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Opinião

Do Trotskismo ao Estalinismo

Por: Arsénio Fermino de Pina*

Como não sou trotskista nem estalinista, não defendo o regime de partido único de inspiração leninista e são os ideais de esquerda, mais propriamente, do liberalismo de esquerda que me animam, sou insuspeito para abordar alguns aspectos do trotskismo e estalinismo. Era minha intenção, ao pensar tratar deste assunto, curtamente escrever, não por próprias palavras achadas, mas reunir em breve molho os escritos de alguns que mais me prouveram, como diria o cronista Fernão Lopes, quando se me depararam tantas informações pertinentes historicamente aferidas, que sou forçado a ser mais longo em benefício dos leitores.

Tivemos, em tempos, em Cabo Verde, uma autêntica riola antitrotskista com demissão de ministro, secretário de Estado e altos funcionários do Estado sob a acusação de Trotskismo e entrismo; ainda me lembro do amigo Corsino Tolentino, elemento da luta armada na Guiné e quadro do PAIGC, numa reunião na Câmara Municipal de S. Vicente a tentar explicar à população o que era o Trotskismo e entrismo e a razão das demissões, perante a curiosidade dos ouvintes que desconheciam totalmente a existência de tal desvio político, até porque os atingidos tinham sido dos mais activos e extremistas na fase pré independência, exigindo independência imediata, posições que favoreciam o Partido e a que os líderes do PAIGC não se opuseram nem moderaram. Muita gente ficou, por isso, baralhada com as condenações e cheguei a publicar um artigo parodiando um pouco a situação com a história de uma amiga chegada que me procurou para se esclarecer sabendo-me letrado, por um dos filhos ter sido convocado à polícia no meio da confusão das demissões; já tinha ido falar com o manda-chuva da Polícia de Segurança, Beitz, que conhecia desde criança, garantindo que o filho não era toche (quereria dizer trotskista) e que graças a Deus, na família dela, não havia e nunca houvera toches. Beitz lá a tranquilizou dizendo-lhe que o filho nada tinha a ver com o assunto, já tinha sido ouvido e ia ser libertado. Tentei explicar-lhe o que era trotskismo e nem lhe falei no entrismo para não lhe baralhar mais a cabeça. Intrigante é o facto de, após a mudança do regime, ao cabo de quinze anos, com a adopção do multipartidarismo e a entrada em função do Governo do MpD, os tais apelidados de trotskistas voltaram ao poder e ninguém manifestou qualquer rejeição ou apontou a malignidade do desvio.

Afinal, trotskismo deriva de Trotsky (Léon Trotsky), nome adoptado por Lev Bronstein quando fugiu da prisão na Sibéria, revolucionário de quem irei falar-vos um pouco, que poderia ter sido o substituto de Lenine após a morte deste, mas que outro revolucionário, Joseph Stalin (Estaline), não tivesse feito tudo para o comprometer e liquidar fisicamente. Trotsky era de origem judaica, o que não o favorecia porque desde o séc. XVI, Ivan o Terrível, obrigou a população judia a escolher entre a conversão ao cristianismo ou a condenação à morte. Pelo final do Séc. XIX, quase todos os judeus já haviam sido forçados a se instalar numa área demarcada entre o mar Negro e o mar Báltico, uma espécie de reserva. A Ucrânia era a única região em todo o Império Russo onde as famílias judias tinham permissão para se dedicar à agricultura. As crianças não podiam frequentar escolas públicas mas sim as dedicadas a judeus. Da mãe é que de Trotsky herdou a paixão pelos livros.

A luta dos revolucionários inspirados na obra de Karl Marx e Lenine foi difícil visto os mujiques (camponeses russos), tradicionalmente, quase que idolatravam o czar, considerado um semideus. Tanto Trotsky como Estaline, que tinham a mesma idade, mantinham contactos com outros revolucionários influenciados pelas obras de Marx e Lenine, que viviam fora da Rússia. As prisões eram frequentes e o destino da Sibéria como prisão, de onde a fuga era difícil devido ao frio, ao gelo e ao isolamento.

