Por: Danilson Mascarenhas Varela*
A terminologia direita e esquerda são termos antitéticos por essência. Por assim serem, fazem com que por manifesta falta de tolerância social ou excesso de fanatismo ideológico, a convivência social, assim como o debate civilizado de ideias entre indivíduos com pensamento sociopolítico distinto seja cada vez mais áspera. Muitos ideólogos advogaram, no final do século passado, que com o fim da União Soviética e a queda de Muro de Berlim em 1989, as ideologias, mormente as ideologias políticas, entraram em crise. Entretanto, o partidarismo excessivo, o nacionalismo exacerbado, o pluralismo ideológico, a segmentação social, a natureza técnica complexa dos problemas socioeconômicos, os contornos delicados da imigração na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA), a emergência de movimentos sociais de cariz político-partidária, as sucessivas crises econômicas (1929, 1973, 1979, 2000 e 2008), ora marcada pela manifesta imperfeição do estado, ora pela evidente falha de mercado, fazem com que a guerra ideológica seja tão antiga como atual. Uns defendem uma economia liberal e as políticas monetaristas defendidas por Milton Friedman, outros auguram as políticas macroeconómicas intervencionistas de John Maynard Keynes; uns defendem a economia de mercado, outros atacam-na sob argumento de que ela é instável; uns são progressistas, outros conservadores; uns defendem a igualdade social, outros a liberdade individual. Uns são pró-estado outros pró-mercado; uns são da esquerda, outros são da direita.
O pensamento político atual é herdeiro da história e as eleições são reflexos de ciclos económicos e da mudança do pulsar popular, normal numa democracia. A disputa pela cadeira presidencial recente nos Estados Unidos da América, Itália e Brasil deram vitorias à direita ou à extrema direita na visão de vários analistas, pelo fato dos discursos conterem doses de extremismo, nacionalismo, populismo, libertarismo, anti-imigração, anti estado e pró-mercado. No decorrer da história tivemos extremismo de ambos os lados. A guerra ideológica continua, com novas munições e antiga artilharia, de tal modo que um provável cessar fogo parece improvável, pelo menos tanto quanto dure a situação sociopolítico atual. O Brasil, um país em que os eleitores são por essência emotivos, sensíveis, partidários e com culto a personalidades políticas, em certa medida, um pouco excessiva, é um dos exemplos mais emblemático do confronto ideológico esquerda-direita. O embate político para as presidências de 2018 que culminou com a eleição de Jair Bolsonaro, uma personalidade política, tido por muitos como politicamente incorreto, com discurso não raras vezes agressivo, deixou mágoas e feridas quase que incuráveis nos corações mais sentimentais de ambos os lados. Há relatos de que alguns familiares próximos cortaram relações, de amigos que assassinaram o diálogo cordial e casais que interromperam prematuramente as relações; juntos até que o fanatismo ideológico os separasse.
O país antes já dividido em termos geográficos, económicos, social e racial, tornou-se mais polarizado; de um lado temos a esquerda – socialista-, “esquerdotapa” ou “Petralha”, carinhosamente apelidada pelos adversários, e de outro lado temos a direita -conservadora, libertaria-, ou “fascista”, gentilmente denominada pelos rivais. E o lema para uma sã convivência é o seguinte, “não me toca que eu te mordo, dentes não me faltam”. E de facto argumentos repletos de ofensas verbais e vazio de lógica, de conteúdo e de tolerância discursiva abundam de ambos os lados.
E nosso amado Cabo Verde não foge à regra, na medida em que o partidarismo é, outrossim, excessivo e os ciclos de amizades são quase que delimitados por simpatia ideológica. A crispação política atinge contorno pouco aceitável. À frente das câmeras os discursos são inflamados, recheados de ofensas e acusações mútuas, não raras vezes pouco fundamentados. A ala mais à esquerda acusa o seu adversário político de ser antipolíticas sociais e pouco patriota, ao passo que a ala mais à direita afirma que por imperativo ideológico, o seu maior oponente político é anti investimento estrangeiro e anti mercado. Tais afirmações não encontram respaldo numa análise desapaixonada das suas políticas governamentais. Trata-se apenas de jogo de palavras entre partidos ideologicamente diferentes e ambas as asseverações estão manifestamente equivocadas, ao menos nos termos que são colocadas.
