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Opinião

Cartas de Lisboa – em dezembrino

 

Por: Filinto Elísio

 

06. QUA | Peneirar dos dias frios

Dezembro (com este frio do cacete) já vai a 6 | e penso sempre pela minha cabeça | Decido em tudo com a minha consciência | e (fica patente à navegação) não recebo ordens de ninguém | Já vai a 6 (com os dias a cavalgarem a destempo) e torna-se preciso não saltar da falésia | que o rebaixamento humanitário (antevendo-se global) não nos empreste o dom da ubiquidade | Tampouco somos o Ícaro | o tal que se esborrachou ladeira abaixo | e a mitologia não o salvou | O torvelinho do vento esfria mais este dia | e queria tanto escrever um poema mais aquecido (e olhas para o edredom de sumaúma que te reconforta) | e sem saltos para a morte desejo-te | Esfria-o com alguma metafísica que não descortino | mas que o cão do vizinho (está o Sá Pinto agora de coleira nova) apanha e amanha tal vento como um osso | Mantenho-me em relativa admiração pela borboleta | a patrulhar as folhas da laranjeira | e não me sinto nota de rodapé de algum texto sagrado | Nem consigo estar nas tintas para o paradoxo do planeta azul que gira | mas olho-o com a minha miríade lúcida e crítica (frio de cão sacrossanto este)…

08. SEX | Mais uma curva da estrada

Com muita tristeza soube da morte de Raul Varela | “Raul de Luisinha” para a nossa família | com quem mantivemos convívio ao longo da vida | Há três anos estive em Maputo | e privei-me muito com este amigo | Falámos dos tempos idos | da Praia – cidade incessante em nós | de Cabo Verde e de Moçambique | do Filinto (meu pai) e da Luisinha (sua mãe) | Para além das condolências agora devidas à esposa e aos filhos | a partilha desta tristeza com os muitos amigos comuns | ao Raul estes versos de Fernando Pessoa | que não me calam o pensamento:

(…)

A morte é a curva da estrada,

Morrer é só não ser visto.

Se escuto, eu te oiço a passada

Existir como eu existo.

(…)

Oiço-te a passada | amigo Raul.

11. SEG | Excertos do Day After

Valha-nos a meditação mais que a religião | e a rotação da terra de um eixo que desconhecemos | O clima e os deuses devem estar loucos | assim compõe-se a escrita (plasmada ela à vidraça embaciada) | Da tarde de ontem à madrugada de hoje | tivemos chuva e vento fortes | alguma inundação e muita agitação marítima em Lisboa | Era a Tempestade Ana (que pôs a cidade sob Aviso Laranja) e fez-nos recolher em casa diante da televisão | Dos telejornais (o tanto que amaldiçoámos as reedições nazis) ao The Voice Portugal (com só 10% de qualidade) | passando pelos comentários do futebol (piores que os da política) | tudo a servir para “encarar a passagem do vendaval” | Nesta manhã | a vida continua fria e nevoenta | com a escrita a pontificar-se tarefa de artesão | e com os raios de um sol maroto sobre a laranjeira | De um lado uma quase carpintaria | doutro lado uma espécie de tapeçaria | Dirás generosa (olhando para os textos em feitura) que são uma tempestade perfeita…

12. TER | Muro

Uma vaca louca | exasperada com o meu desalinhamento ao diálogo de surdos | pergunta se me mantenho em cima do muro | Muro de quê e de quem | é o que soe questionar | Sussurro-lhe a música de Stevie Wonder: “Very superstitious, writings on the wall” | Verdade verdadeira | é que preciso estar fora da manada e apartado do curral | onde anda o pessoal aos coices | e ao canibalismo de trazer por casa | Faltam-me engenho e arte para escolher tais lados | quando são quartos escuros de um mesmo labirinto | De resto “superstition ain’t the way” | e os triunfantes porcos (os mais iguais de sempre) que se entendam | ou se desentendam (que nem lhes gabo a sorte) | pois como ao vaticínio do Poeta | eu vou com as aves…

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