A constituição do Partido Operário Social-Democrata da Rússia realizou-se em Minsk; defendia a revolução na Rússia em duas etapas: na primeira, o país teria de se democratizar e industrializar pela acção da burguesia – a classe social que Engels definia como “a classe dos modernos capitalistas, proprietários dos meios de produção e empregadores de trabalhadores assalariados; a seguir, viria a segunda etapa, a revolução socialista liderada pelos operários. A intenção da fuga de Trotsky da Sibéria para o exterior foi para se encontrar com Lenine que se presumia estar na Suiça. Ao chegar à Suiça soube que Lenine tinha partido para Londres; com o apoio de amigos conseguiu pagar a passagem para Londres onde se encontrou, pela primeira vez, com o líder da revolução, bem como com outro camarada chamado Martov, fundador com Lenine da União pela Luta pela Emancipação dos Trabalhadores, que viria depois a ser dirigente dos mencheviques. Trotsky ficou a trabalhar como redator do jornal Iskva.

Em 1903 o partido realizou o II Congresso, no qual se manifestou a premonição de Trotsky e suas qualidades oratórias, já pressentidas quando discutiram a organização partidária: para Lenine, o partido teria de ser disciplinado, rigidamente centralizado e sob liderança única, enquanto para Martov deveria ser aberto a todos quantos perfilhassem os mesmos ideais da causa revolucionária e tolerante. Trotsky consagrou definitivamente a fama de orador brilhante e argumentador agressivo e irónico afirmando: “ Os métodos de Lenine nos levarão à seguinte situação: a direcção do partido acabará por substituir o partido como um todo; depois, o Comité Central substituirá a direcção, e, por fim, um único ditador acabará assumindo o lugar do Comité Central”. Não obstante esta premonição, ele apoiou Lenine, passando os partidários de Lenine a ser conhecidos como bolcheviques (grandes) e os de Martov, mencheviques (pequenos). Premonição que veio a ser facto nos países dominados pela Rússia após a Segunda Guerra Mundial, a que Churchill chamou Cortina de Ferro, a China de Mao, Coreia do Norte, Cuba com Fidel de Castro, Jugoslávia do Marechal Tito e a Roménia de Nicolau Ceausescu.

Em 1905, influenciados por um panfleto de Trotsky, houve uma manifestação de protesto pacífica de centenas de milhares de trabalhadores que terminou num banho de sangue, conhecido como “domingo sangrento”, visto a polícia e o exército terem feito fogo sobre a multidão, com receio que esta chegasse mais perto da residência do czar. Trotsky que estava no exterior regressou à Rússia e assumiu o Soviete (concelho) de Petersburgo, de onde incitou os revoltosos a prosseguirem a luta. Novamente preso, julgado no ano seguinte e condenado à Sibéria. Foi durante esse tempo de prisão que concebeu uma teoria revolucionária, muito contestada, que afirmava que o socialismo não poderia sobreviver se fosse somente num único país, necessitando, portanto, que a revolução socialista se realizasse noutros países, particularmente na Alemanha. Conseguiu fugir novamente da prisão na Sibéria, dirigindo-se à Finlândia, onde se encontrava Lenine e Martov. Nas suas movimentações revolucionárias foi parar depois aos Balcãs como correspondente de guerra, em 1912, onde foi criticado pelo camarada Estaline por não aprovar a maneira de tratamento dos prisioneiros nessa guerra nos Balcãs. Essa experiência de guerra veio a ser-lhe muito útil, mais tarde, como comandante e fundador do Exército Vermelho que ele assumiria nos primeiros meses de 1917.    

                                     

Parte 2

Em 1914 Trotsky voltou à França onde se encontrava o velho amigo Martov. Devido ao seu activismo político foi expulso do país, seguindo para a Espanha e daí para os EUA.

