Por: Fernando Ortet*
A imprensa privada, independente, livre, plural e fiscalizadora, no que se refere a jornais impressos em Cabo Verde, encontra-se ferida de morte por três ordens de factores:
1. reduzida dimensão e dispersão do mercado;
2. débil compreensão do papel dos media, associada ao que se pode chamar de canibalização financeira;
3. um Estado sanguessuga que, por via fiscal, procura dificultar o mais que puder a existência de jornais credíveis e independentes.
Qualquer jornal privado obtém recursos para o seu funcionamento através da:
a. venda de espaços comerciais (anúncios, publicidades, publi-reportagens);
b. venda de exemplares (assinaturas, bancas ou ardinas);
c. incentivos do Estado.
Em Cabo Verde, a partir de 1995, e por mais de duas décadas, só podia beneficiar de incentivos do Estado o meio de comunicação regular impresso que ocupasse até 1/3 da sua área total com informações que gerasse receitas.
Hoje, com o Decreto Lei nº 55/2017, de 20 de Novembro, o Estado impõe no artigo 7º, alínea g) que ficam excluídas do incentivo público as publicações “que ocupem com conteúdo publicitário uma superfície superior a 50% do espaço disponível de edição…”
Isto, note-se, antes de prosseguirmos, num país onde os meios públicos, nomeadamente a RTC (Rádio e Televisão de Cabo Verde), financiados pelo Orçamento do Estado, disputam com os privados a pouca publicidade existente no mercado.
Se até 2017, um 1/3 do jornal podia ser comercializado, hoje, com o referido decreto, o limite passou a ser até 50%!
Por serem a publicidade e os anúncios as principais fontes de financiamento de um jornal privado, isso significa que cada página vendida tem, necessariamente, de cobrir, no mínimo, o custo de cerca de três páginas, para se poder aguentar as despesas de impressão, transportes, comunicações e jornalistas e outras despesas que são fixas. E estamos a falar de quando se vende uma página pelo seu valor real, isto é, sem descontos.
Canibalização financeira
Aliás, a propósito de publicidade e de anúncios, é de se perguntar como é que o seu mercado evoluiu em Cabo Verde ao longo dos anos?
Em Março de 2014, tínhamos três jornais: A NAÇÃO, A SEMANA e EXPRESSO DAS ILHAS.
Naquele ano, A SEMANA vendia uma página de anúncio a 37.500$00, A NAÇÃO a 35.000$00 e o EXPRESSO DAS ILHAS a 23.000$00, com IVA incluído.
Desde Junho de 2016, após o encerramento do A SEMANA (impresso), o A NAÇÃO passou a vender uma página de anúncio a 22.000$00, com uma redução de 31% do valor até ali comercializado, significando uma perda de 156.000$00 por semana, 664.000$00 mensais.
Portanto, eis, pois, o resultado da autofagia, ou canibalização financeira, de receitas de anúncios, ditada pela concorrência entre os jornais. Na prática, hoje, está-se a vender espaços para anúncios, assim como para publicidade, por um preço inferior ao seu custo efectivo, o que leva os jornais a se devorarem para poderem continuar a existir, minimamente.
Claro que para sobreviver, o A NAÇÃO, que tem como seu forte o jornalismo de investigação e de grandes reportagens pelas ilhas, preocupado o tempo todo com o país no seu todo, foi forçado a diminuir todos os seus gastos, inclusive com o pessoal, nomeadamente jornalistas, com manifesto prejuízo para a qualidade e diversidade dos conteúdos a que habituou os seus leitores. Realço, aqui e sem qualquer auto-elogio, que o jornal A NAÇÃO tem sido o órgão impresso, cujos jornalistas conquistaram maior número de prémios e de reconhecimento na história de Cabo Verde. Portanto, a qualidade que oferece é reconhecida.
Infelizmente, se por um lado, os preços das páginas comerciais diminuíram, por outro, constata-se que as instituições públicas inserem cada vez menos publicidades, publi-reportagens ou cadernos que outrora faziam.
Da nossa parte custa-nos dizer que momentos há em que temos a percepção de que a publicação de publicidade, anúncios e cadernos, por parte de organismos do Estado ou as suas empresas participadas, não se deve apenas à tiragem ou à credibilidade dos jornais.
Aliás, os leitores, atentos que são, já se terão dado conta disso, num quadro por vezes de promiscuidade tal que nos leva a interrogar se as entidades que zelam pela concorrência, que regulam o sector da Comunicação Social, estão a ver o mesmo que nós vemos, semana sim, semana sim…
Este tipo de receio ganha alguma consistência, tendo em conta a experiência vivida nos anos noventa quando, na altura, dois governantes instruíram os seus subordinados a não inserirem publicidades e anúncios no então único jornal não oficial, o A Semana. Será que estamos a voltar a esse tempo, ainda que com outros métodos? Oxalá que não.
