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Opinião

Funções de Delegado Marítimo no Sal: (Extraído do meu livro “Eu, o Mar, o Sal, a (In)Justiça…Memórias)

Silas Leite

A 28 de Setembro de 1982, dia dos meus 21 anos, pisei o Aeroporto dos Espargos no Sal, vindo de São Vicente no avião dos TACV e após ter cumprido período de estágio na então Direcção Geral da Marinha e Portos.

Começava a partir desse momento uma nova fase da minha vida como profissional e já com um primeiro problema para resolver. Afinal a pessoa que havia de me receber e me colocar na minha residência…Nenhuma coisa nem outra! Volvidos cerca de duas horas numa espera sem norte, dei de caras com o “Bomba”, meu ex-companheiro de caserna no serviço militar e o mesmo que havia reclamado do seu género masculino aquando do castigo em parada. Foi ele quem a providência quis pôr no meu encalço para me safar nesse primeiro dia de má memória. Enquanto ele metia – me no carro também me ia informando que a pessoa que eu estava à procura tinha cumprido o primeiro período do Trabalho na Alfândega cita no Aeroporto e só voltava às 14 horas. Assim, fui convidado a almoçar e estar com ele até à hora de procurar saber junto do Vitorino Rocha, a razão da sua ausência no acolhimento e acomodação na tal residência. Quando, por volta das 14:30 encontrei me os serviços alfandegários no aeroporto, perguntei à uma senhora no atendimento se estava o Senhor Vitorino Rocha e ela fez um sinal com o dedo e dizendo “É aquele Senhor ali ao telefone.”. Rapidamente percebi que a conversa girava em torno da minha pessoa o que veio a confirmar, quando ele veio ter comigo. Apresentei-me e foi se desculpando pois, não tinha sido informado em concreto do dia e hora da minha chegada quanto mais da minha residência. O Vitorino Rocha (já falecido) tinha sido indigitado a acumular as suas funções de Reverificador alfandegário com as de delegado marítimo a partir dos primeiros tempos da Independência Nacional. Antes o sector marítimo na ilha do Sal era suportado pela marinha portuguesa que colocava na ilha do Sal e em regime de comissão de serviço de aproximadamente dois em dois anos os seus oficiais que recebiam o nome “Patrão – Mor”. Os mesmos eram acomodados numa residência existente naquela vila administrativa de Santa Maria para o mencionado fim. Para além desta prerrogativa usufruíam ainda de assistência e apoios com meios de transporte nas suas deslocações em serviço nas mais diversas áreas de jurisdição marítima naquela ilha. Por ser quadro da Alfândega, o detentor do cargo de delegado marítimo em acumulação de funções residia na Vila dos Espargos e só em casos pontuais se deslocava para a sede em Santa Maria acerca de 20 quilómetros de distância, onde tinha como coadjuvante um faroleiro que o assistia quotidianamente nas lides administrativas.

Era já noite, quando cheguei na Vila de Santa Maria em situação de boleia ocupando a caixa cheirando a peixe do carro da fábrica de transformação de pescado JA Nascimento. O condutor levou me até a casa de Artur Estrela, incumbido por Vitorino Rocha de me acolher e alojar. Apresentei-me e ele, todo simpático, foi logo confirmando que tinha sido contactado pelo Vitorino Rocha. De imediato, pusemos nos ao caminho, praticamente as escuras e alojou me num quarto todo mobilado. Acendemos a luz das velas por ausência de Iluminação publica, mostrou me os cantos da casa e levou me de seguida a casa da Tia Alda, uma senhora que confeccionava refeições para a venda. Ali, juntei me a mesa com outras pessoas, jantei me à medida que ia “cavaqueando” com os ocupantes todos simpáticos e com ares de bons amigos. A Casa de Pasto da Tia Alda passou a ser o meu refeitório. Convidei o pessoal a fazer um beberete na minha nova residência em comemoração dos meus 21 anos (A propósito da data do meu aniversário, veio a minha mãe me a informar anos depois que o meu dia era o 24 e não o 28 de Setembro, muito por causa do meu primeiro filho nascido a 24 de Setembro. Assim hoje em dia comemoro à24).Com o “Gugu”, funcionário das Finanças e Paulinho da Polícia, meus primeiros amigos, fizemos “tchim-tchim” no ponche e nas famosas bolachas de São Vicente que trazia para o Sal. E desta forma, fechava eu esse meu primeiro dia como Chefe da Administração Marítima no Sal, maltratado pelo próprio patrão, o Estado de Cabo Verde e bem tratado por pessoas desconhecidas.

