Por: Arsénio Fermino de Pina
Destinava as tardes para vacinações no velho Dispensário de Puericultura criado pela Dra Francisca de Sousa, cuja praceta com o seu nome foi demolida recentemente sem o mínimo respeito por uma das nossas mais ilustres médicas, prova da pouca consideração oficial pelos nossos valores e patrimónios. Utilizei as vacinas ofertadas pela UNICEF e OMS, que estavam guardadas e ninguém utilizava, e fazia a avaliação do estado nutricional de crianças, com uma fita a cores, medindo o perímetro braquial, experiência que me serviu mais tarde quando fui nomeado director nacional do Projecto de Saúde Materno-Infantil e Planeamento Familiar (PMI/PF) financiado pela ong sueca Radda Barnen.
Do Hospital Velho passámos para as instalações outrora do Telégrafo Inglês, actualmente sede da Telecom.cv, onde as condições já eram satisfatórias para podermos separar as patologias, visto dispormos de dois andares e 4 salas para a enfermaria, de dois consultórios no R/C, sala de espera e uma pequena saleta onde ficava a enfermeira encarregada da inscrição e da triagem que instituí. Esta fazia-se após preparação da enfermeira, dispondo ela de protocolos afixados à parede à frente da sua secretária, onde se estipulava o que deveria, obrigatoriamente, encaminhar aos médicos (tinha passado a ter o apoio do colega Carlos Graça, vindo de Santo Antão e mais tarde da Dra Antonina, vinda de Angola, dois excelentes colaboradores nacionais altamente motivados) e em caso de dúvida, devendo ela tratar as pequenas patologias ou encaminhá-las à PMI, quando esta começou a funcionar. Também as crianças não vacinadas ou com vacinações incompletas deveriam ser encaminhadas à PMI, passando a haver uma excelente colaboração entre a Pediatria e a PMI com benefícios mútuos e das crianças.
A triagem não agradou a muita gente habituada a chegar directamente ao médico. Mantive-me firme, visto não conseguir, como único pediatra na ilha, recebendo crianças que vinham doutras ilhas, atender a todas as solicitações. A mesma política foi seguida quando, doze anos depois, regressei da OMS e fui dirigir a nova Enfermaria de Pediatria no Novo Hospital contíguo ao antigo, que dispunha de excelentes instalações, equipamento e pessoal para o exercício da especialidade. Nessa ocasião, como havia vários colegas (cubanos, egípcio, russa, formada em Angola e em Portugal), cada um com a sua terapêutica e modo de actuação, apresentei aos colegas uma série de protocolos terapêuticos e normas de serviço, para que as apreciassem, e ao fim de um mês me dessem as suas opiniões e sugestões, dado que todos iriam ter de respeitar essas normas e protocolos, que seriam revistas de três em três anos. Ninguém apresentou qualquer crítica ou sugestão, e durante os três anos em que dirigi o serviço, antes da aposentação, o serviço funcionou praticamente sem grandes problemas. Somente depois da minha saída e da mudança do regime político que adoptou o neoliberalismo e permitiu a clínica privada, antes interdita, é que os colegas deixaram de respeitar as normas e os protocolos. Com nova mudança do regime político – regresso do PAICV – o ministro da saúde convocou-me para me perguntar se tinha cópia dessas normas e protocolos por ninguém saber onde foram parar. Como dispunha deles no computador, pediu-me a reconstituição do sistema, dado que desejava que todos os serviços passassem a ter normas de serviço e protocolos terapêuticos. Estive três meses com os colegas a fazer a revisão dos textos, o que não foi fácil por não haver grande interesse nisso, por desígnios perfeitamente perscrutáveis. Dois anos depois, de regresso de férias a S. Vicente, dei-me conta de que ninguém já respeitava as normas e protocolos terapêuticos. Em fins de 1977, com a criação do Projecto de PMI/PF, fui deslocado para a direcção nacional do Projecto e substituído na enfermaria de Pediatria por um “pediatra” russo, que sabia tanto de Pediatria como eu de Veterinária, como cheguei a dizer claramente ao Primeiro-Ministro, Comandante Pedro Pires, quando visitou as instalações pediátricas no ex-Telégrafo, o que me dificultava o trabalho por o pessoal de enfermagem, já com alguma formação e habituado à minha actuação, me chamar à noite para rever as incríveis terapêuticas preconizadas. Perguntou-me se tinha alguma solução. A alternativa era pedir um pediatra sueco dentro do contexto do Projecto de PMI/PF; assim se fez e livrámo-nos do “colega” russo que nunca conseguiu discutir uma terapêutica comigo, quando aparecia, para o efeito, no dia seguinte, por ter suspendido a dele; só dizia “no problem”, quando havia mesmo problema e grave. Falando mais tarde com o ministro da saúde de Moçambique, Dr. Hélder Martins, contemporâneo no liceu de Lourenço Marques, do assunto, confessou-me que tiveram o mesmo problema em Moçambique e presumo que o mesmo se passou em Angola e Guiné, até com maior gravidade, por aí não disporem praticamente de nacionais qualificados para atalharem procedimentos perigosos ou de alto risco.
