Por: Filinto Elísio
Terça, 17
Uma manhã, tal como a CPLP, pode ser de sinfonia ou de diafonia. Uma manhã, de mulheres e homens com a liberdade de “rolâ na mapa”, como na poética utopia de Corsino Fortes, era música harmónica para os nossos ouvidos; mas a mesma manhã, de navio encalhado em Lampedusa, pura distopia de seres humanos acuados e humilhados, era o lado desarmonioso da culpa coletiva. A verdade é que não se pode olhar para o amanhecer de forma desavisada e com a displicência da neutralidade. A manhã não canta, mas nós poderíamos cantá-la, que diabo. Olhá-la como fosse tudo aquecer-se ao sol – o mesmo que seca as roupas no varal, acaricia a laranjeira na paridura e brilha aos automóveis no vaivém da ponte -, pelo engodo do dia que esconde o ostracismo dos jovens nos guetos e que, mudando capa e espada, permanece sempre a ordem jurássica e neandertaloide, hoje com crianças enjauladas e com condenados nos corredores da morte. De nada vale, olhar-se para a manhã com os neurónios quadrados, como se, querendo ou não, mal ou bem, todos não fizéssemos parte da História Universal. De nada vale, embriagado pelo doce que só a mim me dás, a amnésia das misérias, devastações e ruínas. Que manhã interessaria nesta terça, 17, poesia constitucional à parte, capaz de fazer justiça ao assassinato da menina de 10 anos ou de construir com verdade uma CPLP para as pessoas? A claridade que me invade a cozinha, enquanto preparo o pequeno-almoço para os que amo (faço-o por mimo, ternura, o que mais queiram) e a clareza de recusarmo-nos carnes para canhão da guerra dos titãs. Auguro bom desempenho (ou aquele possível e passível) a Cabo Verde na presidência da CPLP. Podermo-nos humanizar mais, podermo-nos ajudar mais (pela ousadia da liberdade) os nossos pares-cidadãos já era uma espécie de entreato. E mesmo à sombra da partilha, diria até à sombria prebenda dos donos do mundo em rasgos de boa-vontade, que não traria tal manhã de volta, já era do mal o menor no estarmos em cena. No entre-quintais, a vizinha da esquerda retoca as flores e o vizinho da direita açula o cão, enquanto monitorizo os espasmos deste amanhecer que nos sobra. Onde se nos perdeu a manhã sinfónica? A outra manhã ficou lá fora, no ‘tempo do onça’, como dizia o poema de Manoel de Barros ou de quando cantávamos o sol nascente é para todos.
Segunda, 16
Sucessivos dias, vertiginosos, a saltarem-me do calendário e eu quero andar devagar, no pensar contemplativo. O nascer e o pôr do sol, a fantasia da noite, com as luas de Princesito, tomadas de estrelas. A música (de preferência, jazz) e a poesia (com demora em Fernando Pessoa). Eu quero ver um filme engraçado (Woody Allen, dos antigos) e tentar ler A Divina Comédia (decifrar Dante em italiano) e pensar traduzir O Inferno, de Arménio Vieira (para a língua cabo-verdiana). Estes dias que se apressam, como tivéssemos rendez-vous com a eternidade e eu quero ainda andar contigo por Tóquio e, na ultima estação, levar-te a Kilimanjaro. Estou, sim, diante ao espelho que me olha, como se balbuciasse O Outro, de Jorge Luis Borges, o espelho que me esguelha em fiapos de cabelos brancos e na protuberância abdominal, e que também me sorri com estes olhos que alombam comigo há que tempos. Dias que não dão tempo para a releitura de Guimarães Rosa, tempo para textos concorrentes ao Prémio Oceanos (júri é doer-nos a pontuar trabalho alheio) e cogitar o regresso ao meu berço, quase Nicolau, menino, entra, como mo sussurrassem tais versos o próprio Osvaldo Alcântara, que só se regressa ao ponto de partida. Dias que me dão impressão de ir sozinho ao decompor do meu corpo e à mágoa da minha alma; coreografia maluca que é o amor, da crosta da Ponte Vecchia à magnífica calva do próprio tempo. Ir sozinho a esventrar a multidão que me sorve pelo turbilhão das grandezas. E, de vez em quando, ouvir a voz desossada do sagrado e a tessitura de tudo que não seja heróico, quietude que me é remanso nesta caminhada. Que o exposto não se esbarre no óbvio, que a vulgaridade do monocórdico, eta vida besta, tal como a azafama destes dias, me mata. E fica este gostar de ler aos putativos netos Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa. A vertigem destes dias (e o calendário descompassado) dará para tanto?
Domingo, 15
Domingo em Lisboa, meio em chuvoso, quase que apetece mandar chover em Cabo Verde, ainda que as águas não sejam a panaceia de todos os nossos males. Ontem, em rasgo de humor, alguém dizia que o turismo é já tanto por cá (safra boa e má, a depender da perspetiva) que até o frio veio também fazer companhia ao verão. E anda um desnaturado – feio bicho, de resto, como diria Miguel Torga – por aí a negar as mudanças climáticas! Por sorte, está o quintal num brinco, com a laranjeira podada, a oliveira aparada e a glicínia viçosa, assim como pela vizinhança o limoeiro insinua-se frutos e a figueira é toda flores. Domingo, mais tarde sendo o final da Copa do Mundo e inclino-me pela Seleção da França (que é tomada de africanos), sem desmerecer a Seleção da Croácia (por alguns adeptos serem fascistas), pois essa “carneirada de fascistas” tem sido o mal que se divide pelas aldeias, até por Cabo Verde. Já auscultaram as queixas dos cidadãos da CEDEAO nas nossas fronteiras? Paremos de ver as realidades distantes quando não as vemos à nossa soleira. Sinceramente, era tão bom se homenageássemos o legado de Nelson Mandela, no dia 18 de julho, fechando a XII Conferência da CPLP em glamour, como amiúde mandaria o figurino em solo africano das nossas ilhas. Domingo, hoje, mas amanhã sendo o encontro Trump X Putin, em que não se discutirá o eco-desenvolvimento, a paz no mundo e o direito à mobilidade dos seres humanos. E agora, quero ficar nesta pele que é minha, como vaticinou Fernando Assis Pacheco sobre o merdalharem-se uns aos outros e topar que tanto quanto ao meio chuvoso, já chove mesmo a chuva que insiste em não ir falar mantenha para as nossas ilhas…