José Carlos Oliveira Horta, “Mucangana”, 85 anos, engenheiro de profissão, figura do nacionalismo moçambicano, morreu no passado dia 10, em Lisboa, vítima de doença prolongada. O extinto era autor de “Subsídios para a cabo-verdianidade”, cujos excertos foram publicados na revista-jornal “Artiletra” e outros meios de divulgação.
A notícia da morte de Mucangana foi revelada ao A NAÇÃO pelo nosso colaborador Arsénio Fermino de Pina, amigo de longa data do extinto, que conheceu em Moçambique, ainda na juventude. Militante da FRELIMO, no exílio na Europa e na Argélia, Mucangana privou de perto com vários líderes africanos, casos de Mário de Andrade, Viriato da Cruz, Marcelino dos Santos, por exemplo.
Infelizmente, diz Arsénio de Pina, José Carlos Oliveira Horta morreu sem publicar, em forma de livro, “Subsídios para a cabo-verdianidade”, uma obra “de muito interesse para Cabo Verde” e na qual o seu autor expressa a sua admiração por estas ilhas e pelo seu processo histórico, político e cultural.
O livro, se for dado à estampa um dia, deverá ter um prefácio de Viriato Barros, já falecido também, irmão de Arsénio de Pina, que nos remeteu o texto para publicação em homenagem a José Carlos Oliveira Horta, Mucangana.
Prefácio
Perante a dimensão e a importância do trabalho do meu velho amigo moçambicano José Carlos Mucangana e a profundidade da investigação sobre a história de Cabo Verde e a língua crioula levada a cabo por ele, pesa-me sobre os ombros a responsabilidade de prefaciar esta obra, que considero um incontornável marco de referência no estudo da língua a que se chamou crioulo, falada pelos caboverdeanos e muitos mais.
Apesar do interesse que sempre tive pelo estudo da língua cabo-verdiana, da sua génese e evolução, sinto-me bastante aquém da extensão e profundidade do trabalho do meu companheiro de liceu sobre o crioulo. Investigação séria, aturada onde a objectividade científica ultrapassa e poderia ajudar a solucionar as polémicas motivadas por questões de outra ordem, como a de definir o crioulo como língua, dialecto ou sociolecto, ou a das opções relacionadas com a sua oficialização a par da língua portuguesa em Cabo Verde. Não pretendo, nem seria este o lugar próprio, levantar a polémica, mas simplesmente alertar para a importância deste trabalho e do seu interesse para todo aquele que queira aprofundar o seu conhecimento e os seus estudos sobre o crioulo e sua verdadeira dimensão. Sinto-me honrado por me ter sido solicitada pelo Autor a tarefa de prefaciar o seu livro.
No Liceu Salazar da cidade que se chamava então Lourenço Marques e teve o nome mudado para Maputo, continuando a ser capital de Moçambique, fui condiscípulo de José Carlos Mucangana. Quando terminámos o curso do ensino secundário em 1953, eu em letras e ele em ciências, não havendo ainda estudos universitários em Moçambique, embarcámos para a Europa com o fim de prosseguir os nossos estudos em diferentes universidades. O meu amigo acabou por se tornar engenheiro geólogo e exercer funções de consultor de desenvolvimento. Nas suas publicações fora do domínio da sua profissão, como é aqui o caso, utiliza o apelido de seu avô materno.
Do nosso convívio naquela cidade de Lourenço Marques e afinidade de convicções nasceu a amizade que nos liga. Fora do Liceu, nas nossas horas vagas, reuníamo-nos frequentemente em passeios pelas ruas de Lourenço Marques e os nossos temas de conversa giravam à volta de figuras como Karl Marx e outros pensadores e autores interditos, em Portugal, pela ordem política do Estado Novo.