Afinal de contas, o que é ideologia e o que é isso de ser de direita ou de esquerda? Como e quando surgiram estas terminologias na ciência política e o que esta por detrás delas ao ponto de causarem tanto confronto sociopolítico? Quais critérios deveríamos usar para identificar se uma determinada política governamental é de esquerda ou de direita? Qual destas ideologias é a melhor, tendo em conta os desafios socioeconómicos dos nossos tempos?
Segundo Chauína (2008), o termo ideologia aparece pela primeira vez em 1801 no livro do filósofo Antoine Destutt de Tracy, intitulado Eléments d’ldéologie (Elementos de Ideologia). Destutt de Tracy pretendia elaborar uma ciência da gênese das ideias. O conceito de ideologia foi, outrossim, destacado pelo também filósofo Karl Marx, que ligava ideologia aos sistemas teóricos políticos criado pela classe social dominante visando manter os mais ricos no controle social. Na visão de Bobbio (1994), falar de ideologia é falar de crenças políticas, religiosas e sociais distintas, ditas por outras palavras, falar em ideologias, é falar de um conjunto de ideias, pensamentos de uma pessoa ou um conjunto de pessoas e de valores a respeito da ordem pública, tendo por finalidade orientar o comportamento social. No século XX inúmeras ideologias conseguiram destacar-se, a título de exemplo temos: ideologia fascista, implantada na Itália e na Alemanha nas décadas de 1930 e 1940; ideologia comunista, implantada na Rússia e vários países do leste europeu após a Revolução Russa de 1917; ideologia capitalista, a ideologia económica largamente dominante no mundo atual, seu objetivo é o lucro e acumulação de capital através dos meios de produção; Ideologia anarquista que defende a liberdade e a eliminação do estado e de todas as formas de dominação e controlo de poder; ideologia de género, tão famosa quanto controversa e atual, segundo a qual não existe apenas o género masculino e feminino, mas um espectro muito mais amplo.
No decurso da história, a termologia ideologia, teve conotação um pouco pejorativa, sobretudo com a declaração de Napoleão Bonaparte que, num discurso ao Conselho de Estado em 1812, declarou: “Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história.”
Posto isto, convém esclarecer em que consiste a ideologia política esquerda-direita e quais foram os contornos da sua génese. A definição de esquerda e direita surge em 1789, aquando da Revolução Francesa, com a Assembleia dos Estados Gerais. No plenário confrontavam-se os Jacobinos e os Girondinos. Os jacobinos sentavam-se à esquerda, defendiam uma mudança radical, assim como o fim do regime absolutista, estavam alinhados com os mais pobres e os trabalhadores. Os girondinos sentavam-se à direita, tinham uma visão mais conservadora, ligada a um comportamento tradicional, buscava uma boa articulação com a nobreza e a alta burguesia. Em suma, a origem da dicotomia esquerda-direita reflete a transformação da divisão espacial e simbólica numa divisão ideológica.
Antes de esclarecer em que consiste ser de esquerda ou de direita no contexto sociopolítico atual, convém frisar que direita e esquerda não são conceitos absolutos. Os termos ganham com decorrer do tempo novas roupagens.
Pretende-se discorrer no presente texto, principalmente essa mudança de conteúdo. Pois, não raras vezes, esses conceitos são analisados e interpretados de forma anacrónica, isto é, desconsiderando o contexto temporal e cultural, o que leva, consequentemente a conclusões equivocadas. O liberalismo clássico, creditado ao filosofo inglês John Locke do seculo XVII, estava fundada sobre liberdade individual, social, religiosa, económica e política. O termo liberal usado nos Estados Unidos da América (mais próximo do liberalismo clássico) tem uma conotação muito diferente do termo liberal usado no Brasil e em vários países europeus. No Brasil, a título de exemplo, o termo liberal está restringido à dimensão económica, sendo que uma pessoa liberal está associada ao lado direito do especto político. Em sentido oposto, nos Estados Unidos, ser liberal é ser de esquerda. Portanto, o Partido Democrata é liberal – defensor de liberdades individuais e de várias medidas progressistas, nomeadamente do direito ao aborto, do casamento homossexual, do uso de ervas (lê-se maconha), de medidas assertivas para mitigar os efeitos de mudança climática, de políticas de empoderamento das mulheres, do grupo LGTB. O Partido Republicano por sua vez é conservador – defensor das tradições, da hierarquia, dos velhos costumes, da religião, dos valores tradicionais da família, é, portanto, contra a maioria de políticas progressistas. Vale a pena ressalvar que o liberalismo clássico pregava liberdade em todas as esferas, tanto liberdade económica (livre mercado, direito à propriedade e à iniciativa privada) como liberdade individual e sociopolítica (o que inclui em certa medida vários ideais progressistas).
