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Opinião

Uma análise do Status of Force Agreement Cabo Verde-Estados Unidas da América

 Fredilson Melo

– Parte 1 –

Quero apresentar aqui a minha análise do acordo SOFA (Status of Force Agreement) assinado entre os governos de Cabo Verde e dos Estados Unidos da América (EUA) no passado 25 de setembro (1) e aprovado no Parlamento a 29 de junho, com votos favoráveis do MpD, partido que suporta o Governo, tendo os partidos da oposição (PAICV e UCID) abstido, alegando existirem algumas dúvidas sobre a constitucionalidade de tal acordo (2). Neste momento, conforme exige a lei, o destino do documento encontra-se nas mãos do senhor Presidente Dr. Jorge Carlos Fonseca, o qual poderá promulgar, vetar ou pedir fiscalização à constitucionalidade do acordo.

 

Cabo Verde não é o único assinante de um acordo SOFA com os EUA; os EUA têm acordos SOFA com mais de 100 países, ao redor do mundo. O SOFA dos EUA é um compromisso escrito que salvaguarda o estatuto do pessoal do Departamento de Defesa (DoD, em inglês) dos EUA, e do pessoal contratado por este, enquanto se encontrarem em território estrangeiro. Entre os vários benefícios desse acordo, para os EUA, estão a proteção criminal do pessoal do DoD – as jurisdições civil e criminal recaem sobre os EUA, isenção de impostos, taxas alfandegárias, licenciamento, autorização para livre circulação de pessoal e mercadorias/equipamentos (designados propriedades), entre outros. Estas concessões visam proteger o pessoal do DoD contra sistemas de justiça injustos e reduzir os custos e logísticas da presença dos EUA em território estrangeiro (3).

 

No entanto, esses estatutos são alvos de sérias controvérsias, sobretudo no que tange à imunidade criminal, uma vez que não são raros os casos em quais esta última já foi, e é, utilizada. Por exemplo, no Japão – que também assinou, em 1960, um acordo SOFA com os EUA, com um artigo de imunidade criminal (4), em 2016, um soldado norte-americano violou e assassinou uma cidadã japonesa (5, 6). Este não foi um evento separado; já anteriormente, tinham-se registados casos de violação, ataques e atropelamento e fuga por parte de soldados norte-americanos (7). Depois de manifestações massivas por parte de cidadãos e partidos políticos, o governo japonês renegociou o acordo (8, 9), mas incidentes e acidentes continuam a acontecer e a gerar protestos (10). Verificam-se casos semelhantes para a Correia do Sul, que também tinha um acordo similar ao do Japão (11, 12, 13).

 

O Japão e a Correia do Sul não são os únicos países com casos de tais incidentes. Em 2015, em Borém, um soldado norte-americano assassinou sua namorada tailandesa, atirando-a de uma varanda. Neste caso, os EUA também tinham jurisdição criminal sobre o soldado (14). Também em Borém, há relatos de um caso de duplo assassinato na própria base militar norte-americana, entre colegas militares (15). Nas Filipinas, em 2014, um soldado norte-americano assassinou uma mulher transexual. O soldado foi condenado a prisão por um tribunal filipino, uma vez que o acordo SOFA com aquele país não inclui imunidade criminal (16, 17, 18). Em 2012, um soldado norte-americano abriu fogo sobre pessoas no Afeganistão, matando 16, entre as quais 9 crianças. O soldado foi sentenciado, mas sob a alçada da lei norte-americana (19, 20). Durante a ocupação do Iraque por forças norte-americanas, um acordo SOFA foi assinado (21). Na altura da sua renovação em 2008, a Amnistia Internacional alertou para a liberdade de torturas e violações de direitos humanos que a renovação desse acordo iria proporcionar (22). Outros observadores também pesaram sobre este assunto partilhando da mesma opinião que a Amnistia Internacional (23, 24). Em 2011, Iraque iniciou uma renegociação do acordo em que pretendia remover a imunidade aos soldados norte-americanos que iriam permanecer no país após o anúncio de retirada das forças norte-americanas (25). Os receios expressados vieram a ser justificados pouco tempo depois com a publicação de relatórios de torturas a prisoneiros conduzidas por forças norte-americanas e iraquianas (26, 27). Esta é apenas uma pequena lista, que contém apenas casos conhecidos.

