Por: Adriano Miranda Lima
O neoliberalismo, como corrente de pensamento ou pretensa ideologia, vem sendo, muitas vezes, confundido com o liberalismo clássico ou encarado como uma natural emanação do corpo dos seus princípios basilares, o que em minha opinião é errado. Vamos ver porquê.
Ora, o neoliberalismo é um conjunto de ideias políticas e económicas capitalistas que restringe ao máximo ou defende mesmo a não participação do Estado na economia, no pressuposto de que o crescimento económico e o desenvolvimento social só atingem níveis elevados mediante uma total ou irrestrita liberdade da iniciativa privada. Os seus autores consideram que o Estado se torna um entrave ao funcionamento do mercado livre ao deitar areia nas suas engrenagens funcionais e limitar a acção dos agentes económicos privados. Defendem a pouca ou nenhuma intervenção dos governos no mercado de trabalho, a privatização de empresas estatais, a livre circulação de capitais internacionais, a abertura da economia às empresas multinacionais, a oposição ao proteccionismo económico, a diminuição considerável da carga tributária, etc. Para os neoliberais, a redução dos salários dos trabalhadores é um simples detalhe no concerto de todas as medidas e estratégias para exponenciar o lucro capitalista e liberalizar os mecanismos económicos e financeiros. Para o efeito, criam-se crises artificiais por serem a via para colocar os países entre a espada e a parede no sentido de esvaziar os conteúdos dos estados sociais, que são uma realidade contra-natura e um estorvo à liberalização extremada das economias. E quando as crises não são suficientes para produzir os efeitos almejados, são logo arquitectadas outras que, tudo o indica, estão sempre subjacentes no estirador das suas congeminações. Não se questiona a lógica que provoca as crises, pelo contrário, é preciso reforçar os factores que potenciam a sua probabilidade.
Será importante ainda sublinhar que o neoliberalismo vê a educação e o ensino numa perspectiva de competitividade à escala internacional, permitindo a abertura do investimento no sector aos grupos económicos, o que desde logo tende a ter implicações na vertente identitária e cultural dos povos, com repercussões futuras que se podem prever mas não quantificar em todo o estendal das suas consequências. Intervir na formatação das mentalidades e idiossincrasias será para o neoliberalismo uma via estratégica irrecusável para atingir os objectivos de mudança e transformação radical que intenta com a sua visão do mundo global. Dir-se-á, assim, que o neoliberalismo é uma ideologia que tende a assumir um carácter totalitário.
O governo de Passos Coelho ofereceu-se como oportunidade para a aplicação das teses neoliberais em Portugal, sob o pretexto da correcção do défice orçamental e da redução da dívida. O governante até pensou em privatizar a Caixa Geral de Depósitos e a Segurança Social, além de outros sectores onde o levou a cabo, na ânsia de querer ser ainda mais radical do que a agenda que lhe entregaram e aceitou com resignada submissão. Mas felizmente devem ter-lhe chegado rumores suficientes para o desencorajar, mesmo entre os seus próprios correligionários, máxime os fundadores do seu partido ainda sobreviventes.
Não se pode responsabilizar o liberalismo pelas perversões que o neoliberalismo se permite numa interpretação abusiva da sua essência doutrinal: a liberdade individual, encarada como valor absoluto e elemento estruturante do progresso humano, e operando transversalmente num largo espectro onde se inscrevem a política, a economia, a justiça, a educação e a cultura. As raízes do liberalismo clássico remontam ao humanismo renascentista e como filosofia política e moral recebeu os contributos das concepções de John Locke, David Hume e Immanuel Kant. O mais importante contributo de Kant para o liberalismo foi no domínio da ética, particularmente quando, com o seu conceito de imperativo categórico, postula que os indivíduos devem agir em conformidade com aquilo que gostariam de ver como valor universal, não fazendo aos outros aquilo que não gostariam que os outros lhes fizessem. Assim, para Kant o homem e a sociedade estão subordinados a uma lei moral que é anterior ao estado de natureza, e por isso condição inata. Essa lei tem o seu fundamento na liberdade e é através do seu exercício consciente que se cria o direito e se tecem as linhas do contrato social, para edificação do Estado liberal.
Os pensadores franceses Pierre Dardot e Christian Laval entendem que o neoliberalismo se propõe como uma “nova razão do mundo”, e numa análise crítica, comentam (1): “já não há freio ao exercício do poder neoliberal por meio da lei, na mesma medida em que a lei se tornou o instrumento privilegiado da luta do neoliberalismo contra a democracia. O Estado de direito não está a ser abolido por fora, mas destruído por dentro para fazer dele uma arma de guerra contra a população e ao serviço dos dominantes”. Reconhecendo toda a razão àqueles autores, é impossível não descortinar que o neoliberalismo vai por caminho tortuoso ao pretender alterar a ordem do mundo através da economia, impondo uma realidade simbólico-imaginária em que o indivíduo é reduzido a um simples valor de mercado, submisso, egocêntrico, consumidor acrítico, micro peça de um sistema em que a concorrência, a disputa e a anulação do adversário derrogam valores como a compaixão, a dignidade humana e a solidariedade no seio das comunidades e entre as nações.
O liberalismo poderá ter costas largas para suportar todas as construções teóricas e congeminações sobre uma nova ordem mundial. Aceita-se que possa ser laboratório de novas experiências sociais, mas necessariamente com ideias e soluções que se conciliem com o seu legado mais puro, nunca para o subverter e contaminar. Este neoliberalismo como o conhecemos, que devia apodar-se de outro nome evitando identidades semânticas que comprometem o liberalismo, só pode ser olhado com desconfiança quando aposta em reduzir ou eliminar o Estado de direito democrático, que é onde ainda se resguarda a dimensão ética necessária para o homem se realizar como ser livre, responsável e solidário.
Poder-se-á pensar que o neoliberalismo acabará por soçobrar no confronto com movimentos sociais nutridos de renovada força ideológica. Mas não creio que haja razão para tanto optimismo porque há sintomas iniludíveis em sentido contrário. O que pensar quando o relatório “Freedom in the World” regista declínios alarmantes nos níveis dos direitos políticos e das liberdades civis durante anos consecutivos, de 2005 a 2018? Quando os partidos políticos da tradição democrática europeia sucumbem face a forças e movimentos políticos fragmentados e apostados mais na instabilidade do que num revigoramento do sistema democrático? Ou quando emergem na cena internacional líderes políticos que são autênticas bandeiras, mas também caricaturas, do neoliberalismo, como Trump e Bolsonaro?