O pediatra sueco, Dr. Harrtel, era realmente especialista em pediatria e garantiu a qualidade do serviço durante alguns anos, substituído mais tarde pelo Dr. Bjorn Wengren, outro colega altamente qualificado. Foi o Dr. Harrtel quem, com a esposa que era enfermeira, pôs a funcionar a incubadora ofertada, com um feto com cerca de 1Kg encontrado no balde da sala de partos da maternidade, quando fazia a visita diária dos recém-nascidos, feto que ainda respirava mas que a parteira considerara inviável. Graças aos cuidados do casal Harrtel e da dedicação da mãe, que aí ficou, aprendeu a dar o seu leite ao feto por sonda e vigiava qualquer alteração que pudesse ocorrer, salvou-se a criança, que eu próprio segui depois da partida do Dr. Harrtel. Há tempos, veio alguém, com a mãe, cumprimentar-me em S. Vicente. Era esse ocupante da primeira incubadora, a que os pais deram o nome de Artel, em reconhecimento ao pediatra que o salvou, já licenciado numa universidade brasileira.
Por duas a três vezes o colega Harrtel me chamou à enfermaria face a situações graves que ele não conseguia resolver. A primeira foi com uma criança com cerca de sete anos apresentando uma dispneia terrível que não dispensava oxigénio permanente e lhe impedia o sono. Agarrado à mãe, choramingando que ia morrer. Quando aí cheguei, todo o pessoal do serviço, incluindo o Dr. Graça, aí estava; o Rx do tórax exibia um coração ocupando quase toda a caixa torácica. Harrtel sabia, como eu, que isso era sinal de miocardite (mais provável por a criança ter tido gripe) ou de pericardite com derrame. Como não podia ser mobilizado para o Hospital Velho para fazer radioscopia – que daria o diagnóstico diferencial – a solução era usar uma agulha grossa e picar ao nível do apêndice xifoide. Harrtel olhou para mim, dizendo: pica tu! Silêncio absoluto. Nunca tinha feito isso, mas vi o Professor Vaz Serra fazer isso numa demonstração prática ao meu curso. Mandei preparar o material necessário e utilizei a técnica de Marfan, picando ao nível do apêndice xifoide. Aspirei e nada saiu. Retirei a agulha e piquei directamente sobre a área cardíaca: sangue vivo. Concluí: miocardite. Encharquem-no em corticoide, disse eu, e fui-me embora. No dia seguinte, a criança estava viva e tinha dormitado alguns momentos. Dois dias depois já dormiu mais tempo e foi melhorando até poder dispensar oxigénio permanente. O RX torácico mostrava diminuição nítida do tamanho do coração, e … a criança salvou-se. O cardiologista em visita periódica à ilha confirmou ter-se tratado de miocardite, estando a criança bem. Guardo um desenho que a criança fez para mim e tive o prazer de o ver depois adulto e licenciado no exterior.
(Continua)
Publicado no A NAÇÃO impresso, nº 618, de 04 de Julho de 2019