Uma Semana depois, era empossado por Lucas Monteiro do então Departamento Marítimo de Sotavento, vindo da cidade da Praia para o mencionado fim. Antes, porém, tinha eu já tomado o pulso de toda situação reinante. Pequeno compartimento servindo de serviços administrativos com mobiliários carcomidos pelo tempo, embarcações navegando sem a competente vistoria, o certificado de navegabilidade, e o rol de matriculas de tripulantes, botes sem registo e / licença ocupados por pessoal indocumentado, praias frequentadas por banhistas em estado de nudismo, animais banhando como cavalos e cães partilhando com pessoas o mesmo espaço balnear, Dejecto de imundices na principal praia turística da Vila de Santa Maria, entre outras situações nada abonatórias ao bom nome do sector marítimo da ilha. Sobressaía a vista de qualquer cidadão, o abandono que área de jurisdição marítima foi votado pós independência, marcado sobretudo pela gritante insuficiência de recursos humanos, equipamentos e de verbas para combater e impor uma nova ordem e disciplina na organização da administração e segurança marítima na ilha de Sal.

Talhado por natureza por vivências, experiência militar adquirida, e as adversidades, lancei – me ao desafio e com brio profissional para mudar o quadro descrito, ao vez de dar as costas a espinhosa missão que me esperava a partir desse momento.

Recarregadas as energias despendidas no primeiro dia, fiz me de imediato ao trabalho. Contactado o faroleiro Rodolfo de Pina, juntos dirigimos – nos ao pequeno espaço que servia de escritório. Sendo ele que guardava a chave de acesso, abriu a porta, entramos e preparei me desde logo para conviver no quotidiano com aquela espelunca. Tive boas colaborações e troca de experiências com o faroleiro Rodolfo. Ainda nesse mesmo dia visitei parte da praia de Santa Maria e comecei a apontar os primeiros problemas a resolver. Encerrado o dia de trabalho lembrei me de uma pequena encomenda enviada pelo meu irmão David ao amigo Pedro e que tive a oportunidade de conhecer também aquando de umas férias dele na nossa casa em São Vicente. Entregue a encomenda, o Pedro pôs se desde de logo a disposição para apoiar no que fosse preciso. Rapidamente e com relativa facilidade, fui granjeando através dele e com os meus atributos de ser humano extrovertido, espontâneo, bons conhecimentos de relacionamento pessoal e até de algumas amizades. Já no meu primeiro fim-de-semana, aliei me ao convite de um pequeno grupo para com o Pedro Á testa para uma festa na vila dos Espargos. A metade do caminho do regresso a casa, ai por volta da meia-noite e na brincadeira, um deles disse para mim:  “ Silas, tma cuidode porque kel casa ke bo te morode é assombrado e tem gent ke te ba lá e ess ke te fcá mas ke um note porque ess te oia vela, papel e ots cosa te sebi pe altura. Lá tem morride uns dos pessoa e ess te dze é que ses esperit é que estode lá” , Brincadeira danada, ein!.A chegada em casa, tentei disfarçar o medo mas … Deixei o pessoal partir, saí de mansinho, dei umas voltas na pequena praça e pensei com os meus botões: “Silas, já bo te ne kel casa quase um semana e nada de especial ke contecé, por isso, ba detá ne bo cama”. Aquilo era uma casa enorme, com mobiliários antigos e de grandes divisórias. Onde a escada de acesso e o soalho eram à madeira onde cada passo soava “Ktum , Ktum” e existia a entrada do meu quarto um sobrado logo a minha vista. Ok… Apenas tendo por companheira a luz do luar, pus me a caminho de casa. Abri a porta de acesso ao hall e quintal cheio de trepadeiras e comecei a subir a escada, quando repentinamente sai me em direcção contraria um gato preto com os olhos arregalados. O primeiro calafrio e os cabelos a me levantarem da cabeça. Continuei, abri uma segunda porta e no “Ktum , Ktum” dos passos, contornei me a esquerda por outra porta e abri uma outra que dá acesso ao meu quarto. Feita a minha higiene pessoal, apaguei a vela e deitei – me ainda inquieto. Custou me a pegar sono quando momento depois, abri os olhos e apareceu me um vulto também em forma deitada, levantei me todo suado, voltei a acender a vela e afinal….era minha própria cara estampada no espelho da porta do guarda fato que ficou entreaberta e defronte a mim, quando lá depositei as minhas roupas. A penumbra lunar que entrava pela janela do quarto, também acabou por ajudar neste cenário supostamente horroroso. Fechei a porta do guarda fato, apaguei a vela e com algumas preces, fiz me de novo a cama. Desta vez, dormi, sim Senhor! E pronto… Durante algum tempo convivi diariamente com um apartamento ao estilo dos filmes de terror, condimentada com gato preto e flores de trepadeira próprias para colocação em túmulos. Volvidos alguns meses e porque os serviços centrais da Direcção Marinha e Portos continuavam com situação de residência por resolver acabei por desistir do apartamento e ocupei um outro quarto no rés-do-chão, por gentileza continuada do senhor Artur Estrela, director da Companhia do Fomento de Cabo Verde, uma empresa de exportação do Sal na época em fase de decadência. Ali em baixo, tive mais outro caso com Sr. Gato preto. Jamais adaptado ao ambiente, certo dia pela noite Á dentro ao mudar de posição enquanto dormia notei a penumbra lunar a entrar pela porta do meu quarto. Arregalei os olhos, levantei me e dei com a porta toda escancarada. Frente-frente, dei de caras com o “meu companheiro”, em posição sentado como se estivesse em missão de serviço de segurança. Como ele não obedecia ao meu gesto de ir procurar poiso em outro sitio, fechei a porta e deitei me de novo, algo intrigado, pois, me ocorria a noção de a ter fechado antes. Mais umas historinhas, tive por lá, antes da mudança para outra casa, das quais realço a seguinte:

