José Manuel Araújo
Do analista escutei: “S. Vicente polariza Santo Antão e S.Nicolau. Praia polariza Brava, Ribeira Grande de Santiago e S. Domingos”.
Enquanto instrumento de reflexão, tal constatação carece dalgum enquadramento.
Praia, com 500 anos, tinha na chuva o recurso, porém, com desequilíbrios: muita necessidade, pouco recurso.
E nesse tempo em que a sobrevivência se apoiava no sector primário, Porto Grande não chovia.
Após tentativas mal sucedidas, no lugar da chuva Porto Grande assumiu-se como recurso fundamental, pelo equilíbrio revelado. Muita necessidade, muito recurso – o grande Porto.
E foi por causa dessa diferença natural de recursos naturais, que antes da independência S.Vicente assumiu a posição de grande centro polarizador. Não foi um centro polarizador forjado. S.Vicente simplesmente beneficiou dos seus recursos naturais.
Aceitamos também e com satisfação que “Tanha e Memé rumaram a Santiago, prosperaram e jamais regressaram”. Porém, se só a um espírito cavo, como argumento lembraria a vulgaridade romanesca de manchar o chão que pisou a requintada pena de Manuel Lopes e outras almas grandes da nossa literatura, a verdade é que também outras tantas Tanhas e Memés rumaram a Mindelo e outras ilhas, prosperaram e jamais regressaram.
Entretanto, com a independência, tenta-se entender a novidade por trás de mudanças tão radicais.
As ilhas, cada uma com a sua especificidade e potencialidade, desde infindáveis praias de areia branca, um grande porto ou grande quantidade de pequenas mas também belas praias de areia branca, bonitos vales e exuberantes montanhas, imponente vulcão, clima sedutor e flores das mais belas, exibem os recursos naturais do país.
Por isso, objectivamente, nada justifica este percurso da Praia que em apenas 42 anos de independência, consegue polarizar tudo de tudo no país, a não ser um processo atolado num mar de contradições, só por se ter confundido a condição de capital, com um recurso natural.
Contradições sempre suportadas por expressões sonantes como, “pólos centralizadores”, “centros polarizadores”, “é o mercado que decide”, “assimetrias regionais”, “Tanha rumou a Santiago com Memé, prosperaram e jamais regressaram”, “sol a sol”, “todas as ilhas”, enfim, uma série de conceitos que astuciosamente tentam ocultar a pretendida confusão para impedir que se encontre as verdadeiras respostas para um país que se permita ser integralmente justo para todos.
Reflexos dum lamentável mas profundo e persistente trauma histórico-cultural que se vivifica diariamente numa infinidade de paradoxos que se multiplicam por estas décadas de independência, revelando reincidentemente dois pesos e duas medidas de pensamento, dos quais, deveremos visitar alguns.
Não voltarei a enquadrar factos antigos como o ponta pé de saída deste processo, dos quais tenho referido o Parque “5 de Julho”, o jornal “Voz di Povo”, o Gimnodesportivo “Vavá Duarte”, a Corrida de S. Silvestre ou o fecho da rádio Voz de S. Vicente, mas antes, centrando-me só nalguns dos recentes, deixar a cada um a liberdade de entender os paradoxos da ponte causa/efeito nestes 42 anos.
1º – Se se supõe que S. Vicente está com um crescimento acelerado, mesmo que ninguém descortine a origem de tal suposição, decide-se que a boa solução é “travar o crescimento” da ilha. Mas paradoxalmente, se se comprova que Praia está com um crescimento acelerado, decide-se que a única solução é “um Estatuto Especial”.
2º – Reconhece-se a existência de dois hospitais centrais e que as evacuações para o Hospital Agostinho Neto apresentam os seguintes dados: provenientes da Brava, Fogo e Maio 100%; de Sal e Boa Vista 75%; de S. Nicolau 50%. Logo, conclui-se que há flagrante necessidade de se investir neste hospital para poder responder a tal demanda. O grande paradoxo é que essa evidência, como sempre esconde outra.
Terá o Hospital Batista de Sousa todas as capacidades em equipamentos, instalações e especialidades, que o permitam responder adequadamente às demandas da região de Barlavento?
Colocada assim a questão consegue-se compreender a pressão de evacuações para o Agostinho Neto e assim, não só resolver os problemas deste hospital como também atingir muitos outros objectivos para o país: Mais um hospital com igual capacidade para servir Cabo-verde; mais uma região (Barlavento) melhor servida; Mais um passo rumo ao ideal de termos as respostas o mais próximo das populações; Menos um acto centralizador e multiplicador do centralismo; Mais desafios de crescimento profissional para os técnicos do Batista de Sousa e assim, concluir da prioridade de investimento sim, mas, no Baptista de Sousa.
3º – O tradicional carnaval mantido no tempo pela força da paixão genuína do povo de S. Vicente, foi objecto dum apoio diferenciado de 11 000 contos. Na Praia, foi um Deus nos acuda e o governo de imediato diminuiu esse valor para 7 000.
Porém, quando o governo teve a força da paixão para criar, manter e suportar o AME com o valor de 22 000 contos anuais (mais de três vezes os 7 000), e decidiu instalá-lo na Praia, paradoxalmente, não caíram nem o Carmo nem a Trindade. Pelo contrário, ecoaram cânticos de propaganda à cidade criativa, no lugar de loas ao governo criativo.
4º – Se em vez de 10 ilhas Cabo-verde fosse uma única ilha de 4033 km2, seguramente, para melhor gestão dos nossos escassos recursos, teríamos o bom senso de ambicionar um único porto (o Porto Grande) e um único aeroporto, o do Sal mas, paradoxalmente, com os mesmos escassos recursos, a ilha de Santiago com uma área de apenas pouco mais de 900 km2 (menos de 1/4 dos 4033), quer dois aeroportos internacionais.
5º – Por uma lei à medida, S. Vicente é a única ilha (única) que vê escoar toda a taxa (a segunda maior do país) rodoviária para outras ilhas, sem receber qualquer compensação por essa expressiva saída de receitas, para entretanto depois, ter de ir endividar-se com empréstimos para reasfaltar vias danificadas, ficando assim sem margem para investir na expansão da asfaltagem da cidade. Enquanto isso, paradoxalmente, em Santiago pede-se 80 milhões de contos para via rápida Praia-Tarrafal, percurso este onde já existem duas vias que poderiam ser muito bem requalificadas.
6º – Cria-se um museu do mar em Mindelo mas paradoxalmente, todo o espólio marinho de Cabo-Verde é depositado no museu de arqueologia na Praia, esvaziando de conteúdo e valor o outro museu.
7º – À auto-estima que hoje se exibe na Praia com o imparável e desproporcional crescimento da região tanto social como urbanisticamente, no saneamento, no desporto, cultural e economicamente, absorvendo quase toda a população de Cabo-Verde, quase toda a riqueza do país, paradoxalmente sucedem-se reivindicações de estatuto especial e de mais dinheiro, tudo como se os sinais enviados por esses 42 anos de independência quisessem claramente significar que a vontade centralizadora deve ter o céu como limite e em Cabo-verde, um saco sem fundo ao dispor da felicidade da Praia e dos praienses.
Estes sete paradoxos são só a ponta do iceberg da mentalidade que vem fazendo escola à procura de instalar a ideia de que, é normal e até benéfico, aceitar que só com uma clivagem abismal entre Praia e o resto do país, Cabo-verde sobreviverá.