PUB

Opinião

Crónica: Viagens por Santiago Norte em dias de Covid-19 (Parte II)

Por: Silvino Monteiro 

A nossa viagem por Santiago Norte nestes dias de estado de emergência, por causa da covid-19, continua. Desta feita partimos do Tarrafal, capital turístico de Santiago Norte, rumo ao vizinho concelho de São Miguel, terra de Rabelados e litoral encantador, ainda por cima em dia de céu azul. 

Depois de banhar um pouco o nosso olhar e pensamentos no azul profundo do mar do Tarrafal (já que não o podíamos fazer fisicamente, dado que a praia estava interditada), voltámos à estrada em direcção a Calheta. O relógio marcava 11h30. Deixámos para trás a Igreja de “Nhu Santo Amaro Abade”, vazia e tomada por um silêncio profundo. Seguimos a nossa viagem, desta vez com uma sensação diferente. O percurso é em estrada calcetada, passando pelos povoados de Monte Areia e Achada Tomás; à nossa passagem éramos vigiados com um olhar de desconfiança das pessoas sentadas à beira da estrada. 

A nossa primeira paragem foi em Achada Tomás, junto ao campo de futebol. Não para ver qualquer partida de futebol, mas para fotografar uma manada que ocupava o campo. Numa situação normal certamente o campo estaria a ser deliciado por jovens ou crianças locais, mormente neste período de férias escolares. Mas, por estranho que pareça, não havia correrias de crianças atrás da bola. Os bois e as vacas tinham todo o “pelado” ao seu dispor. 

Seguimos em frente, eu e o meu companheiro de viagem, no meio de uma paisagem árida, povoada por acácias, até descobrir a zona litoral em que o azul profundo da água do mar contrasta com o castanho da terra seca, que não vê chuva em abundância há três anos. No mar, um bote com alguns pescadores à procura de peixe para a mesa das pessoas em quarentena, e eis que chegamos à Achada Tenda, última localidade do município de Tarrafal. Não fossem carros estacionados, poder-se-ia dizer que aquela era uma vila desabitada.  

São Miguel, terra de Rabelados e litoral encantador

O município de São Miguel recebeu-nos com um “bem-vindo”. Logo à entrada, deparamo-nos com alguns agricultores a cortar cana sacarina e também a irrigar as parcelas agrícolas na boca da Ribeira de Principal. Nestes dias de covid-19, as pessoas não estavam para conversas com estranhos. No máximo o que conseguimos foi a justificação que tinham que fazer tudo “muito rápido” e voltar logo para casa.

Em Achada Bolanha, o cenário nas ruas não era diferente das outras localidades, sem vivalma à vista, nem viaturas a circular. Achada Monte foi outro ponto de paragem. No estado normal essa pequena vila estaria a registar muita movimentação das pessoas, sobretudo de centenas de alunos das várias localidades que estudam na Escola Secundária Olegário Tavares. Mas, nesse dia, encontrámos apenas Celestino, um ex-emigrante em França que nos diz que nessa sua zona estava tudo tranquilo. Rapidamente, nos faz saber que concorda como as medidas restritivas impostas pelo Governo, mas, entendido que parece ser nestas coisas de quarentena, sublinha que o Executivo pecou por não ter fechado as fronteiras mais cedo. 

E lá seguimos a nossa viagem para Calheta e, à medida que fomos avançando, íamos descobrindo pequenas baías e praias encantadoras. Uma delas é a praia de Manguinho de Sete Ribeiras, uma das sete maravilhas do concelho. Um grupo de pescadores, acabados de chegar do mar, estavam rodeados por alguns rapazes que foram, também eles, à procura de peixe fresco. Um dos pescadores, simpático, revelou-nos que se fizera ao mar, às seis horas da manhã, tendo regressado por volta do meio-dia. Questionado se a pesca foi boa, já apressado para chegar a casa, disse que deu para encontrar um jantar. “É assim é vida de pescador, dia sim, dia não”, mas que, mesmo assim,  “ninguém desiste”.  

Comunidade dos Rabelados fechada 

Em Espinho Branco a comunidade dos Rabeldos é um lugar de visita quase obrigatória. Logo à entrada encontra-se erguida uma pequena placa que dá as boas vindas aos visitantes. Com a covid-19, a placa parece desajustada da realidade. Se há um mês as pessoas da comunidade, sobretudo crianças, recebiam os visitantes de braços abertos e sorrisos, com esta pandermia, notamos que os visitantes já não são bem-vindos. As portas do centro Rebelarte estão fechadas, assim como o acesso à comunidade que foi vedado, desde que surgiu o primeiro caso positivo de coronavírus na ilha da Boa Vista. Quem ousa entrar é recebido com desconfiança e cara de preocupação. 

Encontrámos Marlene da Veiga, à entrada, sentada, à sombra, rodeada de algumas crianças. “Ta kuda bida” (a pensar na vida), diz-nos quando abordada. Parca em palavras, Marlene confidenciou-nos que a comunidade passa por uma situação difícil. A água mal dá para o consumo doméstico; lavar as mãos com frequência, como recomendam as autoridades sanitárias, no sentido de se prevenir contra o coronavírus, parece coisa de outro mundo. “Ouvi dizer para as pessoas lavarem as mãos sempre com água e sabão e depois para colocar álcool gel. Água e sabão temos nem que seja pouco; mas, álcool gel, agora, nunca vi e nem sei como usar. Pai todo poderoso é que vai nos proteger dessa praga”, desabafa.  

 Marlene revelou ainda que há muita preocupação com a situação de muitos filhos da comunidade e vizinhança que foram para Boa Vista trabalhar, nos hotéis e noutras actividades, à procura de uma vida melhor. Na falta de informações, limitam-se a rezar por esses rebelados. Depois de escutar as preocupações das gentes da comunidade seguimos para centro da cidade da Calheta de São Miguel. 

Ruas da Calheta desérticas 

Chegámos ao centro da cidade da Calheta por volta das 13 horas, hora de ponta, caso não houvesse estado de emergência. Também aqui o deserto e o silêncio são notas predominantes. No mercado encontrámos apenas cinco vendedeiras, a exercer as suas actividades. Estas dizem que o movimento estava fraco, dado que as pessoas estavam com receio de sair de casa. “E vocês não têm receio?”, atiramos a puxar conversa. “Receio temos, mas a necessidade é mais forte. Por isso, mal a gente consiga alguma coisa vamos também para casa. Essa doença que está na terra não é para brincadeira”… (continua) 

PUB

PUB

PUB

To Top