Preço de capa
Em Cabo Verde o preço dos jornais foi sendo ajustado ao longo dos anos, mesmo aqueles que eram do Estado (ver quadro). E, mesmo com os preços ajustados, o preço de capa nunca cobriu os custos reais dos jornais.
Historicamente, o VOZ DI POVO (VP), jornal do Estado, começou a ser vendido, a 17 de Julho de 1975, por 3$00. Um ano mais tarde, em 1976, passou para 5$00, um aumento de 67%. Sete anos depois, em 1983, passou para 10$00, um aumento de 100%. Cinco anos depois, em 1988, passou a ser vendido a 20$00, de novo um aumento de mais 100%. Concluindo, de 1975 a 1988, ou seja, em 13 anos, o extinto VP teve um aumento de 567%.
No caso do HORIZONTE, também ele um jornal do Estado, sucessor do NOVO JORNAL CABO VERDE – que, por sua vez, sucedera ao jornal VP -, começou a ser vendido, a 23/12/1998, por cem escudos, mantendo esse preço até à sua extinção, em Dezembro de 2006.
O caso que interessa muito nesta apreciação é o do A SEMANA, cujo primeiro número saiu a 26 de Abril de 1991, com o preço de capa a 50$00. Dois anos mais tarde, em 1993, passou para 60$00, um aumento de 20%. Em 1994, apenas um ano mais tarde, para diminuir o seu défice, o jornal passou a ser vendido a 100$00. Concluindo, de 1991 a 1994, ou seja, em três anos, o A SEMANA teve um aumento de 100%.
O EXPRESSO DAS ILHAS começou em 2002 a 70$00. Mas teve esse preço apenas durante quatro edições, pois, a partir do número 5, passou a ser vendido a 100$00, continuando até hoje com esse preço. Em apenas quatro semanas, aumentou o seu preço de capa em 43%.
O A NAÇÃO, cujo primeiro número saiu a 07 de Setembro de 2007, começou a 100$00; onze anos depois continua a ser vendido pelo mesmo preço: 100$00.
Como rapidamente se pode observar, há 24 anos que os jornais generalistas, em Cabo Verde, são vendidos a 100$00. Nenhum outro produto vive situação igual. Os cuidados de saúde estão mais caros, a alimentação está mais cara, a educação e a justiça estão mais caras, a cerveja, o tabaco, os combustíveis estão mais caros, em síntese, tudo custa mais, menos os jornais!
Para piorar o cenário de poucas receitas através das publicidades, anúncios e venda de jornais, de 1994 a 2017, os transportes aumentaram mais de 100% entre as ilhas, bem como entre Cabo Verde e Portugal, onde A NAÇÃO é impresso. A partir do monopólio dos transportes aéreos entre as ilhas, entregue à Binter CV, a situação tornou-se verdadeiramente dramática: o mesmo jornal que é transportado para as ilhas de São Vicente, Sal, Boa Vista, Fogo e Maio passou, na prática, a custar, em média, mais do dobro do que custava em 2017.
O Governo, que formalmente contribuía com até 50% para o transporte dos jornais através do porte pago (ainda que na prática nunca tenha custeado 10% desse valor), deixou de incentivar com um único centavo o transporte dos jornais para São Vicente, Santo Antão, Sal, São Nicolau, Boa Vista, Maio, Fogo, Brava, assim como para a diáspora. Por conseguinte, as ilhas que eram periféricas, do ponto de vista de jornais, estão mais marginalizadas do que nunca. Fazer chegar um jornal, hoje em dia, a São Nicolau, Boa Vista e a outras ilhas chega a ser uma epopeia!
A título de comparação, em Portugal, dos três principais semanários actuais, o EXPRESSO é vendido a 3,80 Euros, o SOL e o DIÁRIO DE NOTÍCIAS a 3,00 Euros.
Além de terem maior mercado de publicidade e de leitores, nenhum deles tem de pagar transportes tão caros como em Cabo Verde. Logo, salvo as devidas “desproporções”, e seguindo a lógica comparativa dos preços dos produtos entre os dois países, o preço dos semanários em Cabo Verde teria de ser, pelo menos, 400$00, em vez de 100$00. Apesar desta ser verdade, terá o leitor habitual capacidade para comprar um jornal por mais de 200$00?
Incentivo do Estado
Como atrás foi dito, as duas principais fontes de financiamento dos jornais, em Cabo Verde, são, por um lado, as vendas de publicidade e anúncios e, por outro, a venda de exemplares, mas infelizmente todas elas não param de se deteriorar e de forma drástica e dramática.
