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Opinião

A cooperação chinesa

Por: Arsénio Fermino de Pina*

Um dos meus últimos livros tem o título provocatório de ÊS CA TA CDI! Ês (eles), referindo-se aos governantes, que não respondem, que estão-se nas tintas pelas críticas, sugestões e propostas de cidadãos experientes, conhecedores e idóneos. Realmente, quando se utiliza o termo ês, em vez de nós, isso significa que os cidadãos já não se sentem identificados nem representados pelos governantes. Obviamente que é irritante o silêncio dos governantes para quem opina, critica ou sugere – o meu caso –, mas não me desmobiliza por ser mais teimoso do que “a mula da cooperativa”, a tal que deu dois coices no telhado, sem  os poder aplicar aos governantes, da famosa canção do artista madeirense Max.

Volto hoje à liça por causa dos migrantes, limitando-me aos africanos que fogem da miséria, de perseguições políticas e religiosas, da guerra, a caminho da Europa, explorados por passadores sem escrúpulos nem alma que os transportam e deixam no deserto, na Líbia, aqui transformados em escravos pelas milícias islâmicas, ou no mar, garantindo-lhes que as ONG irão buscá-los e levar para a Europa, quando alguns países europeus se recusam a recebê-los. O jornal The Guardian avança o número 34.000 pessoas mortas ao tentar chegar à Europa desde 1993. A Organização Internacional das Migrações denunciou a Argélia por ter expulsado e abandonado no deserto do Sahrá mais de 13.000 migrantes, muitos dos quais morreram de sede e fome.

Há anos publiquei algo sobre o assunto, sob o título Como ajudar a África?, apontando as causas das migrações e da fuga de cérebros africanos para a Europa e América do Norte: ditaduras com facínoras como presidentes protegidos pelo Ocidente, visto garantirem a exploração pelas ex-metróples das suas riquezas em matérias-primas sem nenhuma mais-valia para o país, por as transformarem nas suas fábricas na Europa e América, perseguições e eliminação física de nacionais honestos da oposição, facilidades concedidas pelos bancos na transferência para o exterior de dinheiro roubado ao erário público pelos governantes, desleixo total relativamente à criação de condições necessárias ao ensino e à saúde (os governantes enviam os filhos a formar-se no exterior e eles próprios se deslocam à Europa e América para tratamento médico), etc. A solução é evidente, mas parece que ninguém está empenhado nisso, nem mesmo a União Europeia, apesar de inúmeras reuniões recentes para solucionar a onda de migrantes. O Conselho Europeu, praticamente dominado, ou sem força para combater os países em que a extrema-direita controla os governos, optou por instalar os migrantes em campos de detenção (eufemismo de campos de concentração) no Norte d´África, sendo a sua relocalização numa base voluntária e não por quotas como anteriormente. O Governo italiano fechou os portos e criou obstáculos às acções de ONG humanitárias, e a Hungria criou lei que considera crime a ajuda de migrantes e a Polónia, Rep. Checa e Eslováquia nem querem ouvir falar de migrantes.

Creio que nenhum africano se arriscaria a abandonar o seu país correndo os riscos de vida que vem correndo se tivesse trabalho e o mínimo de qualidade de vida e segurança nos seus países.

A solução do problema das migrações e de injustiças seculares contra os africanos, vítimas de todos os tipos de explorações só não é entendida por quem não quer desestabilizar aqueles nacionais seus e multinacionais que vêm explorando as ex-colónias; só se consegue com a industrialização do Continente: instalação de indústrias de transformação das suas matérias-primas – o que criaria postos de trabalho que não exigem grandes qualificações dos trabalhadores e proporcionariam mais-valias –, investimentos na agricultura para culturas alimentares, em vez de culturas de rendimento como vem sendo de algodão, sisal, madeiras exóticas, cacau, chá, amendoim para produção de óleos vegetais, café, etc., que são exportadas e transformadas nas ex-metrópoles com lucros fabulosas, construção de barragens para produção eléctrica, construção de vias férreas e estradas, tolerância zero para ditaduras e fuga de capitais provenientes do erário público e retorno das fortunas roubadas por cleptocratas depositadas em bancos do Ocidente, as quais seriam investidas nessas obras, garantias de segurança para o retorno dos quadros honestos e capazes que abandonaram o país fugindo à eliminação física. Isso é que a União Europeia (EU) e as Nações Unidas (NU) deveriam patrocinar e controlar, até sem dispêndio para elas, dado o manancial de dinheiro existente nos bancos ocidentais roubado ao erário público, que dariam até para um Plano Marshall para a África.

