Natacha Magalhães
Falemos de liberdade. Dessa que nos permite ser, pensar e agir. Dessa que faz de nós cidadãos destas ilhas onde, a toda a hora, em todos os espaços, há quem nos queira verde, amarelo ou azul. Mostremos aos mais jovens que a liberdade vem do pensamento e que este é, nas palavras do poeta e Presidente da República, a via para escaparmos à opressão e a forma para exercermos a nossa cidadania
1.A cidade da Praia acolheu na ultima semana o VIII Encontro de Escritores de Língua Portuguesa. De entre várias intervenções e afirmações proferidas há uma que particularmente chamou-me particularmente a atenção e que veio mesmo a calhar nesses dias de conturbados momentos. Disse o escritor que, por sinal, é o chefe da Nação, o guardião da Constituição, dos direitos constitucionalmente consagrados que a literatura é a possibilidade de escaparmos à opressão e uma forma de exercermos a nossa cidadania e que esta tem influência no nosso pensar e no nosso agir. Não poderia concordar mais. Como também não poderia deixar de concordar que a liberdade de manifestação de pensamento e de expressão é um direito que não pode ser nem cerceado nem condicionado. Dai que devem todos os protagonistas da política nacional entenderem de vez que em democracia as opiniões contraditórias e divergentes nem sempre são “politiquices”, nem sempre são ecos de minorias partidárias; já é chegado o momento de se aceitar que, 27 anos depois da instalação da democracia, existe nestas ilhas, uma sociedade cada vez mais atenta, informada, inconformada e exigente. E não adianta julgar-nos todos farinha do mesmo saco nem parte da mesma bolha. Há que se livrar da tentação de se procurar qualquer coisa outra nas entrelinhas, num árduo e vazio exercício de tentar escrutinar a cor que colore o mundo de cada um que tenha opinião contraria, que pense com a sua cabeça. A tentativa de silenciamento e condicionamento da liberdade de expressão, o exercício constante de se desconsiderar, desrespeitar e apoucar opiniões contrárias e a resistência em aceitar que hoje a sociedade cabo-verdiana não é mais a mesma que era há vinte anos atrás são perigosos sintomas e que apontam para uma democracia doente. E não podemos retroceder, sob o risco de perdermos o posto de melhor democracia de África.
2.Ainda sobre o pensamento critico, tive a oportunidade, durante o VIII Encontro de Escritores de Língua Portuguesa, de discorrer sobre a relação entre a cidade e a juventude. Entre a cidade e a emergência de uma juventude crítica e cidadã. À beira de completar 160 anos, Praia é cada vez mais uma cidade cosmopolita, culturalmente dinâmica. Proliferam ofertas culturais, nas quais os jovens participam com fervor. O lazer e o entretenimento são direitos, mas é dever das autoridades locais criar e estimular espaços onde os jovens possam pensar e refletir a cidade, o país, ou outros temas e, a partir dai, se assumirem como parte ativa da construção e desenvolvimento da urbe e do país. Não apenas pela via da literatura, mas de todas as manifestações que permitam aos jovens observar, pensar, criar ou recriar.
3. O prato do dia é o que se serve com a Comunicação Social e Governo à mistura. Nunca se assistiu a tanta desavença entre essas duas classes que se amam e se odeiam, verdade seja dita. Sempre que se vislumbra um tempo de paz e aproximação, la vem coisa e tal, e pimba! Volta tudo a descarrilar. Desta feita foi o relatório do departamento de Estado norte-americano a despoletar a polémica. Entre o disse e não disse, com acusação de erros de interpretação, de incapacidade em traduzir o relatório e de estar a enviesar o conteúdo do relatório, por um lado, e de desprezo e profunda falta de respeito pelos profissionais cabo-verdianos da Imprensa, por outro, duas notinhas passam despercebidas. A primeira é que os jornalistas cabo-verdianos e outros profissionais da mídia praticaram autocensura, pelo desejo de manter os seus empregos. Mau. Muito mau já que é a imprensa, livre a contrabalança no exercício de qualquer poder. Porém, muito interessante seria saber onde se pratica essa tal auto censura e, não menos interessante seria ver o governo dar sinais de que nenhum jornalista perderá o seu emprego por fazer o seu trabalho com verdade e honestidade; a segunda nota é que com essa celeuma toda passa completamente à margem outras questões também relevantes. Não fosse o relatório, não se saberia de coisas sérias, nomeadamente que o país continua sendo citado pelo uso excessivo da força pela polícia e agressão a pessoas detidas, que há tratamento desumano e castigos degradantes, detenções abusivas e corrupção. O país é citado por tráfico de pessoas e falhas na proteção das crianças face à violência e a trabalhos perigosos. E se nos centrarmo-nos no que é sério?
