Por: Arsénio Fermino de Pina*
Iremos reflectir um pouco sobre a subordinação da acção política aos princípios superiores do título na companhia do sociólogo Alain Touraine. Ele fala-nos na necessidade de invenção de uma outra esquerda, a da liberdade pessoal, da solidariedade e da diversidade, na sua famosa “Carta aos Socialistas”, de modo a fazer nascer dentro dos socialistas a convicção de os políticos não serem somente os dirigentes de um país, da sua economia e da sua administração, mas antes que estão ao serviço das grandes causas que cada um dos socialistas considera os seus direitos e a sua liberdade.
Os problemas que se nos põem hoje
A política já se transformou em espectáculo. Ela surge, agora, como uma cidade mal afamada, resultado de excessiva centralização, onde as pessoas honestas já não ousam aventurar-se, um pouco como a cidade da Praia. A esquerda está quase inteiramente identificada com a defesa do serviço público, isto é, com a defesa das vantagens adquiridas por uma pequena parte da classe média, a mais favorecida, visto estar ao abrigo do desemprego, o que leva a que as reivindicações mais importantes sejam levadas a cabo por categorias acima do nível médio, o que enfraquece os sindicatos.
A opinião pública já não considera os partidos políticos como representantes do interesse público, mas antes como empresas públicas financiadas por operações pouco transparentes, minados pela corrupção, capturados pelo poder financeiro, mais pertos das agências de publicidade do que dos movimentos sociais.
Ao contrário do que acontecia havia dois séculos, no tempo em que a esquerda afirmava que o progresso social constituía a outra face do progresso económico, da libertação das forças produtivas que produziam a abundância, a melhoria do nível de vida, a justiça social e a felicidade pessoal, a sociedade dos nossos dias sofre mais de poluição do que de penúria, mais de mudanças precipitadas e estúpidas que de tradição inabalável, de desorientação que de repressão e recalcamentos. Perdemos o controlo das técnicas e dos objectos que criamos, somos dirigidos por poderes despersonalizados e omnipresentes. Antes, o poder estava nas mãos de príncipes, de elites dirigentes, definia-se com capacidade de impor a sua vontade aos outros, o que já não corresponde à nossa realidade. O poder actual está em toda a parte, e em parte nenhuma, bastas vezes centralizado e totalitário, à semelhança do socialismo soviético que se desmoronou, está na produção em massa, nos fluxos financeiros, na escola, na televisão, nas redes sociais.
Acreditava-se que a globalização levaria à homogeneização do mundo e de cada sociedade, à melhoria do nível de vida das pessoas dos países em vias de desenvolvimento produtores de matérias-primas, o que não aconteceu. Ela conseguiu, pelo contrário, criar uma distância social crescente entre aqueles que participam no mercado mundial e os que ficam marginalizados. Ela criou uma oposição entre a vanguarda e a retaguarda mais do que oposição entre as classes. Beneficiou os muito pobres, na China e India, retirando milhões da miséria negra, e os muito ricos, mas fazendo crescer desigualdades. Hoje, o nível de desemprego, a desertificação do campo com fuga dos mais jovens para os centros urbanos e para a emigração, a fragilidade de inúmeros sectores profissionais, os problemas criados pelo aumento da população idosa e de dependentes vieram reforçar o campo dos que querem defender, a todo o custo, as conquistas sociais do último século. No momento actual, há cerca de sessenta e cinco milhões de pessoas deslocadas em todo o mundo, vinte e um milhões dos quais foram classificados como refugiados pelas Nações Unidas. A chamada Ordem Liberal Internacional que nos vem governando tornou-se desordem, no sentido em que a democracia foi adulterada.
O mal de alguns desses problemas reside menos nos salários que dizem estar muito elevados, do que nos salários de gestores e administradores, decididos pelos próprios, excessivamente elevados, mesmo obscenos; também na má política económica seguida de subordinação do poder à economia e se ter permitido rédea solta ao poder financeiro e acreditado no autocontrolo automático do mercado, sem a intervenção moderadora do Estado.
