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Opinião

O naufrágio do sacrifício

Jorge Pires

Juan Cruz, escreveu no “El País” (Espanha), que  o menino Aylan “soube antes de tempo que o mundo não sabe salvar os meninos, porque também desconhece como salvar-se”, terminando com uma frase lapidar “Ali jaz, naquela praia, o mundo inteiro”

Escrevo com o coração apertado entre as mãos, não sabendo se de raiva, de comoção ou de outro sentimento qualquer, tristemente sinto-me, perdido por entre as dúvidas que pairam sobre mim, chegam-me de todo o lado, notícias escritas, foto-reportagens que congelam a alma e o corpo, enquanto neste meu recanto tudo permanece mudo, tudo quieto, nada se ouve, nem de bom nem de mau, transpira-se o quê?

Nada sei, apenas que o que me vai chegando faz-me roçar à condição de indigente, pois, se nem aquele de Atenas nada soube e muito menos poderia cogitar de que a pequena Kos viria constituir-se na ténue fronteira que confunde a esperança com o desespero e a morte.

As imagens que rodam o mundo já nada assustam, por já não se constituírem em surpresa, começam e terminam com as notícias das oito, das nove, e, por aí andando… chegam as da meia noite.

Todos os dias, todas as horas, assim sucessivamente, e eu quedo perante o ecrã do meu LG ou das páginas dos tablóides electrónicos do meu laptop, pedindo reforma, já nem me preocupo com a minha condição de macho crioulo, já nem tenho a preocupação de disfarçar as lágrimas que buscam os sulcos emergentes da minha cara, em jeito de linhas de água em tom de dó, de dor, de impotência, por me faltar o talento messiânico de lhes poder estender a mão, com a simples batida do bastão, e o oceano inteiro abrir-se-ia em jeito de caminho, soletrando  esperança de ter a esperança de ter vida para se poder chegar com vida.

Abdullah regressou sozinho à casa de onde saíra, com Rihan, sua mulher, e os filhos Galip e Aylan, por as mãos dos seus filhos terem escapado das suas e de não ter conseguido que a mulher e os filhos lhe ouvissem a voz, como se a voz tivesse o deslumbramento da salvação no meio do pânico de um atormentado naufrágio, por entre os mares vergonhosamente nunca navegados, que não se abriram e nem se viraram caminho por a terra não lhes ser prometida.

Abdullah regressa, sozinho, apenas com uma certeza, não lhe importando de onde há-de lhe vir a força, apenas que Kobane há-de ser o eterno repouso dos seus.

Ahmed Abdalla viajou quase pela África inteira, num  “land cruiser “ e mais 32 pessoas enlatadas, para ter apenas o direito à Europa e segurança, sobrevivendo a tantas guerras, a tantos mares que se vão virando em cemitérios flutuantes, não lhes falecendo nem a mulher nem os filhos “Não vamos à procura de uma vida melhor. Vamos à procura de vida. Atrás de nós só há morte…”, vem clamando, apenas pela igualdade de oportunidades, pelo sagrado direito à vida.

E assim, busco por Rojan, Mohammed, Salin, Qaiser, Mehmood, Ranet, Muhamad, Aslam, Leila, Babar, Rezo, Ahmed, Bashir, Moaed, tantos nomes, tantos rostos, tantas almas, tantos corpos vagueando por tantos mares em que a distância entre a vida e a morte, retrata-se nas faces em tom de desespero daqueles que alcançam o pódio das costas, do areal das praias e dos convéns das guardas costeiras.

Perdeu-se o tino e a vergonha, descodifica-se em contraposição com o desespero congeénito, não queremos dinheiro, nao queremos dinheiro, assim vincava o rosto que aparecia no meu ecrã da TV, e que tinha acabado de descer de uma guarda-costeira, paz, paz, paz, ecoavam as suas palavras nos meus ouvidos. Afinal , o dinheiro não é assim tanto assim.

Assim se vai compondo a minha tristeza, enquanto busco nas minhas estantes, o livro “O mundo sem regras”, de Amin Maluf, encontro-o por entre outros, que falam de qualquer coisa, e não resisto em transcrever o primeiro e segundo parágrafos do príologo, que não canso de ler e de me impressionar pela sua actualidade perene.

Ei-los:

“ Entramos no novo século sem bússola.

Desde os meses iniciais, ocorrem eventos inquietantes que levam a pensar que o mundo conhece o desregramento  considerável e em vários domínios ao mesmo tempo – desregramento intelectual, desregramento financeiro, desregramento climático, desregramento geopolítico, desregramento ético.   

É certo que se assiste, também, de vez em quando, a subversões saudáveis e inesperadas; acredita-se entao que os homens, ao verem-se num impasse, encontrarão forçosamente como que por milagre os meios para sair dele. Mas em breve surgem outras turbulências reveladoras de impulsos humanos totalmente diferentes, mais obscuras, mais familiares, e recomeça-se a questionar se a nossa espécie não terá atingido, de certo modo, o seu limiar de incompetência moral, se ela ainda segue em frente, se não terá iniciado um movimento de regressão que ameaça pôr em causa o que gerações sucessivas se dedicaram a construir (…)”

Nada mais assertivo, e aí, constato, que, afinal, Galip tinha de morrer, Aylan tinha de morrer, Rihan tinha de morrer, para que o mundo se virasse do avesso, para que o desespero tivesse rosto, era o preço que a humanidade exigia, eram as lágrimas que Abdullah tinha de derramar pelas janelas do mundo para que a humanidade se pusesse em sentido e a vergonha ressuscitasse!

Para que o Sr. David Cameron deixasse de os ter considerado uma praga, e permitir receber mais refugiados no território britânico, que as fronteiras da esperança, em vez de muros metalizados por arames farpados, abrissem em grandes alamedas.   

Sim, a praia de Bodrum foi o altar do sacrifício escolhido para que Aylan estendesse o seu corpo franzino de menino, sobre o branco do areal, por entre as espumas das ondas que dormitam na praia, para que o mundo presenciasse do sofá o triste espectáculo em que o desespero vence o medo, em que o sacrifício se faz necessário, tinha apenas três anos de idade, seguramente nem ler sabia, seguramente contava até dez como os meninos da sua idade sabem fazer, seguramente, naquele instante do naufrágio ter-lhe-ia fugido dos lábios o sorriso ingénuo que carecteriza o rosto da infância, seguramente a sua mãozinha desencontrara-se com as enormes do pai, seguramente, o choro, o medo, teriam sido tantas vezes abafadas pela histeria das ondas, seguramente buscava nos olhos do pai, da mãe e do irmão, saber o que fazia ali naquela hora, naquele momento, naquele bote frágil de borracha e naquele mar raivoso, transformado num enorme cemitério flutuante, ninguém, seguramente, lhe perguntara se lá queria ter estado.

Afinal, tal como a metáfora da rosa, o caminho da esperança também faz-se espinhoso e vamos assistindo, acomodados no sofá, a nova temporada dos refugiados.

Até quando?         

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