Por: Pedro Moreira
À guisa de introito
No domingo, 16 de junho, ainda durante a missa das 10h30, na Pró-Catedral da Paróquia de Nossa Senhora da Graça, por intermédio do então celebrante, Pe. Edson Bettencourt, Chanceler da Cúria Diocesana, a notícia chegou algo inesperada e, como sempre – em qualquer morte -, brutal e inexorável. Nessa manhã, o Senhor Bispo Emérito da Diocese de Santiago de Cabo Verde, Dom Paulino Livramento Évora (o primeiro bispo natural de Cabo Verde e o primeiro bispo do país pós-independência nacional) “regressou à casa do Pai”.
Ainda a meio daquele tal momento de “briga e negociação” com o veredicto implacável do facto, dava comigo a pensar no que se poderia dizer, agora, in memorium, do bispo e do homem que marcou, de forma indelével – mesmo que, historicamente, seja ainda cedo para este tipo de conclusões avaliativas – a história da Igreja Católica em Cabo Verde e, porque não, a história deste país, que nasceu, em termos de soberania, semanas depois da sua eleição episcopal a 1 de junho de 1975. Não será por acaso o lema do serviço pastoral por ele escolhido, “N mandadu da nhos um noba di Deus djunto ku notisia di libertason” (cf. Lc 4,8), expressa, de forma clara, a convergência, do seu projeto pastoral e ministério episcopal e o nascimento de um novo país para a liberdade e o desenvolvimento.
Entretanto, ainda no meio dessas reflexões, eis que o meu amigo diretor do jornal me chama e me deixa o repto de contribuir com um testemunho ou crónica, que seja, de leigo cristão sobre a morte do Bispo Emérito Dom Paulino ao que não pude recusar, tamanha a minha dívida para com o Sr. Diretor, desde que reassumi continuar a “saldar a minha dívida para com o meu povo e viver a minha época”, ficando sem tempo para as minhas prometidas regulares crónicas cívicas e cidadãs. A meio da resposta ao repto, aproveitei da presença, no momento, de uma amiga e companheira de lutas sociais, para um breve inquérito sobre o que as pessoas quereriam, precisariam e deveriam ler e saber sobre uma figura como o Bispo Emérito, não esquecendo o que eu, igualmente, gostaria, poderia e deveria escrever e comunicar, passando sempre pelo crivo das três peneiras de Sócrates. Claro, revisitei um pouco, ainda que mentalmente, o que tinha escrito em momentos semelhantes, nomeadamente, aquando do falecimento do mui amado Papa São João Paulo II em 2005 e do sempre saudoso amigo, Pe. Pimenta Pereira em 2007.
Foi então que, pensando bem na conversa que pude seguir, nessa manhã, na RCV, entre os jornalistas, a propósito da morte do Bispo Emérito, assunto/tema do dia da rúbrica “Opinião Pública” e da iliteracia religiosa geral reinante entre os cabo-verdianos e alguns jornalistas, em particular no que diz respeito à religião cristã e à Igreja Católica, tratando-se, como se sabe, de uma especialidade dentro da comunicação jornalística, como são a politica, a economia, a cultura, o ambiente, etc. Não tive mais dúvidas. A minha crónica precisa ser sobre “o bispo”, o sucessor dos Apóstolos por instituição divina, mediante o Espírito Santo que lhe foi conferido, constituindo-o Pastor da Igreja com a missão de ensinar, santificar e guiar, em comunhão hierárquica com o Sucessor de Pedro e com os outros membros do Colégio Episcopal.
Antes do homem, depois e mais do que homem, o bispo (do/no teu tempo)
Para além do lugar e espaço e porque o tempo é-lhes superior, não haverá como desassociar “esse tempo” em que Dom Paulino Évora foi eleito bispo e o a que foi chamado a cumprir o seu múnus episcopal; um tempo particular de Deus e dos homens, kairós e chronos. Efectivamente, se “para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus…”, o bispo sabe, de fato, ter sido enviado por Deus, senhor da História, para edificar a Igreja no lugar e nos “tempos e momentos que o Pai fixou com a sua autoridade”. Creio que, pelo seu discurso, posicionamentos e ações, Dom Paulino nunca fugiu a esse mandato divino, ele um missionário por natureza e ofício. Efetivamente, hoje, com algum distanciamento cronológico e afetivo, e a história versará sobre isso, Dom Paulino Évora não pôde – parece-me que nem poderia – deixar de ser marcado e marcar indelevelmente o tempo e o itinerário históricos que coincidiram com a sua eleição episcopal e toda a sua trajetória até se renunciar dentro do tempo requerido com a aceitação pelo Papa, três anos depois, em julho de 2009.
Como ele diria numa entrevista, era tempo de um novo país e de “muita confusão”; de uma igreja local que buscava também ela “caminhos novos” juntamente com uma nação que ajudou a fundar e a modelar mas que muitas vezes, qual filho pródigo, lhe pede a parte da herança que lhe cabe para ir desbaratar lá longe. A Igreja que é sempre mãe e pai, estará sempre de portas abertas para todos os seus filhos, os mais novos e os mais velhos. Isso foi que se viu ao longo dos seus 44 anos de episcopado, 34 dos quais à frente da Diocese de Santiago de Cabo Verde, com um país, muitas vezes, em busca desenfreada de certos paradigmas de desenvolvimento que ele tão energicamente defendeu que só podia ser integral, o que foi admiravelmente confirmado, em pessoa, pelo Pastor Universal, João Paulo II, na sua visita apostólica a Cabo Verde, de que no próximo ano celebramos 30 anos.
Entre o “kronos e kairos”, é sobretudo aquele que o Apostolorum Sucessores enuncia, por diversas vezes, que, entre outros, o bispo deve estar atento para compreender, interpretar e avaliar os sinais e as suas exigências; para descobrir o que o Espírito Santo transmite à Igreja; acompanhar as correntes culturais e sociais do pensamento; responder, à luz da Palavra de Deus e na fidelidade à doutrina e disciplina da Igreja, às novas questões que surgem da sociedade.
Na prossecução desses enunciados, o Bispo, “preparado para toda a obra boa” e “suportando tudo por amor dos eleitos”, orienta a sua vida de maneira que ela corresponda às necessidades dos tempos. Afinal, Instruída pelo seu Senhor, é a própria Igreja que perscruta os sinais dos tempos e interpreta-os, oferecendo ao mundo “o que possui como próprio: uma visão global e integral do homem e da humanidade”. Se bem que, por vocação, transcenda os tempos e os confins das nações, devendo estender-se a toda a terra, a Igreja, como ensinou o Concílio Vaticano II, entra na história dos homens, como participante da suas vicissitudes e solidária com as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem.
É preciso ter sempre presente que, o ministério do bispo não abrange unicamente os fiéis da sua Igreja particular, nem sequer a Igreja é a única destinatária da sua solicitude pastoral. Ele é chamado a suscitar a esperança das realidades transcendentes e das realidades escatológicas.
Cumprida a sua missão terrena, no tempo e no espaço que ao Pai aprouve, até um dia Dom Paulino Livramento Évora.
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