Ele era considerado, tanto pelos colegas como pelos professores, um aluno excepcional, não só pelo seu domínio das matérias curriculares, mas também pela independência das suas opiniões e opções políticas, apesar de muito jovem. Opiniões e opções que acabaram por torná-lo alvo das atenções da PIDE, tendo sido preso por aquela polícia política, mau grado a sua idade. Tinha 17 anos quando foi detido, a 17 de Março de 1953, durante duas semanas, juntamente com Fernando Augusto Godinho Mendes Gil (Nascido em Muecate, Moçambique, 1937, faleceu em Paris, França, 2006.), cuja memória dispensa apresentação e que tinha 16 anos e mais outros num total de trinta estudantes do ensino secundário e jóvens de famílias modestas, que não tinham tido meios para prosseguir estudos superiores, fora de Moçambique. Directamente encorajada pelo Governador Geral Gabriel Maurício Teixeira, a PIDE apressou-se a instaurar um processo crime no Tribunal da Comarca de Lourenço Marques (Processo Nº 14/P.I./953), que, a pedido do magistrado desse tribunal, ficou a aguardar a tradução das provas do delito, dezenas e centenas de livros em inglês, francês, alemão confiscados, pela PIDE, nas bibliotecas pessoais dos trinta arguidos.
Depois da independência de Cabo Verde, em conversa com Abílio Monteiro Duarte e sua esposa Maria Dulce de Oliveira Almada Duarte, tivemos a agradável surpresa de descobrir, que tínhamos em comum esse grande amigo, que era este moçambicano José Carlos. Eles tinham-no conhecido, depois de mim em Paris, em 1959 e convivido com ele na Alemanha Oriental, em Marrocos e na Argélia, até 1965.
Reencontrámo-nos em Portugal, há poucos anos, depois duma longa separação forçada pela perseguição da PIDE, tendo ele estudado na Bélgica, de onde foi expulso a pedido do governo português, na Alemanha Oriental, onde a STASI e o KGB tentaram retê-lo contra sua vontade, e na Argélia, onde novamente estudou e trabalhou. Visitou Portugal, pela primeira vez, depois de 25 de Abril de 1974.
Depois de ter trabalhado na Argélia durante 15 anos, a partir de 1980, percorreu o continente africano, o subcontinente indiano e alguns países caribenhos e da Ásia Central como consultor de desenvolvimento. Continua a trabalhar, até à data, na sua profissão.
Tendo vindo trabalhar em Cabo Verde, por poucos meses, em 2010 – 2011, começou a interessar-se pelo estudo da história e da língua do nosso país, investigando detalhadamente a história dos caboverdeanos e da sua língua.
Penso que a publicação deste trabalho não podia ter surgido em melhor ocasião, dada a controvérsia que tem havido sobre o crioulo, a sua génese e o seu papel enquanto língua adoptada em Cabo Verde, mediante votação pelo Parlamento Caboverdiano, como língua oficial, toda a polémica que tem havido e continua a haver sobre a sua importância e o seu lugar no nosso país e a polémica que ainda não chegou a haver sobre o seu papel no mundo, talvez a mais importante.
Nunca dantes utilizado, como língua oficial de Cabo Verde, e empregado normalmente em situações informais, no trabalho ou na criação poética e musical, o uso do nprazercrioulo tende hoje a generalizar-se a situações tanto informais como formais, incluindo o ensino, em paridade com a língua portuguesa.
Naturalmente a posição do crioulo no contexto social e cultural de Cabo Verde é uma questão fundamentalmente política, que requer decisões bem fundamentadas, acertadas em todos os detalhes, incluindo os detalhes financeiros, equilibradas no sentido do interesse nacional a longo prazo e isentas de emoções e de sentimentos.
Lembrou António Faria que «Cabo Verde era uma nação, uma comunidade de povo com uma língua própria, antes de existir como estado» (1986, Itinerário de Pasárgada, http://www.academia.edu/ 4771540/Itiner%25C 3%25 A1rio de_Pas%25C3%25A1rgada, 43 p., ).
