Por: Redy Wilson Lima
No ano de 2008, quando comecei a estudar a criminalidade protagonizada por grupos de jovens armados na cidade da Praia, as explicações utilizadas variavam entre a existência de patologias ao nível da personalidade, uma orientação por determinados tipos de valores e ideais alternativos ou opostos à constelação moral dominante e um défice anósmico ocorrido nos processos de socialização por relação aos valores e normas dominantes. Estas explicações base da delinquência, importados acriticamente das perspetivas sociológicas e criminológicas da Escola de Chicago, que não obstante numerosos trabalhos de pesquisa ou de reflexão teórica tem contestado nos últimos tempos, eram comumente assumidos como indiscutíveis e serviram de suporte para a criação de programas, projetos e políticas de segurança e da juventude.
Como resultado, começou-se a reproduzir um discurso culpabilizante sobre a camada juvenil que funcionava, na realidade, como um sistema de designação de um bode expiatório ou, por outras palavras, uma reactualização de mecanismos de separação social que distinguia os filhos de boas famílias dos filhos do “povo”. Inconsciente ou não, esta representação juvenil é uma forma de violência, no sentido em que lhe dá Michel Wieviorka: “a violência não é somente um conjunto de práticas objetivas: ela é também uma representação, um predicado que, por exemplo, grupos, entre os mais abastados, atribuem eventualmente, e de maneira mais ou menos fantasmática, a outros grupos, geralmente entre os mais despossuídos”.
A que a literatura crítica tem defendido é que a discussão daquilo que juridicamente se convencionou chamar de delinquência juvenil só faz sentido quando integrado no quadro da violência urbana, esta tratada como uma das dimensões de violências, já que são diversas as suas manifestações, nem todas elas visíveis ou visibilizadas e, portanto, nem sempre consideradas como tal e, por isso, naturalizadas ou normalizadas. Assim, trabalhar este conceito no plural, por oposição ao conceito violência urbana, torna-se obrigatório, uma vez que o seu uso no singular se afigura incorreto, já que não existe uma única violência urbana, mas um conjunto de violências urbanas, tantas quantas as suas manifestações. Por outro lado, trabalhá-lo no singular está-se a evitar remetê-lo para um determinado contexto, a urbanização ou o urbanismo como causa das violências, visto que a realidade é bem mais profunda. Insistir no erro de trabalhá-lo no singular só irá reforçar o argumento de construção de um urbanismo policial, em que os jovens pobres residentes dos ditos “bairros problemáticos” são encarados como os principais alvos de intervenção policial e social.
Falar de violências urbanas na Praia é focar tanto na violência direta como nas violências (estrutural, cultural, simbólica ou psicológica, objetiva, do quotidiano e política) que, embora invisíveis e invisibilizadas, estão na base da primeira. A opção por esta abordagem remete-nos à criminalidade oculta que no caso santiaguense em particular e cabo-verdiano no geral tem sido historicamente legitimada e protagonizada por grupos social e politicamente bem posicionados no espaço social. Igualmente, permite dar conta da forma como os agentes e as instituições que deveriam proteger ou assistir os indivíduos e grupos económicos socialmente vulneráveis, tem, antes, contribuído para a perpetração da violência (escolas, hospitais, igrejas, polícia, ONG, etc.).
Utilizar este conceito no plural permite, portanto, tomá-lo como uma combinação de causas estruturais e fatores de risco. Ou seja, a combinação de três dimensões de análise: 1) dimensão estrutural ou fatores que originam – desigualdade social (segregação de oportunidades e de competências), empobrecimento e exclusão social; 2) dimensão mesosocial que incluem fatores conjunturais que fomentam – densidade e segregação social e urbana, cultura da hipermasculinidade, narcotráfico, disputas legislativas, deportações e impunidade; 3) dimensão microssocial que incluem fatores que, ao nível individual, facilitam – disponibilidade de armas de fogo e consumo excessivo de álcool e drogas.
Assim, construir um quadro teórico da violência, criminalidade e comportamento desviante em Cabo Verde só será possível se separada da discussão desenvolvida pela criminologia tradicional ou da sociologia clássica do crime sobre as causas da criminalidade, como corriqueiramente tem sido reproduzido por estas bandas. Isto porque, acaba-se por cair numa abordagem estática, institucional e eurocêntrica que encobre o fato de que a violência estrutural assume diferentes expressões e pode produzir violência direta como reação, tentativa de superação ou resistência sob a forma de criminalidade. Contornar essa situação passa, num primeiro momento, por construir uma problematização critica do fenómeno baseado num apurado trabalho de campo, ao invés da acomodação intelectualmente preguiçosa em teorias produzidas em contextos geográficos e temporais distintos do nosso.