 

Embora os casos mencionados acima sejam alarmantes, o ponto mais preocupante na generalidade dos acordos SOFA é a privação de parte da soberania do país anfitrião que este tipo de acordo implica. No relatório independente de 2015 da International Security Advisory Board (ISAB) – um comitê consultivo federal dos EUA, sobre o estado dos SOFAs em execução, os analistas alertaram exatamente para esse problema apontando para o facto de que SOFAs “implicam, por definição, algum comprometimento dos direitos soberanos que a nação anfitriã teria doutra forma sob a regra básica da lei internacional de que os estrangeiros presentes numa nação estão sujeitos às leis dessa nação” (28). Essa regra básica da lei internacional é contornada pelos EUA ao recorrer à Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas para conferir imunidades ao seu pessoal do DoD, conforme se lê nos SOFAs com um artigo de imunidades. No entanto, os EUA não são signatários do Estatuto de Roma – que julga crimes contra humanidade, tendo-se retirado do acordo durante a presidência de George W. Bush e a partir daí trabalhado contra o Tratado ao afirmar acordos bilaterais com país sob a condição de não enviarem pessoal norte-americano ao Tribunal Criminal Internacional (TCI) (29, 30, 31). O relatório ainda complementa dizendo que esse comprometimento, aliado ao facto de essa imunidade não ser recíproca para muitas nações, isto é, pessoal do órgão de defesa de outros países não têm essa imunidade quando estão a realizar atividades nos EUA, torna os países relutantes em aderir às demandas desse tipo de acordos (28).

 

O documento do acordo SOFA entre Cabo Verde e os EUA (32) começa “AFIRMANDO que tal cooperação se baseia no pleno respeito pela soberania de cada Parte”, mas contraria-se a si mesmo nos pontos seguintes, nomeadamente nos pontos 1 e 2 do artigo III, e no artigo XII. O Artigo III, intitulado Privilégios, Isenções e Imunidades, estabelece no seu primeiro ponto que “Ao pessoal dos Estados Unidos são concedidos privilégios, isenções e imunidades equivalentes aos do pessoal administrativo e técnico de uma missão diplomática, nos termos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas de 18 de Abril de 1961”, e continua no segundo ponto que “Cabo Verde reconhece a especial importância do controlo disciplinar exercido pelas autoridades das Forças Armadas dos Estados Unidos sobre o pessoal dos Estados Unidos e, em conformidade, autoriza os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre o pessoal dos Estados Unidos durante a sua permanência no território da República de Cabo Verde”. O artigo XII, intitulado Demandas, completa o artigo mencionado acima ao afirmar “1. As Partes renunciam a todas e quaisquer demandas entre si (exceto as resultantes de direitos contratuais) por danos, perda ou destruição de propriedade da outra Parte, ou por lesão ou morte de pessoal das forças armadas ou pessoal civil de qualquer das Partes, decorrentes do desempenho das suas funções oficiais no âmbito das atividades ao abrigo do presente Acordo.” e que “2. As reclamações de terceiros por danos ou perdas, incluindo danos corporais ou morte, causados pelo pessoal dos Estados Unidos são resolvidas pelos Estados Unidos em conformidade com a legislação e regulamentação vigentes no território dos Estados Unidos da América (nomeadamente, o Foreign Claims Act e o Victims’ Rights and Restitution Act). Cabo Verde encorajará as vítimas a apresentarem tais reclamações às autoridades das forças dos Estados Unidos tempestivamente.”

 

Segundo a Constituição da República de Cabo Verde, que começa logo no preâmbulo do documento por definir Estado e a nação cabo-verdianos como um todo assente no “princípio da soberania popular”, é explícita no nº 1 do Artigo 118º aonde estabelece que “São órgãos de soberania o Presidente da República, a Assembleia Nacional, o Governo e os Tribunais.” Pode-se argumentar neste ponto que os dois artigos do acordo SOFA mencionados acima violam a Constituição por rejeitar o papel dos Tribunais, um dos órgãos de soberania, mas o ponto nº 2 do Artigo 209º da Constituição, referente aos “Órgãos de Administração da Justiça”, estabelece que “A Justiça é também administrada por tribunais instituídos através de tratados, convenções ou acordos internacionais de que Cabo Verde seja parte, em conformidade com as respetivas normas de competência e de processo”, pode ser uma salvaguarda às afirmações do governo de que o acordo respeita a constitucionalidade no que toca à jurisdição criminal (33).

