Por: Arsénio Fermino de Pina*
Sarmento Rodrigues, na altura governador-geral de Moçambique, amigo e conselheiro de Adriano Moreira, propunha nessa reunião a criação do cargo de Vice-Presidente do Conselho, que seria o ministro do ultramar, dirigindo um ministério de simples coordenação das administrações autónomas das províncias ultramarinas. Marcelo Caetano desmarca-se da “nova desconcentração preconizada pelo governador-geral sustentando que qualquer solução teria de satisfazer três condições: permitir à diplomacia portuguesa obter a melhoria do ambiente internacional, não comprometer os interesses nacionais e, finalmente, ser administrativamente eficaz. Neste sentido, “a única modificação constitucional a tentar seria transformar o Estado unitário que hoje temos num Estado federal”. Assim, “a Comunidade Portuguesa (ou outro nome que se adoptasse), compreenderia Estados e províncias ultramarinas. Três Estados: Portugal, Angola e Moçambique, e as províncias da Guiné, S. Tomé, Macau e Timor. Cabo Verde receberia o estatuto de Ilhas Adjacentes.” E esta, hein?! como diria Fernando Pessa.
Uma solução desta só teria viabilidade no fim da década de quarenta início da década de cinquenta do século passado, totalmente inaceitável depois do início da luta pela independência das colónias, havendo já mortes e muito sofrimento, até porque os nacionalistas africanos bem tentaram dialogar com Salazar em busca de um futuro diferente para as colónias, a que ele, teimosamente, sempre se opôs. Se se tivesse utilizado antes todo o dinheiro que se veio a desperdiçar na luta colonial, na educação, construção de escolas, na saúde, infraestruturas, indústrias locais de transformação das matérias-primas coloniais e aplicação da justiça independentemente da cor da pele dos cidadãos com igualdade para todos, outra evolução teria tido o ultramar, com enormes benefícios mútuos e sem guerras.
As relações entre Adriano Moreira e Marcelo Caetano eram excelentes, mas danaram-se irremediavelmente com a criação do ISCSPU (Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas Ultramarinas) decidido por Adriano Moreira, a que Caetano sempre se opusera. Foi esse documento sobre a possibilidade de federação e a sua demissão de reitor da Universidade que levaram os conservadores e ultras do regime a manifestarem ao Presidente da República muita reticência quanto à escolha de Caetano para substituir Salazar. Este não tinha preparado ninguém nem falado num eventual substituto em caso de incapacidade ou morte; de entre os possíveis sucessores apontava-se Caetano, à cabeça, Franco Nogueira, seu biógrafo, Correia de Oliveira, duvidoso devido ao escândalo sexual do Ballet Rose, onde estavam metidos barões do regime, que o ministro da justiça Raul Ventura quis levar até às últimas consequências, mas Salazar se opôs, e Adriano Moreira, não apreciado pelos conservadores e ultras. Este tinha mandado reabrir o Campo de Concentração do Tarrafal para os presos políticos, os “terroristas”, quando ministro do ultramar, o que nega num dos seus últimos livros, uma entrevista com o jornalista Gonçalves da RTP, dizendo que foi o seu antecessor a fazê-lo, não ele.
Quanto à queda da cadeira de Salazar, em 1968, toda a gente ficou convencida de que a sua incapacidade foi imediata. Afinal, nem fractura teve, e somente ao cabo de algumas semanas é que começou a sentir dores de cabeça e se diagnosticou hematoma subdural (na opinião do seu médico assistente Prof. Eduardo Coelho), ou trombose (segundo o neuro cirurgião Vasconcelos Marques). Tratado cirurgicamente do hematoma à esquerda, foi-se recuperando satisfatoriamente, vindo a ter depois um grave AVC à direita que provocou coma durante bastante tempo e necessidade de respiração assistida em regime de cuidados intensivos, falecendo em fins de 1970. Os ultras fizeram tudo para que a nomeação de Caetano fosse a título interino enquanto Salazar fosse vivo, o que não aconteceu. A comunicação televisiva ao país do Presidente Américo Thomas da exoneração de Salazar deu muita lida e teve de se repetir três vezes, porque todas as vezes que o Presidente pronunciava “exonero Salazar”, se desfazia num pranto convulsivo e havia que repetir a cena para poder ser transmitida ao país.
Contou Salazar, ainda saudável e bem-humorado, aos seus ministros incondicionais e núcleo duro do regime que, “naturalmente, durante a visita do Papa Paulo VI a Fátima, em 1967 (a que era desfavorável por ele ter recebido os líderes “terroristas” em Roma, mas teve de ceder), tratei-o por Vossa Santidade. Sabem como me tratou o Santo Padre? Chamou-me Vossa Eternidade.”
Com Caetano já Presidente do Conselho e em visita ao ultramar, (Salazar não conhecia nenhuma parcela do ultramar) preparava-se um golpe de Estado da direita, por se pensar que Salazar iria recuperar-se e retomaria o seu posto. Só não avançou porque o famoso neuro cirurgião americano, Merritt, enviado pelo Governo dos EUA, para avaliar a recuperação do doente que ele tinha observado no início dos acontecimentos. Tendo examinado e falado longamente com Salazar declarou, categoricamente, que Salazar jamais recuperaria as suas capacidades, o que fez gorar as intenções dos golpistas.
A política defendida por Caetano foi de continuidade da de Salazar, com ligeiras mudanças semânticas: DGS, em vez de PIDE, ANP, em vez de UN, Exame Prévio, em vez de Comissão de Censura. A chamada “Primavera Marcelina” foi de pouca dura e as Forças Armadas, sujeitas a uma guerra que não entendiam nem sentiam necessidade de levar a cabo, subvertidas pela ideologia dos “terroristas” que defendiam a sua terra, finalmente revoltaram-se contra o Governo e fizeram o 25 de Abril, que pôs fim à longa ditadura e abriu novos horizontes ao povo português e aos povos colonizados.
Salazar utilizou, durante 22 anos, comprimidos e injecções de “Eucodal”, um derivado da heroína não comercializado em Portugal, que o amigo embaixador Marcelo Matias lhe enviava de Paris, e presume-se que também a jornalista francesa Christine Garnier, com quem teve um romance, quando vinha a Portugal. Interessante é que Hitler também utilizava opiáceos para minimizar dores e sentir-se bem antes dos discursos.
O jornalista e escritor Fernando Dacosta, conhecido da governanta de Salazar, Maria de Jesus, conta que a farsa encenada em torno de Salazar (como se ele não soubesse que já não era Presidente do Conselho), segundo lhe contou a governanta, era de inspiração soviética. Contou ela que “O Senhor Doutor havia-nos relatado, há muito tempo, que os russos, quando Lenine estava para morrer, faziam todos os dias um jornal falso para ele ler e não saber o que se passava.” O mesmo jornalista é de opinião que “Salazar sabia perfeitamente qual era a sua situação, mas, como estava diminuído, fingia. Também era manhoso.” Beneficiou durante a doença dos melhores cuidados médicos e de bem-estar até morrer vivendo nos últimos tempos de vida no Palácio de S. Bento como se ainda fosse Presidente do Conselho, em vez de ter ido parar às suas berças em Santa Comba Dão.
Parede, Fevereiro de 2019
*Pediatra e sócio-honorário da Adeco