Por: Ângela Coutinho
“Parecia-me que o tema da indignação devia prevalecer…”
“O meu caso coincide com o do homem apanhado por ser judeu, punido, pois pelo erro de ter nascido, em suma, marcado por uma tremenda injustiça: eu lembro-me, em relação a mim, em relação aos meus companheiros judeus do Lager, de nunca ter parado de me espantar com esta enorme injustiça. (…) punir o outro porque ele é outro, na base de uma ideologia abstracta, parecia-me ser o cúmulo da injustiça, da estupidez e da irracionalidade.”
É difícil começar estas linhas. Sinto necessidade de me apoiar nas reflexões de Primo Levi, a quem agradeço infinitamente o esforço hercúleo de lucidez e a tenacidade que demonstrou ter, ao querer testemunhar e analisar ao longo de décadas a que foi considerada a maior e a mais escandalosa manifestação extremada de racismo na época contemporânea, os Lager, ou campos de concentração e de extermínio nazis.
Racismo é algo que se pode definir com simplicidade, o facto de se considerar o Outro como um ser inferior, e, in extremis, não-humano, e todas as acções e teorias decorrentes desse pensamento. É uma forma de ver o Outro e de ver o mundo com a qual tenho convivido ao longo da minha vida. Vêem-me facilmente em mente imagens, episódios que eu própria vivi, “na pele”, como se costuma dizer, e outras que presenciei, de pessoas humilhadas, agredidas devido à cor da sua pele, “negra”, mas não só. São imagens que me acompanham desde a infância, que marcam, e que farão para sempre parte de mim, como de muitas outras pessoas. Não sei se se consegue esquecer uma humilhação. Muitas outras formas de discriminação existem nas sociedades, a social, a religiosa, e ultimamente, tenho convivido mais de perto com uma que agora tem um novo nome, o idadismo, a que atinge pessoas de idade mais avançada. Diversas modalidades de infligir sofrimento a seres humanos.
Como escrever sobre o terrível assassinato de George Floyd, que tem revoltado o mundo inteiro? O que dizer, que palavras empregar relativas a tamanha barbárie humana? Decidi escrever estas linhas sobretudo para os mais novos do que eu, e também para os que, como eu, não conheceram o colonialismo nem o fascismo.
Uma noite, na última semana de Maio, estava tranquilamente a trabalhar, com a televisão ligada num canal de informações que vejo todos os dias. Tinham sido dias muito preenchidos, e já tinha ouvido a notícia de tumultos nos EUA devido a questões raciais. Tinha, inclusive, visto uma foto de um homem que parecia ter um polícia sentado em cima dele. “Mais um “negro” que foi morto pela polícia nos USA”, pensei. “Agora, vai ser um sarilho”, pensando nos tumultos que se têm seguido a estes episódios, ao longo dos últimos anos.
Mas, naquela noite, quando virei a cara para a TV, não vi uma foto, mas sim uma filmagem. Os excertos da filmagem permitiram-me ouvir as palavras do homem deitado no chão. Vi o polícia em cima dele, a pressionar-lhe o joelho no pescoço com muita precisão. A essa tarefa parecia dedicar a máxima atenção e empenho, e parecia saber exactamente o que estava a fazer. Não percebi bem o porquê daquela técnica, pois imaginei que o homem estivesse algemado. Ele tinha dito que não conseguia respirar. Depois, ouvi vozes das que pareciam ser as pessoas que estavam a filmar a cena, que estavam a assistir: “Vai matá-lo?!” perguntavam? “Não vai parar?” Pensei, rapidamente: “O que é que se passa? O que está a fazer um agente da PIDE na televisão? A actuar em frente a câmaras? A torturar uma pessoa até à morte?” Pareceu-me ver sair dos arquivos, transportada para o ecrã, a reconstituição de uma das cenas que se adivinham quando se leem os processos da antiga polícia política portuguesa, instituída pela ditadura de extrema-direita, fascista, o regime do Estado Novo, que vigorou em Portugal e no seu então império, de 1933 a 1974. De início, os agentes da PIDE foram formados pela GESTAPO, da Alemanha nazi. Depois, pela CIA, dos Estados Unidos da América. Os processos, depositados na Torre do Tombo/Arquivo Nacional em Portugal e que consulto há mais de 20 anos, têm quase sempre uma série longa de perguntas, muitas repetidas, outras sem nexo. Muitas vezes, no fim do dossier encontramos um atestado de óbito, com autópsia. Ao ler esses documentos, descobrimos que aqueles homens, jovens, faleceram no final dos interrogatórios na sequência de danos em vários órgãos. Nos processos não vêm descritos actos de violência física, não está escrito em parte alguma que os interrogados tenham sequer sido esbofeteados. Conclui-se, naturalmente, e com amargura, após a leitura de cada um destes processos: “Morreu espancado.” A PIDE podia deter qualquer pessoa para interrogatórios, sem motivo algum, e já se chegou à conclusão de que em todos eles se aplicavam técnicas de tortura, que podiam levar à morte. A mais frequente foi a do sono, que não deixava marcas físicas duradouras, mas sim, psicológicas.