Nova manifestação monstra da população em 1917, encabeçada por mulheres, apoiada por operários, devido ao racionamento dos géneros alimentícios, contra a guerra e o czar. O exército, nessa altura, ao contrário do que aconteceu no “domingo sangrento”, não obedeceu às ordens de fazer fogo sobre os revoltosos; havia começado a revolta dentro do próprio Exército czarista. Devido à gravidade da situação, o czar Nicolau II abdicou, terminando assim 300 anos da Dinastia Romanov. O governo provisório, apoiado pelos mencheviques, aliados dos bolcheviques, teve como primeiro-ministro o príncipe Karensky. A mudança era grande, mas ainda insuficiente para os revolucionários, por a Rússia ter-se mantido na guerra. Trotsky regressa à Rússia e à revolução, com várias peripécias pelo caminho e ameaças de prisão, mas graças à sua fama e aos simpatizantes que o defenderam, chegou a Petersburgo onde o esperavam. No Soviete, os mencheviques não concordaram com as ideias de Lenine e Trotsky, o que levou a que Trotsky abandonasse os mencheviques e se aliasse aos bolcheviques de Lenine.

Um levantamento popular prematuro espontâneo eclodiu em Julho, em Petersburgo, e 20.000 marinheiros aderiram ao movimento. Lenine, acusado de ser espião alemão, escapou por pouco de prisão, mas Trotsky foi preso por algum tempo. Em outubro do 1917, o Comité Revolucionário do Soviete de Petersburgo, liderado por Trotsky ordenou o início da insurreição. Kerensky refugiou-se numa embaixada. Lenine, de regresso, subiu à tribuna e anunciou aos entusiasmados delegados: “Agora podemos começar a construir a ordem socialista”.

Os mencheviques continuaram a exigir participação no governo em igualdade de condições aos bolcheviques, embora estivessem em minoria nas eleições do Congresso. Quando Trotsky recusou a atendê-los, o seu velho amigo Mortov rebelou-se e passou a combater os bolcheviques.

Relativamente ao fim da participação na guerra, Lenine queria a paz imediatamente, ainda que isso custasse à Rússia a perda de áreas ocupadas. Trotsky quis ganhar tempo, negociando com Kaiser Guilherme II, na esperança de uma revolução socialista na Alemanha, que não se realizou, e a Rússia teve de assinar o Acordo de Brest-Litovsk. A partir da assinatura deste tratado instituiu-se o regime de partido único e pouco depois começou a guerra civil – entre os chamados” russos brancos” (governo e mencheviques) e os “russos vermelhos” (bolcheviques) -, que durou 3 anos, período durante o qual Lenine transferiu a sede do Governo para Moscovo. Em 1918, o czar Nicolau II e a família foram barbaramente liquidados a tiro num celeiro.

Temos falado pouco de Estaline nessa revolução e da sua animosidade contra Trotsky. Obviamente que como revolucionário e apoiante de Lenine foi ocupando postos importantes e sofrendo prisões nessa luta. Reservamos para próximos capítulos a sua acção e o trabalho de sapa feito para comprometer e liquidar Trotsky. Instalado no Conselho Revolucionário de Guerra, Estaline ia insinuando que as táticas militares de Trotsky eram más, e Lenine ouvia mas nada dizia. Como Trotsky defendia que a revolução socialista poderia estar em marcha na Alemanha e isso iria favorecer a russa, esse argumento desapareceu quando o movimento alemão se transformou em luita armada e o governo alemão reagiu drasticamente liquidando os dois principais cabecilhas, Rosa Luxemburgo e Karl Liebnecht.

Em 1920 Trotsky preside a uma reunião da III Internacional, acreditando que, com o fim da guerra (Primeira Guerra Mundial) começaria a irromper por toda a Europa movimentos revolucionários, com os quais contava para assegurar a estabilidade do Estado Soviético. Nada disso aconteceu, dado que os trabalhadores estavam estafados, descrentes dos resultados da Guerra e sem forças para se rebelarem.