 

No entanto, a palavra “também” no ponto constitucional citado acima pode ser alvo de interpretações diversas por parte dos constitucionalistas. Por exemplo, Cabo Verde é um dos 123 membros signatários, desde 2000, do Estatuto de Roma, tendo definitivamente apresentando a sua ratificação em 2011 (34). Segundo o Tratado, se um indivíduo em território cabo-verdiano for denunciado por crimes que corresponderiam às disposições do Tratado, não seria Cabo Verde a julgar o suposto meliante, mas sim o Tribunal Criminal Internacional; isso não renunciaria o papel dos Tribunais nacionais, uma vez que o crime cai na esfera de crimes internacionais. No caso do acordo SOFA, um ato criminal cometido por um soldado (ex.: roubo, agressão ou assassinato), corresponde no máximo a um incidente internacional, podendo, portanto, ser julgado pelas autoridades locais; sendo tal crime atribuído à jurisdição de autoridades norte-americanas, isso poderá ser entendido como um entrave ao papel dos Tribunais nacionais. Esta última é uma das críticas do professor universitário Wladimir Brito, considerado pai da Constituição de Cabo Verde por ter redigido o texto da lei máxima do país em 1991 a convite do então recentemente eleito primeiro ministro Carlos Veiga. O professor considera que o acordo “gera uma alienação anormal da soberania judiciária cabo-verdiana [sic]”. O professor diz ainda que o acordo “gera a ideia de criação de uma base militar dos Estados Unidos em Cabo Verde, o que não se coaduna com a Constituição nacional.” (35, 36). Também o conselheiro do Tribunal Constitucional Dr. José Pina Delgado, tinha já manifestado preocupações quanto à constitucionalidade do acordo quando, em 2011, o então Ministro da Defesa Nacional, Dr. Jorge Tolentino, lhe tinha solicitado um parecer sobre o acordo SOFA (37, 38). Na altura, o Dr. Tolentino advertiu, num memorando, para a dificuldade de “compatibilizar” a rescisão da jurisdição criminal de Cabo Verde com “o princípio da igualdade e com o direito fundamental à igualdade consagrado no artigo 24º da Constituição, vedando, grosso modo, tanto o tratamento discriminatório, abaixo da lei, como privilegiado, acima dela.” O conselheiro advertiu ainda para o facto de que se o direito à igualdade tiver de ser afetado “em razão da existência de um outro direito fundamental a ser implementado ou alternativamente um interesse público relevante (o seu pressuposto geral), tal limitação deve seguir inevitavelmente o requisito da proporcionalidade, significando, em concreto, que deverá ser necessário, adequado e na justa medida para a concretização do bem jurídico legitimador da afectação [sic]”, o que ele considera “não nos parece que a proposta dos Estados Unidos de concessão de imunidades completas de jurisdição ao seu pessoal para patrulhamento conjunto e outras actividades [sic] não numeradas seria proporcional, no sentido de que o sacrifício que se faria ao princípio da igualdade seria compensado por um benefício equivalente ao nível do interesse público em questão.” Ele sugere que “Para além disso, haveria outros meios razoáveis de se o conseguir que não implicasse em tais sacrifícios, que passam evidentemente pelo desenvolvimento de outros meios de atribuição de jurisdição.” O memorando ainda alerta para a inconstitucionalidade da revogação dos deveres dos estrangeiros em território nacional, a aplicação de pena de morte pelo Código Uniforme de Justiça Militar dos EUA e a “da existência de tribunais com competência exclusiva sobre determinados tipos de crimes” em território nacional (37, 38). O memorando é uma análise extensiva das implicações jurídicas do acordo SOFA.

 

