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Saúde

Fernando Regateiro, coordenador do curso Medicina em Cabo Verde:“Os desafios de um curso de medicina são muitos”

Fernando de Jesus Regateiro (FJR), professor catedrático de Medicina da Universidade de Coimbra, autor do livro “Manual de Genética Médica” (IUC, 2003), é o coordenador do primeiro curso de Medicina em Cabo Verde, que arrancou em Outubro. Nesta entrevista ao A NAÇÃO refuta a ideia que este arquipélago não possa ter um curso de Medicina de qualidade. Pelo contrário, entende que os médicos a formar em Cabo Verde poderão ser “tão bons como os melhores de qualquer parte do mundo”, com a vantagem de terem uma “formação orientada para a natureza insular do país”, Cabo Verde.
Entrevistado por António Neves
O primeiro curso de Medicina em Cabo Verde foi aberto este ano, em Outubro. Como o processo tem decorrido até esta altura?
O curso começou, após cerca de ano e meio de preparação dos instrumentos que levaram à sua abertura, desde a composição do plano de estudo ao enquadramento da Medicina na realidade local. Este enquadramento foi feito a partir de entrevistas, reuniões, debates com múltiplas personalidades e instituições ligadas à saúde, a começar pela Ordem dos Médicos, Hospital Agostinho Neto, Direcção Nacional de Saúde, as estruturas internas da Uni-CV, enfim, uma série de instituições com quem falámos.
Fizemos uma abordagem muito holística para percebermos os enquadramentos do ensino da Medicina em Cabo Verde. Não quisemos, desde o primeiro momento, fazer uma simples transferência do programa da Universidade de Coimbra para a Uni-CV. Naturalmente que, de acordo com o perfil de formação, tivemos de usar um plano de estudos com conteúdos novos e matérias específicas. Portanto, o enquadramento foi-se consolidando, e depois de ter os documentos preparados, foram aprovados e o curso entrou em funcionamento com uma realização digna de ser enquadrado nas comemorações dos 40 anos da independência de Cabo Verde.
Fernando Regateiro3
Como se vai efectivar a sustentabilidade deste projecto?
A sustentabilidade deste projecto, obviamente, foi um dos aspectos mais debatidos. A sustentabilidades de um projecto destes assenta fundamentalmente na qualidade, que é a via em que se alinha todo o nível da sua prestação. Para isso, contribuem os adquiridos da própria Uni-CV que já tem formações na área da saúde e tem docente que, para algumas disciplinas, estão preparados para leccionar. Para além da Uni-CV, há a experiência da Universidade de Coimbra. Foi assinado um protocolo entre estas duas universidades que define o módulo de colaboração em que está estabelecido a assumpção de regências de todas as disciplinas do plano curricular obrigatório, por docentes da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (FMUC), a maioria deles Professores Catedráticos. Isso traduz o envolvimento dos professores da Universidade de Coimbra no ensino directo, na preparação das aulas, na cedência de materiais pedagógicos, na orientação dos assistentes locais, na avaliação, etc. Isso é uma forma muito eficaz de assegurar a passagem de experiência para a Uni-CV a um patamar igual que nós praticamos em Portugal. Por outro lado, temos uma experiência idêntica àquela que começamos em Cabo Verde, que tem decorrido nos Açores.
Nesta fase, qual é o modelo de implementação do curso?
O perfil do curso é 3+2+1, ou seja, três anos aqui, dois na Universidade de Coimbra e o sexto ano aqui. Daí, a necessidade que sentimos de, ao planear o curso, fazermos um paralelo entre o plano de estudos da Universidade de Coimbra e o da Uni-CV. Os alunos têm que ir daqui preparados para se inserirem nas turmas já existentes em Coimbra.
E neste caso, os estudantes que não têm condições financeiras de ir estudar os dois anos em Coimbra, como se resolve isso?
Vão ser atribuídas bolsas de estudo. Isso está a ser tratado a nível do Ministério do Ensino Superior de Cabo Verde. Mas não me vou pronunciar sobre este assunto porque é competência do Ministério e não me meto em aspectos de decisão política. Sei que está a ser ponderado e quando houver o resultado desta ponderação, será o Senhor Ministro do Ensino Superior a anuncia-la. Não pronuncio, mas naturalmente que isso foi um aspecto ventilado e uma preocupação que transitou para quem de direito tomar as devidas decisões.
Com tem sido o engajamento da Ordem dos Médicos de Cabo Verde, que, como se sabe, disse, através do seu bastonário, Júlio Andrade, que “não há condições para ter o curso de Medicina no país”?
A Ordem dos Médicos, como lhe competia, levantou questões no princípio. Não havia condições quando levantou essas questões, mas depois de dialogar connosco, de perceber o projecto, de entender a seriedade que estávamos a abordar as questões, de ver como se iria desenvolver a colaboração entre a Universidade de Coimbra e a Uni-CV, terminou dizendo: “Desta forma concordamos e estamos solidários com a decisão de ensinar Medicina em Cabo Verde”. Aliás, uma das apresentações foi feita na Ordem dos Médicos e nas nossas reuniões tem estado o Senhor bastonário da Ordem dos Médicos. Neste momento, não está a levantar questões sobre a viabilidade e a qualidade da formação.
Fernando Regateiro4
Quais são os desafios para um país como Cabo Verde, que vai ter um curso de Medicina pela primeira vez?
O que pretende em primeiro lugar é dotar Cabo Verde de autonomia de formação de médicos, e que sejam médicos tão bons como os melhores de qualquer parte do mundo, mas que tenham ainda uma parte da sua formação orientada para a natureza insular do país. A formação de médicos para actuarem em ambiente insular tem que ter exigências adicionais em relação aos que trabalham em continente. Numa ilha, quantas vezes não há possibilidades de evacuar, ou a evacuação é demorada, portanto, é preciso ter treino, aquisições de conhecimentos que permitam elevada capacidade de resolução dos problemas médicos.