A guerra havia custado ao país a morte de uma geração de operários politicamente conscientes. Além deles, mais nove milhões de cidadãos tinham morrido de fome, de frio ou em consequência de doenças epidémicas. Face a essa situação, Trotsky propôs, em 1920, abrandamento das restrições económicas estabelecidas, mas tanto Lenine como os colegas foram contra. No ano seguinte, o soviete que representava os marinheiros de uma base naval revoltaram-se contra o confisco de cereais, exigiram voto secreto em vez do braço erguido e garantia de os operários se organizarem em sindicatos, o que deu lugar a longa e sangrenta luta. Trotsky não se manifestou e isso custou-lhe críticas posteriores de muitos camaradas. No X Congresso do Partido, Lenine apresentou a Nova Política Económica (NEP) que acabou com o confisco de cereais e permitia aos camponeses venderem parte das suas colheitas, o que, se tivesse sido adoptado antes, como sugerido por Trotsky, teria evitado a revolta do soviete dos marinheiros. Os resultados imediatos foram bons mas a longo prazo os Kulaks (camponeses ricos) passaram a controlar a oferta de cereais impedindo que os pequenos produtores tivessem acesso ao mercado.

O XI Congresso do Partido Bolchevique (em 1922), Estaline, homem de confiança de Lenine para certas acções de mão, embora reconhecesse a sua limitação intelectual e brutalidade, já era secretário-geral do Partido. Nessa data Lenine adoeceu gravemente e a liderança partidária passou a ser exercida por um triunvirado – Zinoviev, Kamenev e Estaline –, Trotsky nada fez para pertencer à liderança, e isso foi fatal para o seu futuro, não obstante ser melhor orador, escrevia melhor, ser um teórico brilhante e o companheiro preferido de Lenine. Este, apesar da doença, apercebeu-se do perigo do desentendimento entre Estaline e Trotsky e começou a escrever a intervenção para o próximo Congresso, onde iria remover Estaline do posto de secretário-geral do partido. A mulher ajudou-o a completar e a apresentar o documento como seu testamento político no Congresso, por Lenine não ter podido estar presente, devido à doença,. Trotsky apresentou uma proposta ao Comité Central pedindo a divulgação de um documento assinado por 46 bolcheviques acusando Estaline. Zinoviev sugeriu que Estaline mandasse prender Trotsky, o que o astuto secretário-geral não aceitou por conhecer a popularidade de Trotky. Entrementes, Trotsky partiu para umas curtas férias no Mar Negro e aí recebeu um telegrama de Estaline comunicando-lhe a morte de Lenine, que não valia a pena ele interromper as férias porque não chegaria a tempo de participar nas cerimónias fúnebres. Pouco depois disso, Estaline deu início a uma gigantesca campanha de desinformação e calúnia contra Trotsky, seus seguidores e simpatizantes favoráveis à “democratização intrapartidária”. Acusados de trotskismo – a primeira vez que apareceu o termo – muitos funcionários foram demitidos e perseguidos. Krupskaya, viúva de Lenine, posicionou-se contra esse comportamento difamatório, mas Estaline já tinha força e poder suficientes para fazer gorar a apresentação do Testamento de Lenine ao Congresso que o removia do cargo de secretário-geral do partido. No XIII Congresso Estaline apresentou o seu Plano Económico ao país, com o que não concordaram Zinoviev e Kamenev, que, para o demoverem de levar avante o plano, ameaçaram revelar o Testamento de Lenine, mas já era tarde.                                                                        

Parte 3

Zinoviev e Kamenev aproximaram-se de Trotsky contra Estaline, mas este já dominava a política, os órgãos de divulgação e da imprensa, o que lhe permitiu bani-los do Partido; Trotsky foi forçado ao exílio dentro do país (Alma Ata), num primeiro tempo, depois, para fora do país. Temporariamente na Turquia, recusando-se vários países Ocidentais a recebê-lo, até que conseguiu residência no México, onde viria, mais tarde, a ser assassinado por um espião de Estaline.                                                                                                                                           O talento de Trotsky para a análise política e a sua capacidade de ler as linhas que levariam a acontecimentos futuros levaram-no a produzir, em 1930 um artigo intitulado “A Alemanha: chave da situação internacional”, em que previu o triunfo do nazismo, exortando os comunistas, que tinham tido poucos votos nas eleições, face a seis vezes mais votos dos partidários de Hitler, a juntarem-se aos social-democratas alemães formando uma ampla frente de oposição ao nazismo, a que, infelizmente, não atenderam.