Outras concessões que também levantam controvérsia no acordo SOFA, e que se encontram distribuídas pelos artigos IV a X, são isenção de impostos, deveres alfandegários, livre entrada e saída de pessoal e propriedades, isenção de inspeção de tais propriedades, livre circulação no território – seja em veículos próprios ou não, isenção de licenças na importação ou exportação de propriedades e extensão de regalias a contratantes. Conforme mencionado acima, estas concessões visam reduzir os custos da colaboração e facilitar a logística das operações. Embora representem benefícios para os EUA, essas concessões, em particular a isenção de inspeções e licenças, acarretam riscos para o país anfitrião. Por exemplo, em 2015, os EUA importaram antraz – um agente biológico altamente contagioso, com uma taxa de fatalidade superior a 90%, para dentro da Correia do Sul, sem o consentimento ou conhecimento deste, uma vez que sob o acordo SOFA da altura, as designadas ´propriedades das forças norte-americanas´ importadas para a Correia do Sul estavam livres de inspeção ou necessidade de licenças (39). Na altura, o antraz foi entregue, por engano, a 18 locais, tanto na Correia do Sul como no exterior, e a base militar norte-americana na Correia do Sul USFK afirmou que cerca de 22 do seu pessoal foi exposto ao contaminante (40). Seguindo este incidente, uma investigação conjunta entre oficiais dos EUA e Correia do Sul descobriu que de 2009 a 2014, os EUA já tinham importado Bacillus anthracis (bactéria produtora de antraz) para dentro do país cerca de 16 vezes. Para além de antraz, os EUA importaram também amostras de Yersinia pestis, a bactéria que causou a peste bubónica. Depois dessas descobertas, o grupo de investigação delineou novas regras para a divulgação de amostras bioquímicas importadas para dentro do país (41). Para além das bactérias acima mencionadas, que podem e/ou já foram usadas como armas biológicas (42, 43), o relatório de uma inspeção a uma base militar, tornado público dois anos após sua realização, revelou contaminação do solo com benzeno em níveis 162 vezes acima dos limites aceitáveis (44). Esses resultados têm implicações não só ambientais, como sociais e financeiros, uma vez que se o terreno da base é devolvido nas condições que se encontra, a sua subsequente limpeza será cobrada aos cidadãos sob forma de impostos. A inspeção só foi conseguida 15 anos após o surgimento das primeiras suspeitas de contaminação, e o relatório só não foi divulgado na altura da conclusão por causa do acordo SOFA (44, 45). No Japão, verificou-se também um bloqueio por parte de oficiais norte-americanos na divulgação de relatórios sobre poluição ambiental na base militar norte-americana em Okinawa, após terem sido detetados altos níveis de bifenilpoliclorado (PCB) nos arredores da base militar. Sob o acordo SOFA, os EUA não são obrigados a limpar a contaminação na base ou permitir inspeção (46, 47).

 

Referente à isenção de impostos, segundo o relatório de 2013 da National Defense Research Institute, feito a pedido do Gabinete da Secretaria de Defesa dos EUA, é necessário um orçamento de 50 a 200 milhões de dólares anuais para manter uma base militar norte-americana a operar em solo estrangeiro (48). No entanto, esse custo não é suportado apenas pelos EUA quando há acordos de cooperação. Por exemplo, o Japão partilha cerca de 75% dos custos, pagando em dinheiro custos básicos das instalações, trabalho e utilidades, enquanto que a Correia do Sul paga apenas os dois últimos, partilhando cerca de 40% dos custos. A Itália e a Alemanha partilham cerca de 40 e 30% dos custos, respetivamente, sendo que a Alemanha contribui através de fornecimento de terreno, infraestruturas, construções e isenções de impostos e taxas alfandegárias (48, 49). No entanto, é possível que os custos para os países anfitriões venham a aumentar consideravelmente vistas as sucessivas demandas do presidente norte-americano Donald Trump para os países anfitriões investirem mais, financeiramente, na defesa, ou mesmo abarcar com o custo total das bases norte-americanas em seus solos (50). Segundo os últimos dados, os EUA aprovaram cerca de 700 biliões de dólares (3.1% do seu GDP) para a defesa em 2018, sendo 549 biliões dedicados ao DoD. O orçamento deverá aumentar para 719 biliões de dólares em 2019 (51, 52, 53). Comparativamente ao GDP, o valor mais alto gasto em defesa foi em 2010, situando-se em 4.7% do GDP (52, 54).

 

Quanto à duração da estadia das forças armadas norte-americanas, uma vez que no Artigo XV, referente à Entrada em Vigor e Duração do acordo, não especifica qualquer prazo para a sua execução, indicando apenas o momento da sua entrada em vigor, é seguro assumir que se possa tratar de um acordo permanente. Portanto, podemos estar a olhar para uma presença da força miliar norte-americana durante décadas, similar ao que acontece no Japão ou Correia do Sul. Isso, apesar de os nossos sucessivos Governos insistirem categoricamente que não haverá instalação de uma base militar norte-americana no país, uma vez que tal era seria inconstitucional (nº 4 do Artigo 11º) (55, 56). O que levante a questão, aonde ficará estacionado o pessoal do DoD durante a sua missão? Sabendo que uma base militar é uma instalação destinada ao armazenamento de materiais militares e ao treinamento de pessoal militar, e normalmente operada e mantida por este último, qual será a natureza das instalações do pessoal do DoD? Alugarão um espaço em um, ou vários, dos nossos quartéis, de forma similar ao que aconteceu durante a Guerra do Vietname? Ou terão as forças norte-americanas um terreno próprio que servirá de “base temporária”, à semelhança do que acontece nas Honduras (57)? Em ambos os casos, tanto os EUA quanto o governo de Cabo Verde podem contornar a Constituição ao afirmar que tecnicamente não há uma base militar estrangeira no país. Isso seria provavelmente do agrado dos EUA, que no passado já tinha mostrado grande interesse em estabelecer uma base no país, segundo reportado pela imprensa em 2010 aquando da publicação de telegramas norte-americanos pela WikiLeaks, as quais o então Ministro dos Negócios Estrangeiros, José Brito, considerou como não verdadeiras, apoiando a sua afirmação no seu respeito pela Constituição (56).

