A partidarização das associações de base está a afectar o normal desenvolvimento desse segmento da sociedade civil, pondo em risco a sua credibilidade aos olhos dos cabo-verdianos. Jacinto Santos, autor de um estudo sobre as Organizações da Sociedade Civil (OSC), encomendado pelo Ministério do Ambiente, Habitação e Ordenamento do Território (MAHOT), lança o alerta: “É salutar e desejável que a sociedade civil não se confunda com a sociedade política”.
A excessiva intervenção de políticos, entre os quais, deputados e dirigentes partidários, está a “desvirtuar” a essência das associações de desenvolvimento comunitário. Segundo Jacinto Santos, dada a dimensão que o tema já ganhou, o assunto vem sendo debatido, recorrentemente, no seio das OSC, em particular da Plataforma das ONG’s. Tal facto ficou patente, recentemente, com a polémica em torno da distribuição dos recursos do Fundo do Ambiente por parte do Governo mas também das câmaras municipais.
“Em 2009, a maioria das associação e ONG aprovou o código de ética associativo e, no âmbito desse código, há um conjunto de princípios, nomeadamente, a separação de funções de político e de líder associativo”, explica Santos.
Este faz saber, ainda a propósito, que há um outro dispositivo no código que recomenda o mesmo procedimento que se utiliza para os titulares de cargos públicos, quando candidatos a cargos electivos: “A suspensão do mandato nos órgãos associativos com vista a separar as associações da actividade política e partidária”.
Aquele consultor invoca o direito constitucional segundo o qual todo o cidadão tem o direito de fazer parte das associações e, no caso dos titulares de cargos políticos, ou mesmo de outros agentes políticos, impõe-se, mesmo assim, o problema do ponto vista ético e de ordem política. “É salutar, é desejável que a sociedade civil não se confunda com a sociedade política. O titular de cargo político deve prescindir de estar na liderança de uma entidade associativa, mas não é impedido de ser membro e fazer os seu trabalho cívico”, realça.
Santos chama também a atenção para a questão de separação de poderes, elemento caro aos regimes democráticos, como é o caso de Cabo Verde, daí questionar se um deputado pode ser líder de uma associação. “O deputado tem uma função eminentemente legislativa e de representação e quando está na execução também está sujeito ao controlo, quando a sua função é de fiscalização da governação acepção mais lacta do termo”, enfatiza.
Sem citar nomes, o consultor considera ainda que o deputado que é líder de uma associação fica numa situação de fragilidade política em relação aos seus pares. “O debate que se fez em torno do Fundo do Ambiente, no Parlamento, mostrou claramente que os deputados, independentemente das boas intenções que poderão ter estado no seu envolvimento numa dada associação, entraram numa situação de alta fragilidade política, inclusive com dificuldades imensas de tomar parte no debate que aconteceu”.
Para Santos, o debate parlamentar sobre a gestão do Fundo do Ambiente mostrou que “não é salutar e nem é aconselhável” que um titular de cargo político seja, simultaneamente, líder de uma associação. “Esse é um trabalho que os partidos têm que fazer em relação aos seus dirigentes e militantes, no sentido de encontrarem uma forma mais útil e que garanta os princípios da independência e autonomia da gestão das associações, conforme o que está estabelecido na Constituição da República. As entidades da sociedade civil são autónomas, não dependem de nenhuma autoridade administrativa e nenhuma autoridade política deve imiscuir-se no funcionamento das associações”, advoga.
Existência legal
Questionado se uma associação sem existência legal pode receber recursos públicos, o consultor responde que não é a publicação no Boletim Oficial (BO) que legaliza uma OSC, mas sim quando os seus fundadores se reúnem em acto constitutivo e produzem a “acta da constituição” da entidade. Outra coisa, deixa também a entender, é a “personalidade jurídica”, sublinhando que uma associação pode existir e não ter personalidade jurídica.
“A personalidade jurídica”, explica, “serve para segurança jurídica aos parceiros e aos membros da associação. Mas é necessário e é bom que todas as associações que se constituam, procedam à escritura e à obtenção da devida personalidade jurídica. O que prova a existência não é a publicação no BO, mas sim o acto constitutivo”.
Jacinto Santos defende, por isso, a criação de um regime jurídico de financiamento público das OSC, por não ser aceitável que uma associação de âmbito nacional esteja a receber menos dinheiro que uma outra, muito localizada e cuja acção se cinge a duas ruas de um bairro.
“Esse regime público deve vincular a administração central, os municípios, os institutos públicos e as empresas públicas, porque há um sistema de financiamento muito difuso. Todo o debate se centralizou sobre a utilização do Fundo do Ambiente, mas há muitas instituições que financiam as associações, com dinheiro, com instalações, com afectação de recursos, com formação e não há um levantamento exaustivo de toda a mecânica de financiamento das actividades do associativismo em Cabo Verde”, assevera.
Cidadania, ponto fraco das OSC
O consultor considera, outrossim, que, em Cabo Verde, as OSC’s são “filhas das necessidades” e que é hora de se evoluir no sentido de as mesmas associações passarem a trabalhar sob a condição de identidade, isto é, “um acto de tomada de consciência de cidadãos para melhor servirem a sua comunidade”, porque “a cidadania é um ponto fraco do associativismo cabo-verdiano”.
Quando não há esse elemento de afirmação, através da cidadania, Jacinto Santos adverte que as associações se tornam “muito vulneráveis e permeáveis” às tentações de “intervencionismo” político, estatal ou municipal.
Mais uma vez, a forma como os mais variados fundos são distribuídos deixam a nu o quadro de debilidade social e institucional ainda existente em Cabo Verde no domínio das Organizações da Sociedade Civil.
Transparência e prestação de contas
O controlo democrático das associações por parte dos seus membros, “tem de funcionar”, defende o consultor Jacinto Santos, que diz que a lei é clara nessa matéria.
“Os órgãos sociais têm a obrigação de prestar contas, através de balanços, contas de gerência e relatórios de actividades. É uma exigência que todos os associados devem fazer aos órgãos sociais das associações a que pertençam. Mas tem que haver um mecanismo de prestação pública das contas. Tem que haver um sistema unificado e centralizado de registo das associações que funcionam e operam em Cabo Verde. Deve-se incutir a cultura de prestação de contas e, sobretudo, despessoalizar a gestão das associações”.
Jacinto Santos volta a vincar a necessidade de uma maior transparência na gestão das associações, como salvaguarda, inclusive, da própria “governança associativa”, enquanto reflexo que é da sociedade onde as OSC estão inseridas.
“Temos um tecido associativo constituído, maioritariamente, pelas associações de base comunitária, que têm muitas debilidades e fragilidades em termos de organização, de sistema de gestão, de controlo, de prestação de contas e de democraticidade interna”, realça.
Essas fragilidades, no entender desse expert, têm a ver com a forma como surgiram as OSC, muitas delas, para acudir a demandas concretas, de natureza existencial, “e não de um processo de informação, de educação, de formação dos líderes associativos, da estruturação das associações em termos de orgânica, serviços e instrumentos provisionais de gestão”.
Intervenção de políticos “desvirtua” a essência das associações
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