Estaline empenhou-se em liquidar Trotsky e seus amigos e seguidores, tirou-lhe a cidadania russa e à família, mulher e filhos. Vários admiradores e defensores de Trotsky foram liquidados no estrangeiro por espiões russos. Zinoviev, Kamenev e vários bolcheviques companheiros de Lenine foram acusados, levados a julgamento depois de forçados a confessarem crimes de traição que não cometeram e de terrorismo económico, incluindo o filho de Trotsky. Tinha-se entrado na paranoia denominada “Processos de Moscovo”, em que os melhores companheiros de Lenine, revolucionários, outros funcionários, oficiais e generais do Exército Vermelho foram presos, julgados, condenados e enviados para a Sibéria ou executados.

Trotsky continuava fora da alçada de Estaline, no México, escrevendo e criticando o ditador. Finalmente, em 1940, Trotsky, com 61 anos, foi assassinado por um espião de Estaline, Ramon Mercader, que conseguiu ganhar a confiança do revolucionário. Pouco tempo depois Estaline condecorou a mãe do assassino, entregando-lhe uma medalha para o filho.

Joseph Stalin era natural da Geórgia, de uma família de condição humilde. A mãe, muito religiosa e ambicionava que o filho viesse a ser sacerdote. Como era aluno aplicado, ganhou uma bolsa de estudos para o Seminário Teológico de Tiflis, capital da Geórgia. Parecia ter uma aversão visceral contra toda e qualquer forma de autoridade e, aos 19 anos de idade, foi expulso do Seminário. Enquanto seminarista frequentava um grupo de colegas que estudava Marx. Fora do Seminário passou, no início, a viver de explicações; depois conseguiu emprego no Observatório de Tiflis. Aos 20 anos militou-se no Partido Operário Social- Democrata da Rússia. Nas suas actividades revolucionárias, foi preso pela polícia czarista e enviado para a Sibéria onde esteve durante 3 anos. Em 1904 conseguiu fugir da prisão. Passou a agir como se os seus inimigos fossem os mencheviques e não os czaristas.

Participou no “Domingo Sangrento” e na greve geral referidos atrás, devido à acção dos revolucionários, o governo cedeu e o czar assinou o documento que transformou a Rússia numa monarquia constitucional. Trotsky, líder do Soviete de S. Petersburgo, e os restantes membros, foram, como vimos, presos, mas o czar, Nicolau II, foi forçado a permitir a eleição de uma Assembleia Nacional que ficou conhecida sob o nome de Duma. Estaline teve de se deslocar à Finlândia (que na altura pertencia ao Império Russo), onde se encontrou, pela primeira vez, com Lenine. Daí foi parar a Estocolmo, a primeira vez que saía da Rússia, para uma reunião. Foi nesse Congresso em Estocolmo que teve início a animosidade de Estaline contra os intelectuais. Muitos dos líderes mais influentes do Partido viviam longe da Rússia a salvo da polícia, escrevendo teorias da revolução. Irritava-se com isso, pois ele vivia arriscando a vida, enquanto os outros limitavam-se a escrever em segurança. No ano seguinte, noutro congresso do Partido, Trotsky e Estaline encontraram-se pela primeira vez. Trotsky acabara de fugir da Sibéria e todos os congressistas olhavam para ele com admiração, o que criou ciúme e inveja a Estaline. Trotsky discursou condenando as expropriações. Em artigo publicado sobre o Congresso, Estaline descrevia Trotsky como “uma bela inutilidade”.

A morte da primeira mulher de Estaline transtornou-o bastante e parece ter secado nele quaisquer bons sentimentos, como chegou a confessar. Decorrido algum tempo, houve greve em Baku; Estaline, que estava implicado nela, foi novamente preso e enviado para a Sibéria. Entre 1909 e 1917, passou quase todo esse tempo preso ou no exílio, mas na Conferência de Praga, em 1912, embora ausente, foi nomeado membro do Comité Central, graças à acção de Lenine, que apreciava a sua militância. Com o apoio de Lenine conseguiu fundar o jornal Pravda (A Verdade), que passou a ser o jornal oficial do Partido Comunista, à semelhança do Avante, do Partido Comunista Português, para onde escrevia regularmente, quando não estava preso. Foi a partir de 1913 que passou a usar o nome de guerra Estaline (derivado do termo russo significando aço) em vez de Koba, utilizado antes.