 

 

Considerações finais

 

Sendo Cabo Verde um Estado livre e de direito democrático, e um exemplo de democracia, boa governação e liberdade, estando livre de quaisquer conflitos civis armados – conforme reconhecidos por vários órgãos competentes internacionais, e pelos próprios EUA, a requisição da imposição de normas judiciais estrangeiras sobre as nacionais, pressupõe uma incongruência. Mais, tal proposta parece também ignorar a sensibilidade da questão dado que Cabo Verde é um país que só recentemente saiu da alçada de um império colonial (apenas 43 anos de independência), e sendo os EUA eles próprios uma antiga colónia e um país que se diz prezar pela liberdade como causa máxima – aliás, essa é uma das premissas do acordo, é um contrassenso que tal documento tenha sido esboçado para Cabo Verde em primeiro lugar.

 

Embora, mais recentemente, o próprio embaixador dos EUA em Cabo Verde, Donald L. Heflin, tenha vindo a público, através de uma nota de imprensa, tentar reassegurar o público de que não haverá instalação de uma base militar norte-americana no país nos termos do acordo, e que o acordo beneficiará o arquipélago em questões “como segurança marítima, combate ao tráfico ilícito e assistência humanitária na região” (58), há que ter em conta que, para além da espionagem norte-americana reveladas pela WikiLeaks em 2010, aonde constam “averiguações ao funcionamento das Forças Armadas e Segurança locais”, a “atuação dos partidos políticos, dados biográficos dos respetivos líderes e seus recursos financeiros” e a possibilidade de instalação de uma base militar norte-americana no país em caso de crise (59), no relatório da Congressional Research Service dos EUA sobre Cabo Verde, publicado em Fevereiro do ano passado, destaca-se a importância do arquipélago na rota do tráfico e a sua significância geográfica estratégica na paragem para reabastecimento de combustíveis para voos transatlânticos entre a África e os EUA (60). O relatório faz um apanhado geral sobre a situação política, económica e judicial do país, incluindo a composição da força militar, as cooperações internacionais e o estado dos direitos civis e da justiça.

 

Finalmente, há que olhar para a longa e malsucedida história das intervenções norte-americanas em África. As intervenções vão desde tentativas de assassinato de presidentes, passando por golpes militares, até ao fornecimento de armas em conflitos civis entre partidos (61, 62). Mais recentemente, em 2017, os EUA manifestaram o seu apoio militar pela intervenção em Gâmbia dos seus vizinhos mais a Este, numa tentativa de assegurar que o novo presidente eleito Adama Barrow assume o poder. Coincidentemente, um ano antes, em 2016, os EUA e o Senegal – que encopassa em quase totalidade a fronteira da Gâmbia, assinaram um acordo SOFA (63, 64). O acordo contém provisões semelhantes ao do acordo com Cabo Verde, com a notável diferença nos artigos 5, 6 e 7 que definem a autorização de uma base militar para os norte-americanos naquele país (65). Este ano, ganenses saíram à rua para protestar um acordo SOFA entre os EUA e a Gana. O acordo prevê um investimento norte-americano de 20 milhões de dólares na no treinamento e equipamento da força militar ganense. Em contrapartida, a força militar norte-americana recebe autorização para alocar tropas para o país e importar equipamento militar, livre de impostos, usar aeroportos e frequências de rádio do país (66, 67).

 

Em conclusão, um acordo militar com os EUA é desejável e necessário, em luz da falta de melhores opções no momento. No entanto, tal acordo não deve ser celebrado na base de um “laço de amizade especial”, como afirma o ponto nº 6 do artigo 11º da Constituição, e como têm insistido os nossos governantes, mas sim segundo os termos do ponto nº 1 do mesmo artigo, que delineia a regência do Estado de Cabo Verde pelos “princípios da independência nacional, do respeito pelo Direito Internacional e pelos Direitos do Homem, da igualdade entre os Estados, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados, da reciprocidade de vantagens, da cooperação com todos os outros povos e da coexistência pacífica.”