E as soluções?
A ideia de igualdade só tem conteúdo democrático se for utilizada activamente, se exigir a correcção de desigualdades de facto através de uma intervenção vigorosa a que chamamos discriminação positiva, correspondente a algumas práticas da segurança social que gasta mais com reformados idosos do que com trabalhadores activos nos países europeus, o que define bem a solidariedade. A equidade é uma igualdade de oportunidades que exige medidas positivas em favor dos desfavorecidos; não pode ser posta em prática a não ser através de uma acção directamente destinada a lutar contra os efeitos da desigualdade social e não com medidas de nivelamento e estandardização.
O abstenção dos cidadãos nas eleições radica-se no facto de não se sentirem representados pelos deputados eleitos. A solução seriam listas eleitorais uninominais, isto é, com os nomes dos candidatos a deputados: o eleitor escolhe o da sua confiança, o qual, quando eleito, tem mais obrigação para quem o elegeu do que com o partido em cuja lista figurou. Claro que os partidos políticos não apreciam isso, porque desejam ser eles a escolher os seus boys e não os cidadãos. Os partidos políticos não são, como tivemos, no princípio da nossa independência, tudo e mais alguma coisa. O PAIGC /CV foi aceite e tolerado a arrogância e intractabilidade dos seus dirigentes de Partido único, de inspiração marxista-leninista, por ter lutado, de armas na mão, pela independência, correndo riscos e sofrendo mortes entre os seus militantes e dirigentes. Afinal, os partidos políticos constituem apenas um dos elementos da vida política. Igualmente ou mais importantes são os movimentos sociais que defendem valores, que combatem a injustiça, e entre ambos, os movimentos de opinião animados pelos media não capturados pelo poder financeiro, as associações e também os intelectuais. É necessário criar ou fortificar associações, movimentos de opinião pública, lançar debates de ideias. Veja-se o impacto, entre nós, da criação da Associação dos Amigos da Natureza, do Mindelart, da Organização Nacional da Diáspora Solidária, da Sokol, do Grupo de Reflexão sobre a Descentralização e Regionalização de Cabo Verde, do Movimento para o Desenvolvimento de S. Vicente e, em tempos mais recuados, do Liceu D. Henrique por oferta do mindelense Senador Vera Cruz da sua residência para a sua instalação, mais tarde chamado Liceu Gil Eanes, do Cinema Eden Park, do Albergue Nhô Djunga, na Ribeirinha, mais tarde transformado em Centro Juvenil Nhô Djunga, da Revista Claridade, do Clube de Golf e de Ténis, da Escola-Oficina da Pontinha, do Mestre Cunco, onde se formaram artífices e artistas de grande competência antes da existência da Escola Técnica, para só citar iniciativas mindelenses, o que parece fazer certa inveja à capital Praia, sede do poder político, que penaliza a ilha do majestoso Porto Grande, bloqueando o seu desenvolvimento e permitindo a destruição irreversível do seu património histórico, arquitetónico, turístico, cultural, industrial e comercial. A opinião pública, embora medrosa por receios antigos e menos antigos na manifestação do seu sentir, aceita mal o “pensamento único”, isto é, a acção política reduzida à gestão daquilo que a política e a economia duramente centralizadas impõem.
Um novo modelo de desenvolvimento é impossível se não for criado um modelo diferente de educação. Não formar gente a granel ou como quem, distraídamente, enche chouriços, como se faz em Cabo Verde a nível universitário, mas apostar na qualidade do ensino dirigido para as necessidades do crescimento-desenvolvimento do país.
Parede, Novembro de 2019
* (Pediatra e sócio honorário da Adeco)
(Publicado no A NAÇÃO impresso, nº 638, de 21 de Novembro de 2019)