Emanuel D’Oliveira
Na confusão do embate, o sinaleiro correu para o sino de bordo e bateu sinal de alarme em toque rápido. O badalar metálico ecoou em sobressalto na noite calma. Faltava pouco para as 11 horas da noite. Foi a última vez que o sino de bordo do Drumcruil tocou.
Construído em 1900 nos famosos estaleiros ingleses de Sunderland, o vapor Drumcruil era um navio de porte imponente, com ponte de comando a meia nau, cano alto e grande envergadura. Com casco em ferro e mais de 100 metros, foi dos primeiros cargueiros de longo curso a vapor movido a hélice. Tinha duas caldeiras a vapor de última geração que lhe permitiam navegar a uma velocidade de cruzeiro de 9 nós.
Lançado como navio ‘charter’, fez duas viagens entre a Europa e Austrália e depois começou a interligar a América do Sul à Europa. Carregava adubos, madeiras e produtos agrícolas para a Europa e trazia equipamentos, maquinarias e produtos acabados para a América do Sul. Em março de 1905, largou do porto chileno de Iquique com destino a Dover, na Inglaterra, com carga plena de ‘Nitrato do Chile’. Sob comando do Capitão Walter Masser e uma tripulação de 33 operacionais, o Drumcruil cruzou o Cabo Horn, fez escala em Montevideu e a 18 de abril rumou ao Atlântico Norte, fazendo baliza em Cabo Verde.
Na manhã de 7 de maio avistou Santiago e rumou para passar a Este da Boavista. Navegava com bom tempo, a uma velocidade de 8,5 nós naquele domingo calmo. Pelas 8 da noite, o Capitão Masser deu ordem para folgar o rumo, afastando o navio da costa. Queria passar 3 milhas ao largo da Ponta do Roque. Às 10:10 da noite, à vista de terra, o imediato F. Miller calculou que o navio estava no rumo certo e que pela meia-noite já teriam passado a Boavista.
Locomotiva dos mares
O Drumcruil foi contruído para durar cem anos. Era o maior navio a vapor construído pelos construtores navais John Blumer & Company e o porta estandarte da Astral Shipping, companhia de navegação de Liverpool. Não só dispunha da mais avançada tecnologia de propulsão e de navegação do virar do século, como aos comandos iam dois experimentados lobos do mar.
Em janeiro daquele mesmo ano de 1905, o almirantado britânico lançara novas cartas do Atlântico, assinalando um novo baixio ao largo da Boavista. Mas, quando o Drumcruil zarpou de Liverpool navegava ainda com a carta de 1903. Para navios de baixo calado a passagem do baixio não era problema. Mas, o cargueiro inglês vinha carregado e o calado chegava perto dos 9 metros. Como se não bastasse, a maré estava vazia.
Quem estivesse no Pico do Forcado, no Leste da Boavista, a ver o pôr-do-sol naquele fim de tarde, teria um espectáculo memorável. Apesar da aragem morna vinda de África, o tempo estava limpo e o céu parecia em fogo, derramando ouro avermelhado à entrada da noite. A maré vazia desnudara a alvura do areal da praia de Ervatão. Um grande navio escuro corria suave paralelo à costa, deixando uma coluna de fumo a marcar o caminho. As luzes de bordo acenderam-se enquanto o véu lusco-fusco do anoitecer envolvia mar e ilha. Viviam-se tempos difíceis na Boavista. A fome de 1904 dizimou tudo o que era vivo, deixando os raros flagelados do vento leste a lutar pela vida.
F. Miller anotava as posições do navio quando foi súbita e violentamente atirado contra a amurada. Sentiu um ronco monstruoso e o chão a fugir debaixo dos pés. Atordoado, quis levantar-se mas não conseguia. Dum momento para o outro, a sala de comando do navio estava num pandemónio. A luz vacilou e apagou. Por entre gritos e gemidos, sentiu o sobrado do navio estranhamente imóvel. Aterrorizado, percebeu que o seu Drumcruil encalhara.
O relógio de bordo marcava 10 e 20 da noite (outra fonte aponta para 21 hrs e 47). A violência do choque rasgou as grossas chapas de ferro do fundo do cargueiro aprisionando-o aos recifes. A tripulação treinada reagiu rapidamente. As máquinas a todo o vapor forçaram manobras para safar o navio da poderosa armadilha. Tentativa após tentativa. Mas, a água subia perigosamente – tal como o desespero – mesmo com as bombas de emergência no máximo. Em pouco mais duma hora começou a alagar porões, ameaçando a casa das máquinas. Foi uma batalha pela vida até à meia-noite. Apesar de todos os esforços o Drumcruil não mexia um centímetro. Foi prisão para sempre. Em completo desalento, o capitão Messer mandou arriar baleeiras e evacuar o navio.
Segundo o Boletim Oficial de 27 de Maio/1905, o Drumcruil encalhou no Baixio de Domingos Santos a escassos 700 metros da costa, contrariando o relatório que aponta mais de duas milhas. No local, mas ainda mais perto de terra, apenas existem sinais de um naufrágio, estes, aparentemente, do Califórnia. Desvendar a verdadeira localização do vapor de Liverpool seria acrescentar mais um ponto na história trágico-marítima do arquipélago, tanto é que, com mais de cem anos, os restos do Drumcruil são património histórico submerso.