 

 

 

Referências

 

  1. Primeiro-Ministro presidiu ato de assinatura do SOFA (http://www.governo.cv/index.php/destaques/8398-primeiro-ministro-presidiu-ato-de-assinatura-do-sofa)
  2. Parlamento aprova acordo entre o Governo de Cabo Verde e o Governo dos Estados Unidos da América (http://www.rtc.cv/index.php?paginas=21&id_cod=17573)
  3. Status of Forces Agreement (SOFA): What Is It, and How Has It Been Utilized?

(https://fas.org/sgp/crs/natsec/RL34531.pdf)

 

  1. Agreement under Article VI of the Treaty of Mutual Cooperation and Security between Japan and the United States of America, Regarding Facilities and Areas and the Status of United States Armed Forces in Japan (https://www.mofa.go.jp/mofaj/area/usa/sfa/pdfs/fulltext.pdf)

 

  1. The Suitcase Murder Tearing the U.S. and Japan Apart (https://www.thedailybeast.com/the-suitcase-murder-tearing-the-us-and-japan-apart?ref=scroll)

 

  1. Former U.S. base worker gets life in prison for murder of Okinawa woman (https://www.japantimes.co.jp/news/2017/12/01/national/crime-legal/former-u-s-base-worker-gets-life-prison-murder-okinawa-woman/#.W03fYNJKjDd)
  2. US forces in Okinawa under curfew after suspected murder (https://sg.news.yahoo.com/us-forces-okinawa-under-curfew-suspected-murder-052039562.html)
  3. Japan and U.S. sign deal clarifying civilian protection under SOFA (https://www.japantimes.co.jp/news/2017/01/16/national/politics-diplomacy/japan-u-s-sign-deal-clarifying-civilian-protection-sofa/#.Wz8mTdJKjDe)
  4. Agreement regarding the Status of United States Armed Forces in Japan (https://www.mofa.go.jp/region/n-america/us/q&a/ref/2.html)
  5. ANTI-US RAGE: RAPES, MURDERS, ACCIDENTS, AND NOW THIS IN OKINAWA (https://www.scmp.com/week-asia/politics/article/2126112/anti-us-rage-rapes-murders-accidents-and-now-okinawa)
  6. Agreement Under Article Iv Of The Mutual Defense Treaty Between The United States Of America And The Republic Of Korea, Regarding Facilities And Areas And The Status Of United States Armed Forces In The Republic Of Korea (https://web.archive.org/web/20050607080358/http://www.shaps.hawaii.edu/security/us/sofa1966_1991.html)
  7. Two S Korean teenagers run over US military vehicle (http://www.ibiblio.org/ahkitj/wscfap/arms1974/HRS/2002/Stop%20US%20Military%20dossier/4.htm)
  8. The SOFA and You (http://www.usfk.mil/Portals/105/Documents/SOFA/I_20160425_The_SOFA_and_You.pdf)
  9. Murder in Bahrain: Jurisdiction under the U.S.-Bahrain Status of Forces Agreement (https://www.linkedin.com/pulse/murder-bahrain-jurisdiction-under-us-bahrain-status-forces-okane)
  10. U.S. sailor shoots two female colleagues on Bahrain base in ‘love triangle’ killings (http://www.dailymail.co.uk/news/article-488985/U-S-sailor-shoots-female-colleagues-Bahrain-base-love-triangle-killings.html)
  11. Aquino defends military agreement with the US despite murder inquiry (http://www.eaglenews.ph/aquino-defends-military-agreement-with-the-us-despite-murder-inquiry/)
  12. U.S. Marine found guilty of killing transgender Filipino (https://eu.usatoday.com/story/news/world/2015/12/01/marine-guilty-transgender-filipino-killing/76597936/)
  13. Court Affirms Conviction of US Marine in Death of Transgender Filipino (https://www.military.com/daily-news/2017/04/10/philippine-appellate-court-affirms-conviction-us-marine.html)
  14. U.S. Sargeant is Said To Kill 16 Civilians in Afghanistan (https://www.nytimes.com/2012/03/12/world/asia/afghanistan-civilians-killed-american-soldier-held.html)
  15. Soldier Gets Life Without Parole In Deaths Of Afghan Civilians (https://www.nytimes.com/2013/08/24/us/soldier-gets-life-without-parole-in-deaths-of-afghan-civilians.html)
  16. Legal Status of US Forces in Iraq From 2003-2008 (https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1336&context=cjil)
