender que a PIDE apenas queria que os tripulantes confirmassem as fotos dos elementos do grupo de assaltantes. Dessa história, a conclusão a que chego é de que como houve várias prisões, a PIDE queria saber quem de facto estava no navio ou não.   

As minhas conclusões sobre o assalto

Nos documentos que pude ler, diz-se que o objectivo de José dos Reis Borges, em conluio com a PIDE, era desmantelar a organização clandestina do PAIGC em Cabo Verde. Por outro lado, também se refere que o plano não se cingia apenas a Cabo Verde mas também chegar à Guiné Conakry onde estava a sede do PAIGC.

Para uma análise mais profunda da actuação de José dos Reis Borges, seria necessário mais informação. Ele poderá ter colaborado com PIDE mas há poucas informações a respeito.  Aquilo que se sabe é que gozava de boas regalias como preso na Cadeia Civil da Praia e não foi parar à prisão no Tarrafal como outros elementos do grupo. Também terá viajado para Portugal e  França e especulava-se que o assalto era uma forma das pessoas irem para emigração. Face á diversidade de versões sobre a história desse assalto fica claro que esse acontecimento merece uma pesquisa mais exaustiva, nomeadamente através do Arquivo Nacional da Torre Tombo em Portugal que, conforme um amigo meu, dispõe de muita documentação sobre Pérola de Oceano. Fica pois o meu desejo de que um dia tudo seja esclarecido.

 

PUB

PUB

PUB

To Top