Esta foi a quarta vez que o juiz-conselheiro José Pina Delgado solicitou, ao presidente do Tribunal Constitucional (TC), a escusa de participar em certos julgamentos. Nas três vezes anteriores trataram-se de casos que se relacionavam, essencialmente, com questões de parentesco. Desta feita, José Pinto Semedo entendeu que “não há partes” em confronto ou em conflito.
Para Pinto Semedo, “está claro” que o “venerando” juiz-conselheiro José Pina Delgado “não está impedido” de intervir no processo de fiscalização abstracta sucessiva de constitucionalidade do SOFA (“Status of Forces Agreement”), pelo facto de ter emitido um parecer sobre esse acordo.
De acordo com aquele magistrado, a natureza objectiva da fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade está bem patente na norma do artigo 59º da Lei do Tribunal Constitucional quando apenas admite a desistência do pedido nos processos de fiscalização preventiva da constitucionalidade, não o permitido em sede de controle abstrato sucessivo.
“Fica patente”, advoga, “que nesse tipo de processo não há partes, não há conflito de interesses entre as partes. A entidade que requer o controle de constitucionalidade não é opositora do autor da norma, razão pela qual não se pode desistir do pedido. Significa que uma vez suscitada uma questão de constitucionalidade, o interesse público no esclarecimento da situação normativa mantém-se até ao desfecho do processo, independentemente da posição de quem venha a suceder o requerente”.
Na sua longa fundamentação, o presidente do TC lembra que a fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade e da legalidade, “efetiva-se, naturalmente, no âmbito de processo objetivo, ou seja, sem partes”. Para ele, “nesse tipo de processo, o Tribunal Constitucional verifica se uma determinada norma viola as normas ou princípios constitucionais nela consignados e as remove definitivamente do ordenamento Jurídico”.
Parecer extra-processual
Um outro argumento que aquele magistrado considera “relevante” para afastar o impedimento de Pina Delgado pelo facto de ter emitido o parecer em causa “é a falta de identidade entre as questões objeto do parecer e as constantes do requerimento em que se pede a declaração de inconstitucionalidade de certas normas do SOFA-EUA”.
“Outrossim, tratava-se de um parecer extra-processual que se destinava a preparar uma negociação internacional, ainda na fase embrionária”, realça Pinto Semedo.
Para o presidente do TC, o facto de Pina Delgado ter sido autor daquele parecer, este facto “não o inibe de analisar exaustivamente todo os argumentos arrolados, promover a requisição e careação para os autos de todos os elementos que considere pertinentes e imprescindíveis para a boa decisão, aliás, como tem feito em relação a todos os processos em que tem intervindo”.
Pina Delgado: manter ou não manter posição?
Diante da recusa do seu pedido de não participar no julgamento do SOFA (“Status of Forces Agreement”), resta agora saber como irá o juiz conselheiro José Pina Delgado se posicionar diante dos recursos interpostos pelo Grupo Parlamentar do PAICV e eventualmente do Grupo de Cidadãos que, através do Provedor da Justiça, suscitou também o posicionamento do Tribunal Constitucional.
No entanto, ao que A NAÇÃO julga saber, o aludido “esboço aparentemente zero”, sobre o qual Pina Delgado se pronunciou no seu parecer, é praticamente o mesmo documento que suporta o acordo SOFA entre Cabo Verde e EUA (Estados Unidos da América).
Ora, segundo o referido “parecer”, emitido em 2011 e que A NAÇÃO divulgou, em primeira mão, as principais questões jurídicas que poderão ser suscitadas no SOFA estão ligadas às imunidades de jurisdição criminal e civil e exercício de poderes jurisdicionais em território nacional; entrada e saída no território nacional; direito de portar uniformes e armas em Cabo Verde; isenções de impostos e taxas; solução de controvérsia e manifestação de consentimento e entrada em vigor.
Com o SOFA será aplicado ao pessoal dos EUA o que a Convenção de Viena propugna em relação aos diplomatas. Ou seja: imunidades completas de jurisdição criminal, o que significa que qualquer crime cometido por um membro do pessoal dos EUA, estando no exercício de funções oficiais ou não, sempre estaria protegido de qualquer avocação jurisdicional interna, “a menos que, evidentemente, nos termos do Direito Internacional Diplomático, que se utiliza num quadro de remissão, houvesse renúncia expressa a tais prerrogativas pelo Estado de envio”.
Para Pina Delgado, a nível constitucional, a concessão de imunidades de jurisdição criminal “pode ser particularmente difícil de compatibilizar com o princípio da igualdade e com o direito fundamental à igualdade consagrado no artigo 24º da Constituição, vedando, grosso modo, tanto o tratamento discriminatório, abaixo da lei, como privilegiando, acima dela”.
O consultor questiona se a proposta dos EUA de concessão de imunidades completas de jurisdição ao seu pessoal de patrulhamento-conjunto “seria proporcional, no sentido de que o sacrifício que se faria ao princípio da igualdade seria compensado ao nível do interesse público em questão”.
DA
(Publicado no A NAÇÃO impresso, nº 615, de 13 de Junho de 2019)