Voltando à cena na televisão, eu estava de facto a ver um homem a ser torturado e morto, mas em plena luz do dia, na via pública, e com testemunhas oculares. Tive confirmada a impressão de que o que estava a ver era muito semelhante a uma actuação criminosa da extinta PIDE quando, ao ser interpelado pelos espectadores, o polícia levantou a cara para as câmaras que o filmavam. Via-se a satisfação estampada no rosto. Quando o homem no chão já tinha dito, com extrema dificuldade: “Vão-me matar.” O homem chamava-se George Floyd, um norte-americano de 46 anos, informaram os jornalistas que estavam a passar a peça.
Essas eram as imagens de um passado terrível que pertenciam à geração do meu pai, dos meus tios, dos meus avós, não à minha geração. Não nasci livre, pois ainda havia o colonialismo e a ditadura fascista em Portugal. Sempre penso, e digo, quando posso, “eles me libertaram”. Os nacionalistas africanos e os antifascistas portugueses. Libertaram-me, e para isso foi preciso fazer uma guerra, e sei que não nos contaram, nem nos contam tudo o que viveram. George Floyd tinha a minha idade. Mas pensei que ele tivesse nascido livre. Era um cidadão norte-americano, nasceu no país da liberdade e da democracia. Em todo o caso, a democracia mais antiga no mundo ocidental, no Ocidente, como se decidiu dizer nos últimos anos. Lá, nunca tiveram uma ditadura.
Bem sei que não tem sido verdadeiramente uma democracia para os “negros”. Não o é certamente para todos os estrangeiros que aí trabalham sem documentação válida. Soube da luta pelos direitos cívicos, contra a discriminação, da história de Rosa Parkes, de Martin Luther King. Pensei que desde a década 1960 se tentasse de facto ter uma democracia nos EUA. Até então, os “negros” não tinham os mesmos direitos perante a lei, apesar de consagrados na Constituição.
A Portugal, enquanto era adolescente, chegavam-nos imagens de “negros” norte-americanos bem-sucedidos, músicos, atletas, actores e até realizadores de Hollywood. Sabia-se que havia uma burguesia “negra”. Até se falava disso quando se comparava com a situação do “negro” no Brasil. Dizia-se que nos Estados Unidos havia mais instrumentos legais para lutar contra o racismo que persiste nessas sociedades, de base colonial e esclavagista.
Ao chegar a França, no início dos anos ’90, procurei livros sobre os “negros” norte-americanos, que nunca tinha podido ler em Portugal. Li, sim, que normalmente os “negros” têm muito menos acesso à educação, à saúde, e os rendimentos são, em média, muito mais baixos. Por conseguinte, a sua realidade é muito diferente da vivida por outras comunidades, sobretudo a dos chamados WASP (White Anglo-Saxon Protestant/Brancos Protestantes Anglo-Saxónicos), que passei a saber que é considerada a elite nos EUA, e que tem mais privilégios do que a dos católicos “brancos”, por exemplo. Os “negros” também estavam sobremaneira representados nas prisões nos EUA. Concluí, então, que nos Estados Unidos da América nunca tinha havido, de facto, um sistema que se possa chamar de democrático. Isso não passa somente pela existência de uma constituição, pela liberdade de voto e pela possibilidade de disputa pelo poder por diversos partidos! A democracia nos Estados Unidos era um projecto por concretizar…
Tenho ouvido nos debates de jornalistas e especialistas que não é de agora que há filmagens de indivíduos “negros” a serem mortos pela polícia norte-americana. Essas filmagens começaram nos anos 1990. Também tem sido frisado que há violência policial por todo o lado, em todo o mundo. Sim, é verdade. Nos EUA, a polícia mata indivíduos de todas as “raças” ou “etnias”, mas há muito mais probabilidades de isso poder acontecer a um “negro”. Também há polícias que morrem todos os anos, é verdade. Trata-se, à partida, de uma situação delicada e complexa.
Mesmo assim, não tinha percebido.