Estaline continuou a caluniar Trotsky nos seus relatórios, com poucos efeitos no início devido ao extraordinário trabalho de Trotsky na remodelação do Exército Vermelho e à vitória contra os chamados russos brancos, mas, ao longo do tempo e do seu trabalho de sapa, isso revelou-se eficaz. Em 1920 todas as forças “brancas” Já batiam em retirada e os exércitos estrangeiros que apoiavam o czar já se tinham retirado. Em 1925, o Partido resolveu destituir Trotsky do cargo de Comissário do Povo para a Guerra, e ele submeteu-se sem protestar, o mesmo tendo acontecido aos seus inimigos, reais e imaginários, igualmente sem protesto por uma questão de fidelidade ao Partido e disciplina partidária.

Com Trotsky fora de combate, Estaline aliou-se a Bukharine, um dos principais teóricos marxistas do período pós-Lenine, que se encarregou de atacar as posições de Zinoviev e Kamenev. Durante todo esse período, Estaline manteve-se calado. Em 1928, estava pronto a entrar em acção e anunciou uma nova política agrícola, em aberta discordância com as ideias de Bukharine, pelo que destituiu este de todos os seus cargos. No ano seguinte, já não precisava de ninguém e assumiu-se como único líder para governar à sua maneira. Tinha nascido, como desabafou Bukharine, um novo Gengis Khan, o que lhe valeu a pena de morte. Na execução do seu plano agrícola teve a resistência dos proprietários ricos (kulaks), que foram punidos com prisões, expropriações, deportações para a Sibéria por terem destruído tudo que existência nas suas terras antes de as abandonarem – gado, máquinas agrícolas e colheitas. Outros planos quinquenais foram executados com realizações notáveis, como o metro de Moscovo, o canal entre o Báltico e o Mar Negro, grandes indústrias, etc. Para Estaline, o insucesso de qualquer dos seus projectos devia-se a sabotadores. O assassinato de Kirov, líder do Partido em Leninegrado e membro do Politburo, serviu de pretexto para se livrar de todos os seus críticos e líderes políticos que pudessem fazer-lhe sombra, incluindo Zinoviev e Kamenev, presos, julgados e fuzilados.                                          

Parte 4

A morte (suicídio) da segunda mulher – uma intelectual e militante que visitava os operários e camponeses, ouvia as suas queixas e aconselhava o marido a moderar a actuação – após uma rude altercação em público, encontrando-se Estaline bêbedo, perturbou-o gravemente e foi Molotov que o demoveu de abandonar o poder. Nessa altura começou a alimentar uma aguda mania de perseguição com medo crescente de ser traído, passando a viver com a ideia obsessiva de que não podia confiar em ninguém. Foi o período dos “Processos de Moscovo”. Durante esse expurgo, Estaline manteve-se afastado na sua residência no Mar Negro. Quem se encarregou dessa louca tarefa sanguinária foi o chefe da Polícia Secreta, Yerhov. Dizia-se, como no tempo de Salazar, em que era voz corrente que o ditador desconhecia as barbaridades da PIDE, “Ah! Se Estaline soubesse!” Bukharine foi fuzilado nessa altura, bem como Zinoviev, Kamenev e outros. Calcula-se que também foram presos e liquidados entre 7 a 23 milhões; dos 140 membros do Comité Central eleitos em 1934, apenas 15 ainda permaneciam em liberdade. Os julgamentos e expurgos terminaram em 1938 e o chefe da Polícia Secreta, o bode expiatório da insanidade do ditador, foi fuzilado e substituído por Béria, que, por sua vez, veio a ser fuzilado pelos sucessores de Estaline.