  17. Security agreement puts 16,000 Iraqi detainees at risk of torture (https://www.amnesty.org/en/latest/news/2008/11/security-agreement-puts-16000-iraqi-detainees-risk-torture-20081128/)
  18. Secret US-Iraq “Status of Forces” Agreement Would Preserve Human Rights Violations, Torture Policies in Iraq (https://www.huffingtonpost.com/tom-hayden/secret-us-iraq-status-of_b_111456.html)
  19. Sofa so disastrous (https://www.theguardian.com/commentisfree/2008/nov/28/iraq-middleeast)
  20. Iraq’s move to revoke immunity for troops adds to US problems (https://www.dw.com/en/iraqs-move-to-revoke-immunity-for-troops-adds-to-us-problems/a-15472508)
  21. USA and Torture: A History of Hypocrisy (https://www.hrw.org/news/2014/12/09/usa-and-torture-history-hypocrisy)
  22. Torture and Prison Abuse in Iraq (https://www.globalpolicy.org/humanitarian-issues-in-iraq/torture-and-prison-abuse-in-iraq.html)
  23. Report on Status of Forces Agreements (https://www.state.gov/documents/organization/236456.pdf)
  24. The International Criminal Court: Why Is the United States Not a Member? (https://thehumanist.com/news/international/the-international-criminal-court-why-is-the-united-states-not-a-member)
  25. United States and the International Criminal Court (http://www.globalissues.org/article/490/united-states-and-the-icc)
  26. International Criminal Court (https://www.state.gov/j/gcj/icc/)
  27. ACORDO S.O.F.A. ASSINADO ENTRE CABO VERDE E ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA (https://www.facebook.com/mdncv/posts/1728105383938655)
  28. PM de Cabo Verde diz que acordo de defesa e segurança com os EUA “é claro” (https://www.rtp.pt/noticias/economia/pm-de-cabo-verde-diz-que-acordo-de-defesa-e-seguranca-com-os-eua-e-claro_n1082881)
  29. The States Parties to the Rome Statute (https://asp.icccpi.int/en_menus/asp/states%20parties/african%20states/Pages/cape%20verde.aspx)
  30. SOFA – Cabo Verde dá tudo e não recebe nada – Wladimir Brito (https://www.vaticannews.va/pt/africa/news/2018-07/sofa-cabo-verde-da-tudo-e-nao-recebe-nada-wladimir-brito.html)
  31. Wladimir Brito: “Esta é uma Constituição de dignidade e liberdade da pessoa humana” (https://expressodasilhas.cv/pais/2017/12/15/wladimir-brito-esta-e-uma-constituicao-de-dignidade-e-liberdade-da-pessoa-humana/55767)
  32. SOFA: Um parecer incómodo (https://www.anacao.cv//2018/07/07/sofa-um-parecer-incomodo/)
  33. Memorando: Aspectos jurídicos da proposta de Acordo sobre o Estatuto das Forças dos Estados Unidos (https://www.anacao.cv//wp-content/uploads/2018/07/SOFA-Memorando-SOFA-CV-EUA-MDN.pdf)
  34. Case of live anthrax on US military base raises questions of revising Status of Forces Agreement (http://english.hani.co.kr/arti/english_edition/e_international/693526.html)
  35. Korea, US begin talks on anthrax incident (http://www.koreatimes.co.kr/www/common/printpreview.asp?categoryCode=120&newsIdx=182827)
  36. Joint U.S.-Korea Probe Discovers U.S. Forces Korea Brought Anthrax Samples to South Korea 16 Times From 2009 to 2014 (http://en.koreaportal.com/articles/6207/20151217/joint-u-s-korea-probe-discovers-forces-brought-anthrax-samples.htm)
  37. Anthrax as a biological weapon (https://www.medbroadcast.com/channel/infection/overview/anthrax-as-a-biological-weapon)
  38. Timeline: How The Anthrax Terror Unfolded (https://www.npr.org/2011/02/15/93170200/timeline-how-the-anthrax-terror-unfolded)
  39. Contamination on Yongsan US base confirmed (https://www.koreatimes.co.kr/www/nation/2017/11/371_227803.html)
  40. US Military Contaminates Central Seoul Neighborhood (https://www.koreaexpose.com/usfk-yongsan-contamination-toxic-record/)
