Por: Redy Wilson Lima
Em 2011 perguntei a um ex-residente do Plateau o que ele pensava sobre os altos índices de violência pública na cidade da Praia. A resposta foi de que a violência na capital cabo-verdiana veio nas cheias. Embora a relação entre os processos migratórios, urbanização e criminalidade/violência tenha sido escrutinada pelas ciências sociais em geral e pela sociologia em particular desde os seus primórdios, compreender o alcance desta afirmação remeteu-me a uma profunda análise histórica sobre os processos de apropriação e representação do espaço urbano em Cabo Verde, especialmente na ilha de Santiago, desde os achamentos aos nossos dias.
Obviamente que este espaço não é o adequado para esmiuçar e profundidade do assunto, no entanto, é importante salientar que tal afirmação nos remete aos fenómenos históricos da desurbanização da Ribeira Grande e da fuga de escravos em Santiago a partir do século XV derivado dos ataques dos corsários, que resultou na ocupação das serras e edificação de pequenas comunidades fora da influência do poder dominante com o qual mantiveram uma relação hostil. Ao afirmar que a violência veio nas cheias, o meu interlocutor estaria, então, a referir como o principal agente da violência em Cabo Verde um grupo específico de população denominado de badio que, no seu entender, transportou nos anos de 1980 e 1990 a violência do campo para a cidade.
Nesta lógica, o termo “de fora” passa a designar de forma homogênea a população rural santiaguense, descurando da sociedade dos morgados e das capelas, também ela “de fora”, institucionalizados nas melhores ribeiras da ilha na sequência da limitação dos privilégios concedidos aos moradores-armadores no ano de 1472. Ou seja, o termo passa a ser utilizado pelos moradores de “Riba Praia” para designar os habitantes do “Baxu Praia” no período tardo-colonial e na primeira década pós-colonial, que passam a ser caraterizados ideologicamente como pessoas incultas, agressivos e vadios, descendentes dos negros africanos.
Como defende António Correia e Silva, o termo “de fora” não se refere a um espaço geográfico específico, mas uma situação de marginalidade social historicamente reproduzida, espelhada na acusação corriqueira do badio enquanto responsável tanto pela urbanização da violência como pela introdução e reprodução das incivilidades no espaço urbano praiense. Do ponto de vista simbólico, mesmo com a emergência de outros centros na cidade, a partir dos anos 2000, esta visão estigmatizante para com os ditos habitantes dos subúrbios permaneceu inalterável. Um indicador a esse respeito é a perceção da margem como objeto precário, que precisa de ser protegido através de um tipo de assistencialismo mediático e monitorizado. Desta feita, a ligação entre perigo e segurança torna-a num espaço de julgamento de todo o tipo.
Num outro registo analítico, Derek Pardue sugere que os ditos espaços marginais da cidade devem ser pensados a partir da relação entre agência social (as práticas quotidianas as pessoas), estrutura social e poder. Isto é, como um espaço de construção identitária de resistência e o lugar central onde a cidade é produzida tanto em termos materiais como simbólicos. Colocar a questão desta forma nos obriga a substituir o termo inclusão para o termo integridade, uma vez que inclusão tem subjacente o conceito integração utilizada pela primeira geração sociológica de Chicago no seu esforço ideológico de assimilar os migrantes negros do sul racista norte-americana aos valores civilizatórios europeus trasvestido da ideia de cultura urbana, hoje atualizado pelo conceito cidadania urbana. Por outro lado, o termo integridade transporta consigo a ideia de reconhecimento do papel dos espaços tidos como marginais na criação do espaço urbano dinâmico e heterogéneo, culturalmente efervescente.
Assim, a meu ver, a rejeição do conceito de inclusão em detrimento do da integridade obriga a uma mudança do paradigma da exclusão para o paradigma da potência nos projetos de intervenção social e urbana, transformando a população da dita cidade informal de objetos a sujeitos, através de processos colaborativos, rejeitando deste modo as ditas metodologias participativas normalmente utilizadas por estas paragens que mais não fazem senão reproduzirem as lógicas institucionalizantes de dominação e controlo tardo-colonial.