4.A lei cabo-verdiana é amiga das armas. Essa foi a frase, agora transformada em chavão, que ditou a destituição do comandante Elias Silva do Comando Regional da PN do Sal e a sua transferência para a cidade da Praia. Não ouvi o comandante a proferir tais afirmações. Ouvi sim, e prontamente causou- indinação, ouvi-lo afirmar que todos os cabo-verdianos deveriam ter licença de porta de arma. Bem, se Elias Silva não pode proferir tais palavras porque pelas suas funções não as poderia ter dito, certo que, em Comunicação é imperioso o exercício de interpretar, ir mais além para se perceber o que fica nas entrelinhas. É certo sim que Silva errou quando, na qualidade de agente da autoridade e com altas funções na Corporação, disse o que disse. Mas também é certo que Elias Silva é cidadão dessa terra, que vê e sente o que a sua volta se passa. E é nesse sentido que se deve interpretar as afirmações do cidadão Elias Silva. Não creio que teria sido intenção do comandante ofender os fazedores e executantes das leis nem muito menos querer que em cada esquina esteja um cidadão armado. Também não acredito que terá este perdido a noção sobre quem é (era) e que funções tem (tinha). Elias Silva é sim um agente da autoridade, mas é também cidadão que até bem pouco tempo morava numa ilha onde, diariamente, os seus moradores convivem com assaltos, hoje bem mais sofisticados, envolvendo armas perigosas e bandidos destemidos que sabem ludibriar as câmaras de segurança com os seus capuzes bem enfiados e a evitar o encontro frontal com as mesmas. Elias Silva acusou cansaço? Sim, pode ser. Pediu outras respostas, mais firmes, quiçá, às autoridades judiciais? Há duvidas nisso? Nós, meros cidadãos, e que já ouvimos relatos de familiares, amigos e conhecidos que foram vitimas de assaltos, roubos, ferimentos, que vimos nossos bens serem levados, sabemos bem que o combate a criminalidade perderá se outras respostas, mais firmes, não chegarem.
5.Não podemos esquecer. Não podemos permitir que se esqueça. E por isso, volto com o desaparecimento das crianças de Eugénio Lima e Castelão. Em fevereiro deste ano, a PGR determinou a constituição de uma equipa conjunta de investigação com o objetivo de proceder à investigação dos casos de desaparecimento de crianças. Na altura, a PGR assegurou que 30 dias, a contar da data da criação da equipa, seria o tempo que demoraria para apresentar um relatório sobre a evolução da investigação. Volvidos três meses (e quase meio ano sobre o desaparecimento de Edivânia), o assunto parece querer morrer. Mas não para as famílias. E talvez isso tenha justificado que moradores daqueles dois bairros da capital tenham saído às ruas numa marcha de protesto, para exigir o que chamam de alguma “satisfação sobre os seus entes queridos”. Onde estão as crianças? O que lhes aconteceu? Ressalvando as necessárias reservas sobre os meandros da investigação, seria bom que o Ministério Público nos dissesse algo sobre o assunto.
6.E termino com uma ode à Praia, minha cidade, meu porto. Tu és um texto. Com as exclamações que me soltam da boca quando à tardinha em ti me passeio e contemplo o sol a namorar o mar, preguiçosamente. Não há espetáculo mais belo! És reticências porque me deixas sempre nessa expetativa de te querer mais bonita, mais composta ainda que me deleito com tuas escadarias coloridas que nascem também em desconhecidas vielas; tu és dois pontos: o farol e o seminário; o miradouro e o Diogo Gomes; o Platô e o mercado buliçoso e cheio de cores; és interrogações. Não te quero perdida entre betões, Praia Maria minha. Quero-te moderna, sim. Mas quero-te próxima a mim, quero ver o mar que te abraça; quero ver o verde da esperança num futuro que sei, será para ti iluminado. Parabéns, Praia di meu.