  41. U.S. military report suggests cover-up over toxic pollution in Okinawa (https://www.japantimes.co.jp/community/2014/03/17/issues/u-s-military-report-suggests-cover-up-over-toxic-pollution-in-okinawa/#.W0ExsNJKjDc)
  42. Pentagon blocks report on ‘toxic contamination’ at base outside Okinawa capital (https://www.japantimes.co.jp/community/2015/09/16/issues/pentagon-blocks-report-toxic-contamination-base-outside-okinawa-capital/#.W0ExptJKjDc)
  43. Overseas Basing of U.S. Military Forces – An Assessment of Relative Costs and Strategic Benefits (https://www.rand.org/pubs/research_reports/RR201.html)
  44. News Navigator: How much does Japan pay to host U.S. military forces? (https://mainichi.jp/english/articles/20160530/p2a/00m/0na/017000c)
  45. U.S. assessing cost of keeping troops in Germany as Trump battles with Europe (https://www.washingtonpost.com/world/national-security/us-assessing-cost-of-keeping-troops-in-germany-as-trump-battles-with-europe/2018/06/29/94689094-ca9f-490c-b3be-b135970de3fc_story.html?utm_term=.761c5d8c38ce)
  46. 2018 Defense Budget (https://militarybenefits.info/2018-defense-budget-overview/)
  47. Defense outlays and forecast in the United States from 2000 to 2028 (as a percentage of the GDP) (https://www.statista.com/statistics/217581/outlays-for-defense-and-forecast-in-the-us-as-a-percentage-of-the-gdp/)
  48. What the massive US military budget pays for (https://edition.cnn.com/2018/03/28/politics/us-military-spending-items-intl/index.html)
  49. Analysis of the FY 2010 Defense Budget Request (https://csbaonline.org/research/publications/analysis-of-the-fy-2010-defense-budget-request)
  50. Acordo de segurança marca nova fase de cooperação entre Cabo Verde e os EUA – Oposição (https://www.dn.pt/lusa/interior/acordo-de-seguranca-marca-nova-fase-de-cooperacao-entre-cabo-verde-e-os-eua—oposicao-8774890.html)
  51. WikiLeaks: Cabo Verde nega instalação de base militar dos EUA (http://expresso.sapo.pt/dossies/dossiest_actualidade/dossie_wikileaks_portugal/wikileaks-cabo-verde-nega-instalacao-de-base-militar-dos-eua=f620247#gs.IU8x4As)
  52. Where in the World Is the U.S. Military? (https://www.politico.com/magazine/story/2015/06/us-military-bases-around-the-world-119321)
  53. Sobre o Acordo do Estatuto das Forças Armadas Norte-Americanas, SOFA (https://expressodasilhas.cv/opiniao/2018/07/02/sobre-acordo-do-estatuto-das-forcas-armadas-norte-americanas-sofa/58888)
  54. EUA estudaram condições para instalar base militar em Cabo Verde (https://www.dn.pt/dossiers/mundo/wikileaks/noticias/interior/eua-estudaram-condicoes-para-instalar-base-militar-em-cabo-verde-1727420.html)
  55. Cabo Verde: Background and U.S. Relations (https://fas.org/sgp/crs/row/R44756.pdf)
  56. Old wounds, deep scars: US intervention in Africa (https://www.aljazeera.com/indepth/opinion/2013/10/old-wounds-deep-scars-us-intervention-africa-20131010101130448232.html)
  57. Four more ways the CIA has meddled in Africa (https://www.bbc.com/news/world-africa-36303327)
  58. U.S. supports West African military intervention in Gambia: State Department (https://www.reuters.com/article/us-gambia-politics-usa-idUSKBN15330X)
  59. America’s ‘war on terror’ gains a new ally: tiny Senegal (https://news.vice.com/article/americas-war-on-terror-gains-a-new-ally-tiny-senegal)
  60. Agreement Between the UNITED STATES OF AMERICA and SENEGAL (https://www.state.gov/documents/organization/263143.pdf)
  61. Ghanaians protest over expanded military co-operation deal with U.S. (https://www.reuters.com/article/us-ghana-protest/ghanaians-protest-over-expanded-military-co-operation-deal-with-u-s-idUSKBN1H41ZS)
  62. Thousands in Ghana march against deal with US military (http://thehill.com/policy/international/380710-thousands-of-protesters-march-against-deal-with-us-military-in-ghana)

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