Normalmente associamos o liberalismo à direita sempre que pretendemos ressalvar a relevância que este dá à propriedade e ao livre mercado. Entretanto, sabe-se que o liberalismo está de igual modo intrinsecamente ligado à esquerda, uma vez que esta é pro políticas progressistas. Segundo Noberto Bobbio, a terminologia liberal serve tanto à direita quanto à esquerda. Portanto, a direita pode ser conservadora e/ou liberal e a esquerda pode ser socialista e/ou liberal. Do ponto de vista diacrónico, nas primeiras décadas do século dezanove, toda a direita era eminentemente conservadora e toda a esquerda liberal.
Em consonância com a afirmação supra, pode-se diferenciar a direita da esquerda por meio de duas dimensões: a económica e a social. Apesar de ter uma ênfase excessiva no campo das ideias e políticas, a grande diferença da esquerda e direita é mesmo no campo económico. Pode-se dizer, de uma forma simplificada, que no campo económico a esquerda defende políticas coletivistas que promovam a igualdade social (socialismo) e direita é mais propensa a políticas individualistas que fomentem a competição e eficiência (capitalismo). Estas diferenças são resumidas da seguinte forma:
ESQUERDA | DIREITA |
Socialista – meios de produção sob controle da coletividade. Enfase à igualdade social. | Capitalista – meios de produção sob controle dos indivíduos. Enfase à eficiência económica. |
Maior regulação da economia – o Estado deve intervir na economia por meio de medidas fiscais e monetárias, a fim de mitigar os efeitos adversos dos ciclos económicos (recessão, depressão e boons), conforme advoga o economista John Maynard Keynes. | Menor regulação da economia – não há necessidade de o Estado intervir em questões econômicas, pois o mercado se auto-regula. Ênfase na “mão invisível” do mercado e self interest defendido pelo filosofo e economista britânico Adam Smith. |
Maior carga tributária – os impostos devem ser extensivos para financiar o Estado e oferecer serviços de qualidade para os mais necessitados. | Menor carga tributária: Imposto alto impede crescimento económico, na medida em que sobrecarrega as empresas e os indivíduos. |
Maior regulação do mercado de trabalho – Defesa de uma ampla legislação trabalhista que normatize o mundo do trabalho e proteja o trabalhador, considerado elo mais fraco face ao patronato | Menor regulação do mercado de trabalho – regulação do mercado de trabalho aumenta o desemprego. O mercado de trabalho deve ser desregulado visto que o mercado auto-regula as relações trabalhistas. |
Segundo Lisboa, Pessoa e Bechara (2016), o debate sobre política econômica nas principais economias do mundo decorre da contraposição de trade offs . Alguns preferem países mais igualitários, com maior justiça social ainda que isto signifique menor crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Outros, por sua vez, aceitam maior desigualdade em troca de maior crescimento.