A terceira fonte de financiamento da imprensa privada é o chamado Incentivo do Estado. E aqui temos o seguinte quadro:
Desde 2010 que o Incentivo do Estado à Imprensa Privada é de 13 mil contos anuais. Ou seja, tal como os jornais, também o incentivo do Estado à imprensa privada tende a não aumentar, pelo contrário, a ideia é acabar com ele.
Curiosamente, em todos estes nove anos, de ano para ano, o Orçamento de Funcionamento do Estado não pára de crescer. De 2010 a 2015, o Incentivo do Estado à Imprensa Privada sempre representou 0,04% do Orçamento de Funcionamento; em 2016, foi apenas 0,02%, e em 2017 e em 2018 representou 0,03% em cada um dos anos.
Dito de forma mais clara, enquanto nos nove anos em análise, de 2010 a 2018 inclusive, o Orçamento do Estado para o Funcionamento registou um aumento de 44,43%, o Incentivo do Estado à Imprensa Privada teve um aumento de ZERO por cento, repito, ZERO por cento!
Imprensa livre e Democracia
Com o devido respeito que temos para quem tutela a Comunicação Social e para os principais decisores deste país, que é de todos nós, Cabo-verdianos, somos obrigados a afirmar que, infelizmente, e não obstante todos os discursos sobre a liberdade de imprensa e do seu lugar no Cabo Verde democrático, nunca a Imprensa Privada teve a atenção que merecia ter da parte de quem devia criar as condições para um jornalismo plural, livre e independente.
E mais: para ser avaliado internacionalmente Cabo Verde precisa apresentar a imprensa privada como prova de que é um Estado democrático, e por via disso tem recebido os mais diversos apoios. No entanto, na hora de distribuir esses recursos, ninguém se lembra da imprensa privada!
Pelo contrário, este Governo, em particular, que se diz amigo das empresas, vem adoptando o silêncio como resposta sempre que contestamos decisões relativas a processos que se configuram, para nós, verdadeiros garrotes fiscais.
No que a nós diz respeito, e de nós falamos, ao que tudo indica, encontra-se em curso uma estratégia de perseguição fiscal, inadmissível num Estado de direito, ainda por cima que se pretende de modelo para África. Com o agravante de esse mesmo Estado, que nos persegue por via dos seus agentes, ser nosso devedor, pagando quando quer, como quer, e se pagar!
A esse quadro somam-se vários outros. Nomeadamente, de antigos governantes do MpD, agora em exercício de altas funções no Estado, ou ainda ligados a esse partido, que nos últimos dois anos levantaram processos judiciais contra o A NAÇÃO, solicitando indemnizações astronómicas.
A isso somam-se ataques anónimos não só ao jornal como aos seus jornalistas, numa tentativa de nos intimidar e aos nossos colaboradores.
Em jeito de conclusão, porque muito mais haveria para dizer, termino dizendo:
Quem quiser que reflicta sobre o que aqui deixamos exposto, as entidades internacionais que monitoram a liberdade de imprensa em Cabo Verde que tomem também a devida nota deste nosso quadro.
Sabemos que a nossa missão, enquanto jornal privado e independente, é nobre e difícil. Da nossa parte vamos continuar a seguir a mesma linha de rumo.
Aos Cabo-verdianos, destinatários do jornalismo que praticamos, que pensem também no seguinte:
* Cabo Verde estaria melhor sem uma imprensa livre e escrutinadora dos poderes?
* O que acontecerá aos indicadores internacionais de democracia e de liberdade de imprensa se a imprensa livre desaparecer por falta de fontes de financiamento ou pelo sufoco causado pelo Estado?
Se a resposta for positiva, em favor da imprensa livre, que pensem, por conseguinte, na necessidade de se preservar este bem, que é a liberdade. Não há democracia sem uma imprensa livre, sem jornalistas livres e sem cidadãos conscientes e exigentes. É nos jornais que, muitas vezes, os cidadãos aflitos conseguem denunciar as injustiças de que são alvo, conseguem resolver muitos dos seus problemas “esquecidos” anos e anos porque alguém, sentado na cadeira do Estado, assim o entende. Um Estado que tudo tolhe, que persegue e abusa dos poderes que tem, que busca a obediência a todo o custo, é um Estado sumamente perigoso.
Como dissemos no princípio, a imprensa privada, independente, livre, plural e fiscalizadora, em Cabo Verde, está ferida de morte.
* Director-Geral da Sociedade A Nação Cabo Verde
** Comunicação apresentada durante o workshop “Sustentabilidade económico-financeira dos media privados em Cabo Verde”, organizado pela AJOC, no dia 14-12-18.