Por: Natacha Magalhães
Cabo Verde é quase (ou é?) um país do “deixandar”. Aqui, a impressão que se tem é que cada um pode fazer o que bem lhe der na telha e… deixa seguir. Fica tudo bem. Há até coisas que vão se tornando rotina até que se instalam e se tornam “normais”. Esses dias, incessantemente, os repórteres da RCV têm vindo a chamar a atenção para a existência de camiões que circulam pelas estradas da capital, transportando materiais com algum risco, nomeadamente pedras, sem proteção na carroçaria. Oiço isso há anos, vejo isso semana sim, semana sim. Alguém resolve construir um prédio, atira com os entulhos para o meio da calçada, ou encosta-os a um canto e ali ficam, ad eternum. Na semana passada, a Ana Paula confidenciou-me que não percebe como é que as peixeiras puderam tomar conta do centro do Palmarejo, bem ali na esquina de um dos lugares mais frequentados, onde existe comércio, onde se compra o pão. É verdade. Para quem ali circula a partir das dezoito, é vê-las ali, descansadinhas da vida, escamando o peixe, lavando-o, para depois deitarem aquela água fedorenta rua abaixo.
Ela até pensou chamar a atenção às senhoras do peixe, mas advertia- a que não o fizesse. Oh Ana, minha amiga, estás doida? Queres levar com raspanete ou coisa pior, sem falar no risco que corres de seres vilipendiada, e passares vexame em frente às pessoas? Está certo que enquanto cidadãos temos que fazer a nossa parte. Recusar-se a comprar ali o peixe, seria um gesto de cidadania. Mas, se quem de direito pouco ou nada faz, se esta terra é terra de leis de papel, quem somos nós? Ficamos mais é humilhados e é só aborrecimentos. Nessa terra há de tudo. E em tudo somos bons. Só não somos bons a fazer cumprir leis. Isso já lembra um jogador que recebe a bola, faz bons passes, dribla todos os adversários, mas na hora de finalizar chuta a bola para cima da baliza. A bancada do adversário grita de alegria, não foi golo, ufa!
O jogo pode prosseguir nas calmas. E nesse jogo, já mais parece que são gato e rato na área. Ganham, não os ratos, mas as peixeiras e as vendedeiras que já nem se preocupam, tal qual donas disso tudo. Afinal, àquela hora, quem as vai incomodar? Ganham também os donos das vacas (das ovelhas também, que já as vi). Não falhasse a fiscalização, haviam de apanhar um valente susto e aprender uma grande lição, como aconteceu numa ilha, onde a câmara municipal local procedeu à apreensão de ovinos e estes só foram entregues aos donos mediante pagamento de coima. É tiro e queda essa receita. Com esse “kau mau”, ninguém quererá ter despesas dessas. Mas lá está. Para que haja apreensão, é preciso que as coisas funcionem. Há que existir uma linha telefónica ou um outro canal funcional, que permitisse ao cidadão denunciar e que, na sequência, a reação se fizesse rápida e eficaz, de preferência, sem envolver violência. Queremos que todos tenham oportunidades de ganhar seu pão, mas não se pode permitir que se pense que aqui tudo é possível sem que haja consequências. E a sensação que se tem é que impera a impunidade. So isso justifica que a peixeira escame o peixe e deite ao chão a água suja ou vacas e ovelhas circulem, pachorrentas, na capital.
Dizia que nessa terra faz-se de tudo e tudo fica bem. De quando em vez vem uma instituição mostrar alguma indignação, promete averiguar, mas depois fica tudo em banho maria. So isso pode justificar o grande descaso perante uma tamanha barbaridade ocorrida na semana passada à vista de todos, até de turistas, que lá entenderam que a captura e esquartejamento bárbaro de tubarões da espécie mako (nome cientifico isurus oxyrinchus) e de raias-mobula, classificadas como espécies em risco de extinção, no pontão de Santa Maria, na ilha do Sal, faz parte do pacote turístico, que ainda dá direito à fotografia e vídeo para serem postados nas redes sociais como se de um cartão postal se tratasse. Há quem diga que os turistas pagaram aos pescadores para fotografar tal acto. Shame on us! O assunto até fez manchete na imprensa estrangeira. É uma vergonha que o arquipélago se promova a custa dessas coisas. A fotografia fica feia, e nós não passamos de bárbaros e hipócritas que em discursos circunstanciais somos pelo desenvolvimento sustentável, mas na prática permitimos que esse estado de coisas continue. Não, não é primeira vez e, por esse andar, não será a última. Em tempos uma ONG ambientalista denunciou semelhante acto no cais de pesca do porto da Praia.
Enquanto comento com um amigo meu, estrangeiro, este desabafa, entre o horrorizado e incrédulo. Na minha terra, os tubarões valem mais vivos que mortos. São fonte de renda, as pessoas pagam sim, mas para irem vê-los vivos, não para assassina-los e esquartejá-los. Eu penso, e respondo: na tua terra, amigo. Aqui, até no prato os colocam. Até os comem. Sem pejo nenhum. E deixa andar.