Durante mais de cinco séculos a nação cabo-verdiana manteve-se e andou pelo mundo integrada na nação portuguesa. Da guerra fria e das lutas por zonas de influência das duas superpotências, durante o século XX, resultou a independência feita à pressa de Cabo Verde e trazida da Guiné, em África, pelo PAIGC. Cabo Verde, que já era uma nação há mais de cinco séculos, tornou-se uma nação-estado, antes de se ter desenvolvido e reforçado o nacionalismo caboverdeano. A obra dos Claridosos ficou por completar, mas, em vez de desenvolverem essa obra, os que chegaram depois, julgando terem-nos ultrapassado com a mediocridade de ideologias na moda copiadas à pressa, tentaram desastradamente criticá-los. Gabriel Fernandes (2006, Em busca da nação: notas para uma reinterpretação do Cabo Verde crioulo, Florianópolis, Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, Praia, Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 285 p.) discute as várias tentativas para elaborar um nacionalismo caboverdeano (nativistas, Claridosos, PAIGC) e confirma que “um inequívoco nacionalismo” não existiu, em Cabo Verde. Acrescenta: “Pode até ser que alguém tenha pretendido construí-lo, mas ninguém conseguiu expressá-lo plenamente.” Os Claridosos com as suas acções indirectas e “produções” de “construção de um imaginário nacional” e os africanistas pela sua acção directa da “chamada luta de libertação nacional”, que abriu o caminho da independência, “nenhum deles estaria absolutamente habilitado a reclamar monopólio legítimo, título de propriedade ou reconhecimento da paternidade nacional cabo-verdiana. E isso pelo simples facto de não terem podido erigir um verdadeiro nacionalismo em Cabo Verde.”
José Carlos Mucangana vem também lembrar-nos, que precisamos de alargar as bases do nosso nacionalismo para além da nossa língua materna, estudar e inspirar-nos da longa história dos caboverdeanos, que é rica demais para podermos livrar-nos dos mitos irracionais e sermos honestos, objectivos e científicos no nosso nacionalismo e no relato do trabalho e dos feitos dos nossos humildes heróis, como deve soer a cidadãos do século XXI, especialmente os desta nossa nação, que, desde a sua formação pelos primeiros crioulos nascidos no Arquipélago, nos meados do século XV, sempre andou no mundo directamente ligada à globalização, trabalhando pela globalização. É o que anseiam as novas gerações para continuarem a afirmar, pelo trabalho, a nossa personalidade no mundo.
Este livro surge também numa altura em que Cabo Verde livre de tutelas, que não sejam do interesse nacional e do interesse geral, é chamado a tomar responsabilidades cada vez mais importantes entre as nações de língua portuguesa. A nação caboverdeana com a sua grande diáspora é hoje constituída por mais de um milhão e meio de pessoas, uma população, em número e qualidade, comparável, se não superior à de Portugal nos séculos XV e XVI. Recursos e experiência não lhe faltam para se ilustrar ainda mais num mundo, que lhe é familiar, o mundo da globalização, com o qual nasceu e onde cresceu e vingou em nove pequenas ilhas, no meio dum oceano.
Na minha opinião, a presente obra é sem dúvida uma das contribuições mais importantes para o estudo da lingua e da história de Cabo Verde. Espero que venha a ser lida pelos professores, pelos responsáveis da sociedade civil, pelos homens de bem dos partidos políticos, como os designou de maneira construtiva José Maria das Neves (2015, Cabo Verde, Gestão das Impossibilidades, Lisboa, Rosa de Porcelana Editora, 134 p.) e pela juventude do Arquipélago e da sua grande diáspora. E fico-me por aqui, deixando ao leitor a expectiva, o prazer e a gratificante tarefa de se envolver na leitura desta extraordinária obra.
Antes de terminar, queria ainda acrescentar, a pedido do Autor, que, para ele, se esta obra é realmente extraordinária, só assim pode ser, na medida em que relata apenas alguma parte de tudo quanto a nação cabo-verdiana tem feito no seu arquipélago, nos três oceanos livres de gelo e nas sete partidas do mundo, desde que nasceu, há quase seis séculos.
Almada, 8 de Agosto de 2017
Viriato de Barros Fermino de Pina