Porém, confesso que nunca me esqueci da reacção de Michelle Obama, aquando da candidatura do marido, Barack, à presidência dos EUA, quando a célebre apresentadora Oprah Winfrey lhe perguntou: “Não tens medo que o teu marido seja morto por ser candidato à Casa Branca?” Ela respondeu, tranquilamente: “A verdade é que vivemos num país onde ele pode ser morto a qualquer momento, só por ser “negro”.” Silêncio. Nem o marido, nem nenhuma das duas acrescentou mais nada a esta frase, para mim, intrigante. “Como assim? Não será um pouco de exagero?”, pensei, enquanto reflectia na naturalidade com que aquela frase tinha sido proferida. Essa é, sem dúvida, uma afirmação que se pode fazer quando se pensa num país ocupado por forças nazis, referindo-se a judeus, comunistas, ciganos, homossexuais, portadores de deficiência, inimigos políticos e todos os que, sob esse regime, como afirma Primo Levi foram punidos por serem “Outros”. Pensei que Michelle Obama estivesse a fazer referência a situações trágicas das quais por vezes temos conhecimento, de jovens “negros” que são alvejados nos Estados Unidos, e mortos por “brancos” armados, em estações de serviço, com a desculpa de que teriam esboçado um gesto para puxar de uma arma. “Devem ser do Ku Klux Klan”, pensei, convencida de que esses assassinos respondiam perante os tribunais. De acordo com a historiadora Nicole Bacharan, em meados dos anos 1920 esta organização chegou a ter entre 2 a 4 milhões de membros, e incentivava o ódio racial contra judeus, católicos, asiáticos e “negros”. Era conhecida pelos linchamentos de “negros”, assassinatos que ocorreram durante décadas.
Nos últimos anos, vi outras filmagens de indivíduos “negros” a serem alvejados e mortos pela polícia, em situações um tanto ou quanto confusas, de indivíduos que pareciam estar armados, em fuga, e que levavam um tiro pelas costas. Mas não. Não percebi.
No caso de George Floyd, também foi dito que ele tinha resistido à polícia, tinha sido acusado de fazer uma compra com uma nota falsa. Também se disse que estava drogado, ou embriagado. Mas como foi tudo filmado, descobriu-se que se tratava de informações e acusações falsas. George Floyd estava dentro do seu carro. Foi interpelado por 4 policiais e seguiu-os tranquilamente. Foi algemado. E depois, aquela cena. Soube que 2 outros polícias estavam sentados em cima dele, enquanto o 3º o estrangulava. Um 4º ficou de pé, a observar a cena. Talvez pronto para puxar da arma, se alguém quisesse intervir? As pessoas passavam e viam. “Porque ninguém gritou?”, pensei. “Tinham medo de levar um tiro primeiro”, concluí. Há um terror policial nos Estados Unidos da América? Alguém chamou uma ambulância, mas chegou tarde demais.
George Floyd não estava bêbado, nem drogado, nem armado. Mas somos informados de que, das 1 000 mortes provocadas por polícias nos USA em 2019, 70% dos assassinados não estavam armados. Matam homens e mulheres de todas as “cores”, e “raças”, os “brancos” em maior número, mas os “negros” têm 3 vezes mais hipóteses de serem mortos pela polícia. E representam 15% da população. No ano 2 000 eram 50% da população prisional. Ouvimos muita coisa dos manifestantes que são entrevistados pelos jornalistas. Dizem-nos que já chegou a haver um indivíduo morto pela polícia dentro da sua própria casa, deitado no sofá, a ver televisão.
Persiste a estupefação. Aquele polícia não tinha receio de ser filmado a cometer um homicídio de 1º grau, com testemunhas oculares? Aquilo não é a América, onde esse tipo de crime pode resultar em pena de morte? Não, não tem medo. Soube, também pelas notícias, que 99% dos casos de polícias que matam cidadãos nos EUA não vão a tribunal e quando vão, são ilibados. Aliás, na cena que nos foi permitido ver, os polícias pareciam estar a actuar de acordo com um procedimento habitual, quase corriqueiro. Torturar um homem até à morte, em plena via pública e à luz do dia. “Não é o que fazem os grupos de terroristas?”, pensei, ainda confusa. “Mas não se trata de um grupo de terroristas, são agentes armados pelo Estado e que são pagos pelo dinheiro dos contribuintes.”
George Floyd, um cidadão norte-americano foi morto aos 46 anos como a PIDE matava em Portugal e nas suas colónias, há quase 50 anos atrás. Mas ele estava nos EUA, no ano de 2020. E eles mataram-no em plena luz do dia, na via pública, e em frente a câmaras. Porque sabem que ficariam impunes. George Floyd, foi, então, morto “pelo erro de ter nascido”, como afirma Primo Levi?