Na manhã seguinte, com toda a tripulação a salvo em terra, o capitão regressou a bordo para avaliação dos danos e organizar o resgate possível. Com ajuda de pescadores da ilha, setenta toneladas da carga e recheio do navio foram recuperados. Apenas cinco anos depois de lançada ao mar, a imponente nave construída para durar cem anos jazia presa no leito de morte ao largo da Boavista. O sino do Drumcruil calou-se no silêncio do fundo do mar.
O naufrágio foi a tribunal em Agosto seguinte. Os juízes de Liverpool ilibaram o capitão e o imediato de qualquer culpa. Os mapas de navegação a bordo não indicavam o baixio. A seguradora Loyd’s teve que pagar mais de 80 mil libras esterlinas aos armadores. O acidente provocou um urgente alerta à navegação no The London Gazette, indicando que as cartas de bordo deviam ser imediatamente actualizadas, alertando para cautela acrescida na passagem ao largo da Boavista.
Ecos do fundo do mar
Em 1985, Mestre Mário Pereira trabalhava na construção da escola do Tarrafal de Santiago (1983-1986) quando o engenheiro da obra lhe entregou um sino para instalar no pedestal do recreio, por ele mesmo construído. Era um sino pequeno, com letras gravadas e aspecto cansado. Mas tinha um toque suave que parecia vir de longe. Oitenta anos depois de ser engolido pelo mar o badalar metálico do velho bronze continuava a dar sinal de vida.
E que vida! A meninada irrompia aos bandos em algazarra ao toque das badaladas. Durante 30 anos, o Drumcruil marcou a entrada e saída das aulas para gerações de alunos do Tarrafal. As batidas do sino com ecos de mar são parte da sinfonia dos dias, doces sons gravados na sodade dos Tarrafalenses à terra-mãe.
Há seis anos, deparei com o velho sino na Escola Básica e Complementar, (mais tarde Polo nr 1, mas sempre referido como Mec, nome provavelmente herdado da empresa construtora-EMEC). Ostentava sinais de avançada corrosão de água salgada e percebi de imediato que se tratava de um sino de bordo há muito submerso. Além das arestas desgastadas, faltavam-lhe pedaços como que arrancados pelo vai-e-vem em fundo pedregoso. E tinha no corpo as cicatrizes de muito malhar de ferro, depois de, na escola, ter perdido o badalo. Batidas e esbatidas, as letras D r u m c r ainda se podiam decifrar. A história apagara o resto.
O mestre Mário Pereira ao lado do sino que ajudou a sobreviver.
A Delegação Escolar e a gestão da Escola do Tarrafal manifestaram-se sempre disponíveis para colaborar na cedência dessa peça de museu, digna de cuidados e exposição em sede própria.
Tive então a boa sorte de conhecer o Mestre Mário. Hoje reformado, é senhor de requintada memória e fino trato. Recorda a instalação do sino com um sorriso. Quanto ao responsável da obra, o Eng. Raul Carvalho, não se lembra como lhe chegou o sino às mãos, muitas eram as obras públicas que dirigia. Tudo o que sabemos é que a empresa EMEC, que no pós-independência se ocupou de várias construções estatais, trouxe o sino da Praia para o Tarrafal, juntamente com o mobiliário escolar indispensável.
De como o sino dum navio encalhado na Boavista veio parar ao norte de Santiago, estamos por saber. Seria interessante receber qualquer informação que levasse a desvendar o pequeno mistério do sino do Drumcruill de Liverpool e como teria sido resgatado das águas pouco profundas e amiúde revoltas do Leste de Boavista, o maior leito de naufrágios de Cabo Verde.
Observatório do Património Submerso
O reconhecimento de destroços dum naufrágio é difícil e nem sempre possível. Por isso, objectos recuperados com a inscrição do nome dum navio são uma raridade. Além do valor arqueológico e simbolismo estético, são peças de identificação infalíveis, (em Cabo Verde conheço apenas mais um caso idêntico, o sino de bordo resgatado do Pfiel, navio alemão naufragado na mesma ilha, em 1878). O sino do Drumcruil, um dos raros sobreviventes das centenas de naufrágios no nosso litoral, é uma peça que conta parte importante da nossa história marítima. Faz parte também da história duma escola numa comunidade feliz que, fora do país, é mais conhecida pelo ferrete da repressão colonial.
O descuido com o nosso património histórico e cultural subaquático tem custado a destruição e perda de muitos vestígios importantes da nossa memória colectiva de nação marítima. Se a falta de meios pode desculpar uma intervenção arqueológica à escala nacional, nada justifica o abandono. A constituição de um simples observatório (gabinete, ou departamento) técnico é uma solução que depende apenas da vontade das autoridades conexas. É urgente implementar vigilância sobre o espólio cultural e histórico subaquático, bem como detectar e recuperar objectos de valor patrimonial espalhados pelas ilhas, salvaguardando, prevenindo e evitando irregularidades. Com pouco, este observatório poderia salvar muito.
Devolvido à nação por uma comunidade sensível e generosa, passados cento e treze anos, o sino de bordo do Drumcruil repousará agora no Museu. Mas não se calou e aceita visitas!
Fontes:
Cabo Verde na Rota dos Naufrágios, 2005.
Report of Court n. 6837, Liverpool, Aug/11/1905.
Notice to Mariners, Board of Trade, Feb/01/1905
The London Gazette, Sep/22/1905.
Emanuel D’Oliveira/Tarrafal e Pedro Bicudo/Washington
28 de Abril de 2018