Num domingo a tardinha, acabado de chegar dos Espargos, dirigi-me a casa de um casal amigo frente a minha para recuperar a chave de acesso. Sentei me e contou me o Narino Sança que duas horas antes foi lá a minha procura e acabou por encontrar um tal senhor conhecido por “tchinho”. A porta do hall do quintal estava sem fechadura e qualquer um podia lá entrar. “Oh Tchinho, má o que bo ti ta faze li ne casa de gent kss fusca ?!“.  “Oia…ke manera ke nhe filha era bnita devera…oia ke manera ke te lá sentode ne mei de kess flor lá de cima”. “Tchinho, largome nhe broce…tcham quet, bo tcham ba embora deli…”. Entre outras conversas seguido de um pequeno lanche, saí e em menos de minuto de caminho , entrei no meu quarto. A noite era hábito, a projecção de filmes numa espécie de anfiteatro a céu aberto integrada no espaço residencial. Terminado o filme, voltei novamente ao meu pequeno compartimento, mal coloquei a cadeira que trazia comigo e ainda de costas, senti um estrondoso barulho na porta. Voltei e face-face um homem já dos seus setenta anos, parecendo embriagado dirigiu a palavra em tom de “cobras e lagartos” perguntei lhe o que queria e face as respostas disparatadas, mandei o sair e para que nunca mais me procurasse numa situação como aquela. No dia seguinte, quando contei ao Narino o ocorrido, ele confirmou que se tratava da mesma pessoa. Disse-lhe eu que, psicológica e intuitivamente, já havia preparado para uma cena como aquela.

O Narino Sança foi um dos melhores amigos, senão um verdadeiro irmão que eu tive durante a minha a estadia em Santa Maria e continuo a ter até agora. Eram longas as nossas conversas, um dos companheiros de paródia e de outras traquinices de adultos. Aconteceu uma situação muito interessante. Separados por apenas dezassete dias, nasceram os nossos filhos. Para simbolizar e eternizar a nossa grande amizade, ele e a sua querida e saudosa companheira Dosha (já falecida) foram escolhidos como padrinhos do nosso filho, e eu e a minha companheira de então a mesma coisa ao filho deles.

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