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Opinião

Descentralização e Democracia

Mário Alberto Pais*

  Alguns autores ligados teórica e praticamente às políticas descentralizadoras como Jordi Borja sustentam uma visão do processo que implica uma reconceitulização do Estado:

“A moderna descentralização não pretende defender-se do Estado central criando um espaço próprio desconectado do centro, mas, ao contrário, quer intervir, desde os municípios descentralizados, na elaboração, regulamentação, programação, tomada de decisão, execução e gestão das políticas mais gerais. Tampouco estabelece-se uma separação rígida entre instituições representativas do Estado de caráter local e sociedade civil, mas precisamente o que se vé na descentralização é um modo de articulação entre uma e outra. Tudo isto nos conduz a uma nova conceituação do Estado que não é nem o liberal nem o instrumental e classista (o Estado-pessoa marxista como instrumento de um grupo social que impõe-se ao resto da sociedade, senão que concebe ao Estado como um ordenamento organizado em distintos níveis territoriais e aberto teoricamente ao conjunto da sociedade”, Borja (1988).

Esta linha de argumentação difere dos autores (Jean Lojikne, Edmond Preteceille) e nos remete diretamente à segunda questão central do debate sobre a moderna descentralização que é sua relação com a democracia. Borja, afirma que a centralização hoje é uma expropriação política das classes populares, sendo negativa desde o ponto de vista funcional (ineficiência de serviços público e de políticas setoriais) como do ponto de vista de promoção da democracia, por 3 razões:

“ – porque afasta os cidadãos dos centros de decisão, deixando as classes populares, excluídas do poder económico e a mercê da burocracia, como principais vítimas da centralização;

– porque a centralização questiona e põe em crise as assembleias representativas (inclusive o Parlamento) incapazes de seguir a ação dos órgãos executivos, da burocracia e dos aparelhos de administração indireta. São estas instituições que as classes populares têm acesso, e que podem chegar aos representantes diretos e imediatos dos trabalhadores;

– o processo de tecnificação e burocratização da política, o enorme poder da comunicação de massa, facilitam a influência sobre os centros de decisão, por vias não públicas, das minorias que detém o poder económico ao mesmo tempo que fazem mais incompreensíveis e inacessíveis o poder político e a administração pública para as classes populares”;

O resultado é o desprestígio da democracia, dos partidos que se tornaram, na sua maioria, menos qualificados, mais desinteressantes e até ignorantes da política para uma parcela crescente da população.

Esta linha de pensamento encontra respaldo em muitos autores contemporâneos preocupados com o formalismo do modelo democrático-liberal. C. B. Macpherson (1979) no seu já clássico “A Democracia liberal” diferencia quarto fases no desenvolvimento da democracia do século passado até hoje:

– a fase atual, a democracia de equilíbrio corresponde à definição de Schumpeter, do mercado político, é altamente insatisfatória enquanto canal de representação dos cidadãos. O atual modelo exige a apatia dos cidadãos para garantir sua estabilidade. Propõe como modelo teórico o que denominou de democracia participativa, ou seja, cada Estado deve procurar conhecer profundamente, implantar e dinamizar as formas de participação, as aspirações e instituições e o que está em jogo que garantam um máximo de liberdade indivídual que implica que os indivíduos ajam dotados de uma máxima liberdade social. Igualmente deve ter a sensibilidade de detectar as formas de dependência e sujeição que ameaçam os direitos humanos e a necessidade de estabelecer intituições que garantam a autodeterminação e a responsabilidade conjunta em todas as esferas da sociedade. Além disso, uma sociedade só é vista como verdadeiramente livre e democrática na medida em que corresponde à noção que os seus membros têm de liberdade e democracia. Este é  considerando ser este o possível caminho do necessário do desenvolvimento da democracia. A sua proposta enfatiza a necessidade de cidadãos ativos, de movimentos sociais fortes, conselhos locais atuantes, partidos abertos às procuras das bases, entre outras coisas.