Noutro artigo afirmava estar a China mais vocacionada a ajudar a África a sair do subdesenvolvimento, da miséria, por também ter sido explorada, poder aplicar as mesmas medidas que utilizou, a partir de Deng Xiaoping, sendo actualmente a segunda potência económica mundial, tendo retirado da miséria 750 milhões de chineses em relativamente pouco tempo. É o que, de resto, vem acontecendo na África Oriental, no Quénia e Etiópia, com instalação de indústrias de transformação e outras que deixaram de ser rentáveis na China devido à melhoria do nível de vida dos seus trabalhadores que passaram a usufruir de salários mais elevados e a beneficiar de regalias da segurança social. Uma diferença notável da “cooperação”, que redundou em fracasso sob a batuta do FMI e BM sob a designação de Consenso de Washington, é a China transmitir e ensinar a sua tecnologia aos africanos, permitindo a estes criar, com o tempo, as suas próprias indústrias. Além disso, as empresas chinesas deslocalizadas para a África empregam cerca de 80% de mão-de-obra africana. Actualmente, segundo La Revue, há dez mil sociedades chinesas em África: 15%, empresas de construção, 25% de serviço, 31% industriais, 22% comerciais. Nas trocas comerciais com a África, 188 biliões de dólares com a China, 59 biliões com a Índia e 57 biliões com a U.E.

Tanto a China como a India, por exemplo, conseguiram desenvolver as suas indústrias farmacêuticas ao nível europeu taxando fortemente os fármacos importados, o que favoreceu o desenvolvimento da indústria nacional, embora com protesto, no início, da população habituada à melhor qualidade e segurança dos fármacos europeus. Foi um preço a pagar pela população, compensado pelos triunfos posteriores, visto a indústria chinesa e indiana ter alcançado a qualidade ocidental e ser concorrente a esta no mercado internacional.

Tenho certa dificuldade em entender a importação ilimitada de produtos que Cabo Verde produz, ou tem capacidade de produzir. Dizem-me que é por exigência da Organização Mundial do Comércio (OMC) e da economia de mercado, o que não me convence por saber que a economia de mercado convém aos países produtores e grandes exportadores, e aquando da nossa entrada na OMC, tivemos uma moratória de dez anos, período durante o qual poderíamos cometer algumas heresias económicas, o que não fizemos, e levou a que algumas das nossas indústrias, na sua fase inicial de arranque, tivessem de concorrer com as europeias e americanas, desaparecendo por impossibilidade de o fazer. Devia-se, à semelhança da China e Índia, taxar fortemente os produtos importados que produzimos de modo a estimular o desenvolvimento e aperfeiçoamento das nossas, por uma formiga nunca poder concorrer com um elefante. Creio que, devido à nossa dimensão, mesmo que cometêssemos essas heresias agora, a OMC não iria sancionar-nos, até porque países altamente desenvolvidos, como alguns europeus e os EUA, subsidiam indústrias e produções agrícolas, permitindo que elas exportem para outros países os excedentes; se não o fizessem, deixariam de ter agricultores e agricultura. Poderíamos utilizar esse argumento, explicando à OMC não conhecermos nenhum país que se tenha desenvolvido sem indústria.

Insisto com o exemplo da China devido à nossa excelente cooperação com ela. Cabo Verde manteve-se sempre fiel a essa cooperação, quando outros países africanos, tendo começado com a China Continental e de colher inúmeros benefícios, mudaram para a Formosa na mira de recolher mais dinheiro, o que levou à partida da China Continental, como aconteceu com a Rep. Centro Africana e São Tomé. Depois viraram-se para a Formosa, o que deu origem a graves acusações ao Presidente da República Centro Africana (Kolingba), por suspeita de ter ficado com metade da verba da cooperação. Cabo Verde deveria facilitar a deslocalização de indústrias chinesas do nosso interesse, e presumo a China ter interesse numa localização próxima da Europa e USA para a exportação; teríamos muito a aprender com os chineses para futuras indústrias nossas e a agricultura. Quando falo na China não excluo a Índia e o Japão; este último criou centros de produção em Hong Kong, Singapura e Formosa no passado. Depois, estes países deslocalizaram algumas das suas indústrias para a Indonésia, Malásia e Tailândia, e estes últimos para o Vietnam, Nigéria e Lesoto, o que nunca ou raramente aconteceu com os países do Norte. Exemplo negativo da cooperação com o Ocidente tivemos em S. Vicente; fábricas que se instalaram na zona industrial do Lazareto beneficiando de isenções de impostos e outros benefícios durante dez anos que, após esse tempo, levantaram ferro e desapareceram com graves consequências para os trabalhadores e o país.

Parede, Julho de 2018                                                                           

    

*(Pediatra e sócio honorário da Adeco)

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