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Covid-19

Reflexões em tempo de pandemia

Por: Adriano Miranda Lima

Por tudo o que me chega através da imprensa escrita e online, e pela análise e interpretação que a realidade me permite, penso que as autoridades públicas cabo-verdianas agiram bem e atempadamente na adopção de medidas face ao Covid -19. Os números actualizados à data em que escrevo apontam para 56 casos de contaminação na Boa Vista, 63 em Santiago e apenas 3 em S. Vicente, contra a ausência, por enquanto, de qualquer registo de ocorrência nas restantes ilhas. A situação em Santiago parece ter evoluído aceleradamente nas últimas semanas, o que pode dever-se à sua condição de ilha mais populosa e a circunstâncias de confinamento domiciliário menos apropriadas ou convidativas nos bairros pobres das periferias urbanas. 

O certo é que dum modo geral as populações souberam acatar as instruções e imposições das autoridades públicas sobre o confinamento e outros procedimentos cautelares. No entanto, o abrandamento das regras que poderá seguir-se ao fim do estado de emergência não poderá significar uma reversão do comportamento tido até agora. Embora os níveis de contaminação sejam relativamente baixos em Cabo Verde, em comparação com outras realidades bem mais calamitosas, não é possível prever que esteja estabilizada a curva do fenómeno ou que este esteja a caminho de uma franca regressão. Por outro lado, este vírus não está ainda suficientemente descodificado e identificado em toda a sua natureza insidiosa, conforme nos demonstra a aparente aleatoriedade e imprevisibilidade dos seus efeitos no organismo humano em alguns países. Tanto tem levado ao colapso e morte de pessoas jovens como tem permitido em alguns casos a recuperação de idosos. Assim, sou defensor intransigente do uso continuado e generalizado de máscaras em todas as situações de aglomeração humana, seja em espaços fechados ou abertos, para além do distanciamento físico obrigatório.

É sempre possível apontar erros pontuais ou criticar a eventual falha no controlo sanitário dos casos ocorridos na Boa Vista. Contudo, tudo aconteceu repentinamente e sem que estivessem reunidas todas as condições de resposta ou se pudesse tirar partido de experiências similares anteriores. De resto, considero admirável que um país pobre de recursos e com os constrangimentos da descontinuidade territorial, como é o nosso, tenha estado à altura do que melhor se fez noutras paragens onde os recursos humanos e tecnológicos são bem mais abundantes. 

Independentemente da evolução e do desfecho final desta pandemia, é muito provável que uma outra futura venha a encontrar a humanidade mais preparada para a conter ou liquidar à nascença. Para já, o Covid -19 tem ao menos a virtude de nos advertir sobre os males do futuro e obrigar a reflectir sobre o estilo de vida que vimos adoptando e nos expõe imprudentemente a ameaças de que nem sempre temos a perfeita consciência.

É no plano das ideologias e dos sistemas de organização política e social que as lições devem ser identificadas de modo a serem objecto de profunda reflexão e aprendizagem. O mundo passou a estar interligado de uma forma sem precedentes, mercê das tecnologias que a ciência põe à nossa disposição, nomeadamente ao nível das comunicações e dos transportes, com o fim de maximizar sistemas e técnicas de produção económica em massa. O capitalismo neoliberal tomou as rédeas do processo de globalização, julgando-se o único e credenciado condutor da carroça da humanidade, mandando às urtigas teorias do pensamento que consideram que a apregoada auto-regulação do sistema é tão improvável como carente fiabilidade. Ora, tudo isto tem de ter um reverso e este vírus pode ser um dos seus rostos.

Por outro lado, esta pandemia vem demonstrar que o Estado é a única entidade que, na esfera da sua jurisdição territorial, é capaz de interpretar os sentimentos e os anseios das populações de modo a reunir, organizar e priorizar os meios e os processos de luta contra as calamidades públicas. A prova mais evidente que nos entra pelos olhos dentro vem do país mais capitalista do mundo – os EUA −, onde têm sucumbido, vítimas da Covid-19, pessoas dos sectores sociais mais desprotegidos e mais vulneráveis, por não possuírem um seguro de saúde suficientemente protector, depois de o seu actual Presidente ter rasgado ostensivamente o ObamaCare logo após tomar posse das suas funções.

Daí eu pensar que um país como Cabo Verde jamais pode abdicar de um serviço de saúde nacional que garanta a assistência sanitária em pé de igualdade a todos os seus cidadãos, independentemente da ilha em que vivam ou do seu estatuto social. É pura utopia admitir que a privatização de sectores do serviço de saúde possa em Cabo Verde substituir ou alijar o peso das responsabilidades do Estado.

Os estragos causados na nossa débil economia são de monta e são iniludíveis, pelo que a recuperação vai exigir um grande esforço de convergência nacional. 

      

Tomar, Maio de 2020.

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