Para Suzana Belmartino (1990) há uma nova maneira de pensar o Estado que o situa mais próximo

à sociedade e também mais vulnerável a seus conflitos, quando os recursos são escassos com a

retração de gastos públicos. A relação de denominação é pensada mais no interior da sociedade que voluntariamente submeter-se-ia  ao poder estatal ao mesmo tempo que define as regras que limitam seu exercício e tem capacidades para reformular as bases contratuais de sua organização institucional. A possibilidade de rever o pacto social que institui o Estado, permite propostas de desenvolvimento da democracia e de cobrar-se suas promessas não cumpridas como faz o Norberto Bobbio (1988).

De acordo com este autor, Bobbio a democracia apresenta quatro paradoxos.

O primeiro refere-se à noção tradicional do regime democrático como adequado para o governo de pequenas comunidades, frente ao desenvolvimento de grandes organizações que caraterizam sua afirmação nas sociedades capitalistas ocidentais.

O segundo relaciona-se com oposição entre as condições de eficácia do controlo democrático e o aumento desproporcional do aparelho burocrático do Estado.

O terceiro postula a incompetência dos cidadãos frente a problemas cada vez mais técnicos e complexos, cujas soluções exigem especialistas na matéria; e

Por último, a oposição entre a autonomia do indíviduo-pressuposto ético da democracia – e a sociedade de massas caraterizada pelo indivíduo heterodirigido.

Manuel Castells questiona ao afirmar que o manuseamento dos serviços urbanos pelas instituições estatais, mesmo que se tenham desenvolvido originalmente como procura do movimento operário, constituíram-se em um dos mais poderosos e sutis mecanismos de controlo social e poder institucional sobre a vida quotidiana de nossas sociedades (Apud Belmartino, 1990).

Um outro aspecto também importante e frequentemente citado refere-se à crise de representação política no Estado democrático que realiza-se de forma quase que exclusiva através dos partidos políticos, hoje na sua maioria mediocres, miopes, sem clarividência na elaboraração e na implementação de politicas públicas que trazem melhorias para a sociedade e população em geral. Este sistema mostra limites importantes que se exarcebam nas situações de crise: a dificuldade de representação dos diferentes interesses económicos, sociais e culturais por um lado, e a distância entre eleitor-eleito, inclusive nos âmbitos locais, de outro.

Uma das estratégias propostas para tapar estas brechas é aproximar mais a sociedade civil ao Estado em um movimento que não siga a tendência atual de “privatização” de seus aparelhos na função de mediador e garantia dos acordos e conflitos entre grandes organizações, mas, ao contrário, persiga a construção de um espaço público onde todos os interesses e todos os setores tenham a possibilidade de expressão com transparência, no dizer de Suzana Belmartino (1990). Para esta autora é nesse sentido que deve-se entender a afirmação de Claus Offe quando assinala que as condições de luta são mais favoráveis e a possibilidade de penetração política é superior nas margens e não no centro do aparelho de Estado, seria possível o estabelecimento de canais “ininterruptos de comunicação e mobilização”.

Uma outra visão da questão democrática é a que surge do debate político italiano com INGRAO, ao postular a “democracia de massas”. Esta conceção aproxima-se das já citadas, ao incorporar as propostas de articulação entre a democracia representativa e a democracia direta, mas enfatiza os aspectos conteúdisticos da democracia, caracterizando-se ainda por propor a articulação dos conceitos de pluralismo e hegemonia, Carlos Nelsom Coutinho (1979).

E é neste contexto que a moderna descentralização torna-se uma procura e uma opção para enfrentar as obstruções autoritárias e burocráticas do Estado, ampliar e diversificar os espaços para o exercício dos direitos e liberdades civis, a autonomia da gestão municipal, a participação, o controlo e a autogestão no espaço do quotidiano.

O modelo descentralizador/democratizante supõe um cidadão ativo e participante, contribuindo como eleitor e controlador das políticas públicas e práticas dos governos locais. Sua meta seria a participação plena em um meio democrático dotado de estruturas formais e informais para garantir um processo de trocas criativas entre comunidade e governos locais. Esse é o entendimento de muitos estudiosos da moderna descentralização como Paul Bernard (1983), quando diz:

“Em definitivo, o objetivo final da democracia local é a plena inserção do cidadão na comunidade/bairro. A moderna descentralização que não é um objetivo em si, justifica-se pela extensão dos poderes dos conselhos eleitos, mas para uma aproximação de decisão e relacioná-la aos cidadãos. (…) Acima de tudo, nos dias atuais, esta democracia política solicita uma nova cidadania para não correr o risco de vir a ser formal”.