De acordo com o historiador português Fernando Rosas:
“Tal como na Metrópole – mas nas colónias de forma muito mais generalizada e impune -, a polícia [política] tinha poderes equivalentes aos dos magistrados judiciais, podendo os seus agentes prender, assaltar residências, interceptar correspondência e sobretudo, interrogar e torturar os presos, às vezes até à morte, praticamente sem limites ou controlo de quem quer que fosse.”
Não é isto que nos dizem, que nos mostram que faz ou pode fazer a polícia nos EUA com cidadãos “negros” e outros? Excepto a violação de correspondência.
A violência institucionalizada é, aliás, segundo os especialistas, um traço característico dos regimes fascistas. Afirma ainda Rosas:
“A violência, essa violência potencialmente irrestrita, é a essência comum ao conjunto dos regimes de tipo fascista (…).”
O politólogo e historiador português António Costa Pinto elenca a depuração como uma das 5 características fundamentais do fascismo. Os que são considerados como inimigos da nação têm de ser afastados, justificando-se com isso o uso da violência. O autor distingue os regimes com maior propensão para uma depuração política, como o caso dos fascismos italiano ou espanhol, ou étnica, enquadrando-se neste caso o regime nazi.
Os estudiosos do regime fascista português também chegaram a conclusões quanto à relação entre a extrema violência praticada pelos agentes da polícia política e a justiça: com efeito, estes nunca eram postos em causa:
“Em Portugal, os tribunais nunca foram independentes nem puseram em causa a polícia e, pelo contrário, sentenciavam seguindo acriticamente os processos instruídos por esta última, (…)”
“Nas salas de audiência, previamente ocupadas por agentes dessa polícia, advogados e testemunhas de defesa, bem como os presos, eram avisados pelo juiz de que este não toleraria denúncias de torturas nem acusações contra a polícia política.”
Voltando à sociedade norte-americana, compartilho, por fim, um dos muitos comentários e análises que tenho ouvido acerca do brutal assassinato de George Floyd, e que neste momento todo o mundo condena, com manifestações em todos os continentes: o professor universitário francês Eric Fassin, especialista de Questões Raciais, afirmou no dia 30/05/2020 que a polícia e a justiça sofrem de um racismo estrutural nos Estados Unidos da América. Agora, há também um racismo explícito no poder. É uma opinião compartilhada por muitos outros analistas.
Estou a tentar compreender que tipo de democracia existe de facto nos Estados Unidos da América. Vem-me sempre em mente uma frase de George Orwell: “Todos somos iguais, mas uns são mais iguais do que outros”. In República dos Porcos.
Em todo o caso, concordo com Primo Levi: perante os factos ora revelados ao mundo, a indignação deve prevalecer.
* É investigadora no IPRI – Universidade Nova de Lisboa e no CEIS20 – Universidade de Coimbra. Obteve o doutoramento em História da África Negra Contemporânea pela Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne, em 2005. Leccionou na Universidade de Paris X – Nanterre University, em França e no ensino superior privado em Cabo Verde. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT, Portugal.
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1 Ângela Sofia Benoliel Coutinho é investigadora no IPRI – Universidade Nova de Lisboa e no CEIS20 – Universidade de Coimbra. Obteve o doutoramento em História da África Negra Contemporânea pela Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne, em 2005. Leccionou na Universidade de Paris X – Nanterre University, em França e no ensino superior privado em Cabo Verde. Foi bolseira de pós-doutoramento da FCT, Portugal.
2 Levi, Primo (tradução de Esther Mucznik), O dever de memória, Lisboa, Cotovia, 2010, pp. 25, 36-37
3 Bacharan, Nicole, Les Noirs américains. Des champs de coton à la Maison Blanche, Paris, Perrin, 2010, p. 100
5 Rosas, Fernando, História a História – África, Lisboa, Tinta-da-China, 2018, p. 60
6 Madeira, João (coord.), Pimentel, Irene Flunser, Farinha, Luís, Vítimas de Salazar – Estado Novo e Violência Política, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2007, p. 24
7 Pinto, António Costa, “Prefácio”, in Mann, Michael, Fascistas, Lisboa, Edições 70, 2011
8 Pimentel, Irene Flunser, A história da PIDE, Lisboa, Círculo de Leitores /Temas e Debates, 2011, p. 521
9 Pimentel,op. cit., p. 525
10 Canal France 24, 30/05/2020, Journal
(Publicado no A NAÇÃO (digital), nº 668, de 18 de Junho de 2020)