Na iminência da Segunda Guerra Mundial, Estaline assinou com Hitler um pacto de não-agressão e partilha da Polónia, o que não impediu que, em 1941, os nazis invadissem a Rússia. O poderoso exército alemão progrediu rapidamente em território da Rússia. 2,5 milhões de russos foram mortos ou feitos prisioneiros, 18.000 tanques, 14.000 aviões destruídos e a produção industrial reduzida a metade, o que não era de estranhar visto terem sido presos e fuzilados muitos oficiais e generais do Exército Vermelho acusados de trotskismo e sabotagem.

Às portas de Moscovo, o general  Zhukov, que escapou ao expurgo estalinista por estar longe, na Manchúria, à frente de um poderoso exército, por haver dúvida quanto a eventual invasão japonesa, foi mandado regressar a Moscovo, e surpreendeu o exército alemão com o seu poder de fogo, forçando-o a recuar 150 Km. Leninegrado continuava a resistir e, em 1943, Estalinegrado foi aliviado da pressão alemã devido a acções do exército comandado por Zhukov, que cercou as forças alemãs, fazendo milhares de prisioneiros. Estaline manteve-se sempre em Moscovo no comando da defesa e resistência e durante a contra ofensiva;, a vitória em Estalinegrado foi um marco na evolução da Segunda Guerra Mundial e Estaline autonomeou-se marechal. O mito da invencibilidade do exército alemão tinha sido quebrado e o relacionamento do ditador russo com o povo soviético se alterou. Mandara libertar muitos oficiais do exército e membros do Partido Comunista dos campos de concentração, face ao real e visível perigo alemão; a ameaça do trotskismo já não significava tanto, até porque Trotsky já tinha sido assassinado a seu mando.

De salientar que os EUA haviam procedido ao reconhecimento diplomático do Governo Soviético e garantido empréstimos, suprimento alimentar e apoio militar quando a União Soviética foi invadida pelas forças alemãs em 1941.

O contra ataque soviético e o desembarque das forças aliadas na Normandia contribuíram para derrotar Hitler, com o encontro das forças aliadas com as russas em Berlim e fim da guerra em 1945.

Estaline, com 74 anos de idade, faleceu em 1953. No XX Congresso do Partido Comunista, em 1956, num longo discurso do novo líder, Kruchev, este denunciou os crimes de Estaline, admitindo que muitas vítimas dos Processos de Moscovo eram inocentes. Como vimos, não obstante o reconhecimento dos crimes cometidos e da inocência de muitos condenados, a honra e a reabilitação de Trotsky nunca foram reconhecidas, não obstante a sua viúva ter solicitado isso na fase de “desestalinização”, o que não deixa de ser uma grande injustiça. Que me conste, apesar das mudanças operadas na Rússia e da derrocada do bloco soviético, o trotskismo continua para os comunistas um assunto ainda tabu, mesmo depois das acusações de Kruchev sobre os crimes cometidos sobre inocentes e do conhecimento do esquema de julgamento e condenação dos “Processos de Moscovo”. Estaline, se não era psicopata, pelas barbaridades cometidas, a frieza do seu comportamento é típico dessa patologia. O que me surpreende, embora presuma as razões, é que não tenha havido ninguém da esquerda com coragem para condenar politicamente a perseguição patológica de Estaline a Trotsky defendida e justificada infamemente por todos os partidos comunistas, É bem provável que se Estaline fosse normal, ter-se-ia entendido com Trotsky e os outros revolucionários, a evolução dos acontecimentos ligados à Revolução Russa teria sido diferente e muito menos penosa para o povo russo e os países do Leste Europeu.

Não se deduza, do que acabo de escrever, que defendo tudo quanto praticou Trotsky, pois, juntamente com Lenine e Estaline, nos inícios da Revolução, justificou os exageros e crimes cometidos em nome da “moral” revolucionária. Trotsky, cujo espírito era concreto e subtil, respondeu à pergunta, “Será que se tem o direito de assassinar pessoas, de fuzilar reféns, inclusive se não fizeram nada de ilegal?”, “Depende dos casos”, e cita: “Se um revolucionário fizesse ir pelos ares o general Franco e o seu estado-maior…” Certamente que, se, na leva, houvesse inocentes, isso seria contabilizado como efeitos colaterais.

Parede, Setembro de 2019

*Pediatra e sócio honorário da Adeco

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