A orientação desse curso vai nesse sentido, ou seja, os alunos vão ser treinados para responderam à essas exigências de isolamento. A qualificação da qualidade da saúde vai-se refletir depois numa melhor resposta para combatermos as evacuações e isso vai ter reflexos a nível económico, das contas do próprio estado cabo-verdiano. O Estado de Cabo Verde está a investir não só numa autonomia formativa, mas também, de uma forma que mais tarde vai ter um retorno significativo para a população. Terá os seus próprios médicos, formados para responder as necessidades do próprio país. Vai ter melhor qualidade de assistência e vai melhorar a produtividade do país, vai reduzir o tempo de ausência por doença e evitar gastos na evacuação de doentes para o estrangeiro.
A existência de um curso de Medicina vai estimular a fileira económica da saúde, que se pode refletir mais tarde ou mais cedo, em mais equipamentos médicos e medicamentos produzidos em Cabo Verde.
Com o progresso do curso, não haverá necessidade de se ter um hospital universitário em Cabo Verde?
Está previsto. Mas, mais uma vez, é uma questão que prenuncio com alguma reserva porque sou um colaborador estrangeiro e isso é um assunto de foro nacional. Posso dizer que está a ser ponderado de uma forma muito séria e tem havido declarações neste sentido da parte de autorridades políticas e responsáveis pela direcção do Hospital Agostinho Neto. Isso tem sido anunciado publicamente como um dos objectivos.
Às vezes, pensamos que o ensino médico se esgota na formação de alunos e de futuros médicos, mas não, é muito mais do que isso. Os efeitos da instalação de um curso de Medicina obriga a fazer um levantamento de recursos e disponibilidade humanas e materiais muito extenso. E o curso não consegue arrancar onde não houver essa oferta.
Fernando Regateiro5
Daqui seis anos, como avaliará um estudante formado em Medicina em Cabo Verde?
Os estudantes de Medicina da Uni-CV são estudantes muito bem preparados para seguirem os estudos nesta área. Alcançaram os patamares mais elevados do ranking de acesso ao curso, de entre os cerca de 120 estudantes que fizeram provas específicas de acesso. Concorreram sabendo que havia apenas 25 vagas e que 20 eram reservadas para cabo-verdianos (as restantes destinavam-se a estudantes da CPLP, revertendo as que não forem preenchidas para candidatos cabo-verdianos). E são alunos esclarecidos. Escolheram candidatar-se ao curso porque acreditaram na consistência da oferta e na qualidade lectiva que será praticada, tendo certamente em conta a experiência lectiva da Uni-CV e dos seus docentes, a estruturação do Curso seguindo o modelo usado na FMUC e a forte ligação dos seus docentes ao processo lectivo, bem como a prevista mobilidade de dois anos para estudarem em Coimbra.
Assim, só posso esperar que trabalhem muito, com enfoque particular na construção de um cabedal de conhecimento que resuma o melhor do saber médico, no treino das suas aptidões e na aquisição de habilidades profissionais, para que, no final do Curso, saiam preparados para se fazerem profissionais de excelência, em Cabo Verde ou em qualquer parte do Mundo.
O arranque do ensino médico em Cabo Verde foi um processo difícil?
Certamente que sim, mas o que o tornaria realmente difícil seria a falta de ousadia e de vontades! E estas nunca faltaram da parte da Uni-CV, do poder político e da generalidade das instituições e personalidades consultadas. Mas, claro, houve que percorrer um caminho complexo e salpicado de sensibilidades diversas e de dúvidas que foi necessário esclarecer. E houve que recolher opiniões, reflexões e contributos diversos para construir uma percepção segura da realidade local para, de forma adequada, fazer o enquadramento geral do ensino da Medicina em Cabo Verde, traçar o perfil do médico a formar e estabelecer o figurino e o modo de funcionamento do Curso.
A ideia surgiu em 2009 numa visita que realizei a Cabo Verde como presidente dos hospitais da Universidade de Coimbra, a convite do Presidente da Assembleia Nacional, Dr. Aristides Lima. Num encontro com o então Reitor da Uni-CV, Prof. Correia e Silva (hoje Ministro do Ensino Superior, Ciência e Inovação) este expressou o desejo de ter ensino da Medicina na UniCV. Seguro de que a FMUC seria uma excelente parceira para o projecto, saí da reunião com o compromisso de auscultar o Reitor da Universidade de Coimbra e a FMUC sobre esta possibilidade. O “crer para ver” inicial, a determinação e a persistência fizeram toda a diferença durante o processo de instalação do Curso de Medicina. Agora, o trabalho a desenvolver continua a ser muito, mas já se pode “ver para crer”!
Ser coordenador-geral do primeiro curso de Medicina em Cabo Verde é um desafio?
Sim, é um desafio por me confrontar com situações novas que requerem reflexão, engenho mental e relacional e um intenso trabalho em equipa. Mas é também um gosto por me permitir contribuir para a concretização de um desígnio do povo caboverdiano, a quem nos ligam sólidos laços de amizade e de respeito mútuo, e para a projecção do prestígio da Universidade de Coimbra e da minha Faculdade. Às dimensões do desafio e do gosto juntaria a emoção que senti quando, na sessão solene de abertura do Curso, o Magnífico Reitor da Universidade de Coimbra me distinguiu, no seu discurso, com o atributo de “pai” do projecto, por parte da minha Universidade.

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