Por: Arsénio Fermino de Pina*
A pandemia da Covid-19, que levou à quarentena das pessoas suspeitas e à situação de emergência em vários países, obrigou-me a ficar em casa por a minha idade ser de alto risco. Um vírus, um micróbio tão pequenino que até entra dentro de bactérias e de outras células e toma conta das suas estruturas de comando obrigando-as a fabricar outros vírus iguais ao usurpador, até explodirem, expelindo centenas ou milhares de virus que irão infectar outras células e destruí-las! É precisamente um virus chamado Coronavirus, geralmente pacífico para o ser humano, que sofreu uma alteração na sua estrutura (chamada mutação), que se tornou patogénico (que provoca doença) para o homem, vindo da China, que está provocando tanta doença e mortes no mundo e perturbando todo o esquema de vida das nações. Um virus antes desconhecido que o nosso organismo também desconhece e para quem ainda não tem defesas, não havendo fármacos nem vacina que a combatam ou previnam. Uma autêntica tragédia global que irá ter consequências terríveis em vários países, mormente nos mais pobres e sem estruturas sanitárias capazes e de técnicos em número suficiente e competentes.
Eu, que geralmente saía de manhã para o meu passeio higiénico, ou para ler tranquilamente num café, vejo-me confinado à casa e sujeito a todas as exigências preventivas e de emergência para mim e a família contra o Covid-19.
Felizmente, como possuo o gosto e hábito da leitura, sem me desesperar, vou relendo livros que sempre me encantaram, descobrindo, ou redescobrindo informações que me passaram despercebidas ou a minha memória não reteve para resposta rápida. Como também gosto de partilhar, ponho no papel o que presumo de interesse para os leitores.
Encontrei-me com o historiador judeu Yuval Noah Harari há já algum tempo, e, como ultimamente tenho lido em jornais referências ao seu pensamento, irei pescar nos seus dois últimos livros publicados alguns conceitos que esclarecem muita confusão que anda por aí sobre, por exemplo, a origem da moralidade e sobre o secularismo. Talvez venha a abordar noutro artigo, aspectos outros do mesmo investigador, dado que o historiador tem-se dedicado ao estudo e ensino da História, encorajando os seus alunos a questionar os conhecimentos e ideias que têm por garantidos sobre a vida, o mundo e a Humanidade.
Comecemos, a completar ou corroborar o pensamento do filósofo Espinosa sobre ética, publicado no Terra Nova, com a ética sem Deus. Não contesto que a crença em deuses foi vital para criar e manter várias ordens sociais, e que, por vezes, teve consequências positivas. Também sabemos que as mesmas religiões inspiraram ódio, preconceitos e perseguições, e noutras pessoas inspiram amor, compreensão e obras fecundas.
Embora os deuses nos possam levar a agir com compaixão, a fé religiosa não é uma condição necessária para o comportamento moral. A ideia de que precisamos de um ser sobrenatural que nos faça agir de forma moral implica que há algo de pouco natural na moralidade. Por que será? Porque existe uma moral natural. Todos os mamíferos sociais, do chimpanzé às ratazanas, todos têm um código ético que proíbe certos comportamentos. Entre os seres humanos, a moralidade está presente em todas as sociedades, embora nem todas elas acreditem no mesmo deus, ou em qualquer deus. Os cristãos agem com caridade mesmo sem acreditarem no panteão hindu, os muçulmanos valorizam a honestidade embora rejeitem a natureza divina de Jesus, e os países seculares como a Dinamarca e a Suécia não são mais violentos do que os países devotos como o Irão, o Paquistão ou a Arábia Saudita.
Moralidade, afinal, não quer dizer “seguir os ditames divinos”. Significa diminuir o sofrimento. Assim, para agirmos de forma moral, não temos de acreditar num dado mito ou numa determinada história. Só temos de desenvolver uma sensibilidade ao sofrimento. Se realmente compreendermos de que modo uma acção provoca sofrimento desnecessário a nós mesmos ou a outros, naturalmente que nos abstemos dela. As pessoas que assassinam, violam e roubam, a razão é terem uma consciência muito fraca da infelicidade que isso causa, estão obcecadas com a satisfação da sua luxúria ou ganância, sem se importarem com o impacto que isso terá nos outros, ou então são psicopatas, isto é, pessoas que têm um defeito mental que os leva a não ter compaixão, nem amor, nem medo, nem outros sentimentos que caracterizam o ser humano. Sem amor, amizade e comunidade, conseguiríamos ser felizes? Se levamos a vida autocentrada (egoísta), o mais certo é sermos infelizes. Assim, pelo menos, para sermos felizes temos de nos importar com a nossa família, os nossos amigos e com os membros da nossa comunidade. O mesmo relativamente aos estranhos, aos outros. É assim que teóricos seculares desde a antiga China à Europa moderna justificam a regra de ouro de “não fazermos aos outros aquilo que não gostaríamos que nos fizessem a nós”.
Segundo algumas pessoas, uma crença forte num deus compassivo que nos manda dar a outra face, depois de levar uma bofetada, pode ajudar a conter a raiva. Esse foi o maior contributo da fé religiosa para a paz e a harmonia no mundo. Infelizmente, para outras pessoas a fé religiosa é aquilo que acicata e justifica a raiva, especialmente se alguém insultar o seu deus ou ignorar as vontades dele. Sem ir mais longe, temos actualmente o exemplo dos radicais islâmicos. Não frequentar templos e não acreditar em deus nenhum também é uma opção viável. Como os últimos séculos demonstraram, não precisamos de invocar o nome de Deus para levar uma vida moral. A moral, por exemplo, do bom samaritano (de uma seita muito desprezada pelos judeus) é que o mérito das pessoas deve ser julgado pelo seu comportamento e não pela sua filiação religiosa ou – acrescento eu – pela sua filiação política, O secularismo pode dar-nos a todos os valores de que precisamos. Ficará para o próximo artigo.
Parede, Abril de 2020
*(Pediatra e sócio honorário da Adeco)