Entretanto, este modelo democracia-descentralização-município tem sido debatido de muitas formas, tendo-se relativizado a partir da avaliação feita em muitos processos de descentralização.

Essa potencialidade dos governos locais, assim como a organização político-administrativa

descentralizada está sujeita a uma dupla leitura para situá-la corretamente em termos de processos e tendências que se vão evidenciando entre conjunturas e espaços concretos.

A moderna descentralização não implicaria, assim, necessariamente a democratização e desburocratização do Estado.

O autor como João Almino chama a atenção para o facto de que a intervenção estatal na organização territorial, política, económica e cultural da nação não significa necessariamente a restrição das liberdades e do progresso social, já que ao contrário pode “implicar aumento da repressão dos poderes privados”, Apud Massolo (1988). Este autor discute o polémico binómio estatizar-desestatizar e conclui que “democratizar não é nem estatizar nem desestatizar”, associando o processo de democratização com o rompimento de monopólios sejam estatais ou privados. Portanto o controlo e diminuição do Estado, pode ser proposto para abrir espaços e possibilidades de expansão à iniciativa privada, diminuindo a carga fiscal sobre o capital e privatizando os serviços coletivos com a consequente restrição de conquistas e diretos das classes populares.

Por outro lado este mesmo controlo e diminuição de Estado pode servir para abrir espaços e possibilidades para as procuras dos setores excluídos da sociedade.

Borja (1984) que considera a moderna descentralização consubstancial à democracia, ao proceder a uma avaliação crítica do processo de descentralização na Europa relaciona algumas dos “efeitos perversos” deste processo:

“- incrementalismo político e administrativo, com aumento desnecessário de níveis, e municípios políticos territoriais;

– multiplicação e ampliação da reprodução política e da organização administrativa que tendem a reforçar as cúpulas dos partidos e os corporativismos do funcionalismo;

– a transferência de competências de carácter social para nível local pode ser uma forma de desmantelar o “Estado de Bem Estar” e de diminuir drasticamente as prestações sociais quando não são transferidos recursos económicos e materiais suficientes;

– em alguns casos a descentralização serviu para legitimar a atividade de agentes privados e o mercado capitalista, inclusive em setores tradicionais de serviços públicos, apesar da pouca iniciativa e do mau funcionamento da empresa privada;

Deste modo as diferentes conceções do local e em particular sua articulação com as possibilidades do desenvolvimento, a dinâmica do sistema político e as consequências sociais dos processos de modernização e mudança aparecem complexadamente atravessados por orientações de esquerda e de direita, na visão de Borja.

Suzana Belmartino (1990), ao discutir a moderna descentralização, propõe uma síntese para tentar-se apreender as significações fundamentais e opostas: a descentralização pode remeter ou à distribuição real do poder, ou à distribuição das cargas estatais. No primeiro caso determinados âmbitos territoriais ampliam seu poder efetivo assumindo funções e recursos anteriormente em mãos do poder central. Essa condição percebe-se como necessária, mas insuficiente para possibilitar a participação dos cidadãos dirigida a configurar um autêntico tecido democrático.

No segundo caso translada-se ao nível local o fardo da crise económica e as consequências sociais da retração do gasto fiscal, produz-se uma atomização das procuras visando diminuir os conflitos explicitados a nível central. A autora afirma ainda que tal diferenciação tão nítida só aparece clara a nível de formulação. Muitas propostas, políticas e planos de desenvolvimento reproduzem a ambiguidade ou pelo menos deixam transparecer dúvidas enquanto as possibilidades de transformações. Em particular porque na maioria das análises aparece com clareza meridiana o peso das condições locais na orientação final dos processos descentralizadores.

A definição dos atores de mudança e suas estratégias só pode ser feito operativamente ao nível local, ainda que seja indispensáveis a geração de mecanismos de reprodução e expansão dos processos democratizadores que estimulem e veiculem sua consolidação a nível nacional.

*Licenciado em Administração Pública pela Fundação Getúlio Vargas, São Paulo (Brasil)   

Praia, 04.04.2018

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