No que se refere à liberdade individual na esfera social, é um pouco mais difícil estabelecer a diferença entre a esquerda e a direita. Pode-se dizer, com alguma margem de erro, que nesta dimensão, a esquerda é pro políticas afirmativas e pró empoderamento das minorias ou grupos económicos desfavorecidos (as mulheres, os negros, a comunidade LGTB, os imigrantes), enquanto que a direita advoga que qualquer intervenção para promover a igualde social resultará em mais anamalias sociais. Esquematizando num quadro comparativo temos:
ESQUERDA | DIREITA |
Defesa de políticas afirmativas para grupos desprivilegiados | Ações afirmativas, i.e., cotas raciais, são discriminatórias |
Legalização do aborto | Criminalização do aborto |
Pouca ênfase na religião – favorável ao estado laico | Defesa da religião e dos valores religiosos |
Liberalização da marijuana | Criminalização do uso da marijuana |
Fonte: adaptado Almeida (2001)
Em suma, a visão da direita da economia baseia-se e relaciona-se eminentemente com direito à propriedade, à iniciativa privada, com a desregulamentação do mercado, menos Estado na economia, menos subsídios à atividade produtiva. O Estado, segundo a direita clássica, seria pouco necessário, pois o mercado auto regula-se pela lei da oferta e da procura, no dizer de Adam Smith, o mercado é controlado e regulado pela “mão invisível”. A liberdade social relaciona-se um pouco mais com o livre arbítrio, com a liberdade de desempenharmos qualquer papel social com o qual nos identificamos. Com esse olhar e sentido de liberdade social e religiosa, todos os indivíduos são iguais e deveriam ter a mesma liberdade de escolha.
Qual destas ideologias é a melhor, tendo em conta os desafios socioeconómicos dos nossos tempos?
Antes de mais convém ressalvar que às vezes ambas as ideologias apresentam juízos valorativos que não condizem com a realidade dos fatos. A esquerda equivocadamente sente-se mais humana, moralmente superior em relação à direita. Em contrapartida, a direita, da mesma forma equívoca, julga-se ser mais esclarecida, e intelectualmente mais inteligente. Ambos não poderiam estar mais enganados quantos aos seus preconceitos ideológicos. Nem o carácter muito menos a inteligência têm relação com direita ou esquerda. Temos homens cruéis ou desprovidos de sabedoria de ambos os lados. Há uma célebre frase de Georges Clemenceau que colabora em parte com esta visão distorcida. De acordo com Clemenceau “um homem que não seja socialista aos 20 anos não tem coração. Um homem que ainda seja socialista ao 40 não tem cérebro”. A título de exemplo o atual presidente do Brasil, disse aquando aos embates eleitores de 2018 que face a uma prova de seria de todo impossível, ele não ter uma nota superior ao Ex presidente Lula da Silva e Dilma juntos. A base para tal afirmação é nula. Somos tentados a pensar que por pensar diferentes somos mais inteligentes.
Na visão de Lisboa, Pessoa e Bechara (2016), a escolha entre crescimento ou igualdade requer juízo de valor. Cabe à sociedade, por meio de suas instâncias deliberativas, decidir sobre a política pública. Nesse caso, a economia nada tem a dizer. Seu papel é apenas apresentar a melhor evidência sobre as diversas possibilidades e suas implicações.
Ademais, mais ou menos Estado na economia depende do estágio do desenvolvimento sócio- económico do país. Em países onde os mercados são competitivos e os privados estão consolidados, de modo que consigam prestar todos os serviços básicos à população, não há necessidade de uma forte intervenção estatal, entretanto em países onde o empresariado está desprovido de capital e a economia encontra-se em estágio inicial de crescimento, o Estado deve intervir de modo a impulsionar o desenvolvimento socioeconómico. A título de exemplo, os países nórdicos da Europa (Noruega, Dinamarca, Islândia, Finlândia e Suécia) apresentam um alto estado de bem-estar social e com uma das cargas tributárias mais altas do mundo, na Dinamarca o Imposto de Renda chega a 52,2 %, entretanto o Estado intervém muito pouco no funcionamento da economia. Já nos países asiáticos o estado de bem-estar social não é muito generoso, mas contaram com uma forte intervenção estatal no seu processo de desenvolvimento. Os países latinos da Europa têm um bom estado de bem-estar social e o Estado intervém mais no funcionamento da economia, ou seja, todas as combinações são possíveis, depende do estágio do desenvolvimento, da cultura empresarial e social de cada nação. Ademais, a economia não é uma ciência exata, existem inúmeras maneiras de atingir o progresso e o bem-estar.
*Doutorando em Saber Tropical e Gestão