Rui Araújo
Como é sabido, entre nós o Supremo Tribunal de Justiça (STJ – que é topo na hierarquia dos tribunais comuns) – , acumula, pela Constituição da República (CR), funções de Tribunal Constitucional (TC), enquanto este não se instalar autonomamente.
Assim, além do mais, o STJ, como TC, julga o contencioso eleitoral, os recursos ligados aos direitos fundamentais (habeas corpus, habeas data, recurso de amparo…), fiscaliza a constitucionalidade das leis no sentido de as normas legais inconstitucionais serem banidas da ordem jurídica, etc.
Até recentemente os partidos políticos não se tinham posto de acordo sobre nomes para o TC e havia acusações recíprocas de falta de vontade política. Dizia a oposição que sem um TC autónomo não se cumpre a Constituição e fica diminuída a democracia.
Mas a verdade é que a CR não afirma que o TC deva ser instalado de imediato e não existe uma tal essencialidade democrática: muitos países, como os EUA, não têm tribunal constitucional, estando neles toda a Justiça entregue aos tribunais comuns e nem por isso a Constituição ou a Democracia não se cumprem.
O constitucionalista Prof. Doutor Wladimir Brito (curiosidade: não conheço outro cabo-verdiano doutorado em Direito), tido como “Pai” da Constituição, sempre considerou justificável que a Justiça Constitucional fosse realizada pelo STJ. E são muitos os juristas e políticos nacionais a defender essa ideia.
Há quem diga não ser conveniente que o STJ continue a decidir em assuntos típicos da justiça constitucional dado que o pendor político desses assuntos não se adequa à isenção que deve presidir a acção dos juízes dos tribunais comuns.
É um argumento pobre, que parte da ideia errada de que os pronunciamentos em matéria constitucional não pertencem ao Direito e à Justiça, antes são de foro estritamente político, quiçá partidário. Trata-se de um equívoco também possível a nível da justiça comum.
A Justiça é feita por homens e não por “robots” (ainda assim é) e os homens têm e têm direito de ter as suas convicções políticas, que se insinuam indelevelmente nos seus juízos mais isentos. Ponto é, para um juiz, saber evitar o subjectivismo, a parcialidade, o favor político, a injustiça no caso concreto, usando habilmente a fácil confusão entre direito e ideologia, ou a amplidão dos conceitos constitucionais.
Numa Democracia jovem como a nossa, marcada por um extremado bipartidarismo, este é um perigo, pois nela se formaram e vivem os nossos juízes e a libertação não é fácil. Haverá ainda entre os magistrados um ou outro “turco”, retrancado na irresponsabilidade dos juízes, praticamente ilimitada.
Porém, embora o nosso sistema judicial seja moroso, ineficiente e ainda cheio de graves defeitos, a verdade é que vai evoluindo e amadurecendo e há razões de esperança em que tais magistrados, que já hoje se contrastam nele como peixes amarelos num mar verde, acabem por ser peixes fora de água.
Não se confunda tudo isso, entretanto, com o fenómeno da politização do jurídico, ligado a um princípio constitucional da tutela jurisdicional efectiva interpretado em tanto excesso que conduz a violações do princípio de separação de poderes, com decisões dos tribunais invadindo a esfera do executivo.
Isso é o reverso da excessiva judicialização do político, ancorada em leis cuja filosofia sujeita toda a atividade governativa a um crivo apertado de formalidades jurídicas, não lhe deixando margem mínima de mérito, para conformação do real.
Acredita-se que um mau resultado, desastroso mesmo para o interesse público, conseguido num quadro de respeito por formalidades legais, é mais louvável que um excelente e justo resultado obtido com alguma irregularidade formal.
Claro que uma consequência primeira é os tribunais se entupirem de toda a casta de processos, muitos dos quais não estão preparados para enfrentar senão por decisões de improviso; e o Estado, sem uma administração minimamente autónoma, esvaziado de autoridade e sem nenhum serviço de contencioso, vai, através de leis “democráticas” e decisões voluntaristas sem estudo de impacto, prometendo a todos o que nem a poucos pode dar e, por força de decisões judiciais, dando a poucos mais do que prometeu a todos.
Quando hoje em dia certos juízes “agridem”, com penhoras, os ativos do Tesouro depositados no Banco de Cabo Verde, destinados a fins de utilidade pública como pagamento de salários ou pagamento de dívida externa, ou socorro a vítimas de calamidades naturais, nenhum deles faz a mínima ideia, ao decidir penhorar 50 ou 100 mil contos no BCV, se outros não estarão a fazer o mesmo na mesma altura, perigando um Estado financeiramente frágil.
Recentemente uma lei veio clarificar as coisas, evitando essa situação. O Presidente da República deu o seu veto político contra essa lei, por entender que ela violava um alegado princípio constitucional de igualdade entre o Estado e os particulares (cidadãos, empresas comerciais…) e depois pediu fiscalização de constitucionalidade ao TC.
Felizmente esse recurso mereceu um redondo indeferimento, por unanimidade dos sete juízes do STJ/TC, num acórdão memorável!
Milita-se, em Cabo Verde, entre o culto de Constituição, o fanatismo que a desacredita e uma euforia ideológica individualista que não conhece como limite nem a liberdade do outro nem o interesse da comunidade.
Antes, quando um cidadão matava outro ele praticava um acto hediondo e lá no fundo luzia o bíblico “Não Matarás”. Hoje será de “cultura democrática” dizer-se que que ele violou a Constituição.
Já por duas vezes ouvi afirmação do estilo, vinda de funcionários públicos: “Não quero dar cumprimento a esta lei porque a meu ver ela é inconstitucional pois devia ser aprovada pelo Parlamento e não pelo Governo”.
Seria um caos se na administração pública cada um pudesse agir desse modo, em nome da Constituição.
Apesar de todos os males que se apontam à nossa Justiça, ela têm evoluído em todos os planos, nesse contexto difícil, ultrapassando formalidades contrárias à justiça material e realizando aos poucos o princípio da justiça administrativa efectiva, talvez mesmo colocando-se numa linha da frente perigosa para a segurança jurídica.
E quanto ao TC, cujos membros (não juízes) finalmente foram designados?
Confesso que quando o nome do Dr. Benfeito Mosso Ramos foi rejeitado por razões estritamente partidárias, animei-me pensando que ninguém mais aceitaria o cargo. De facto, se quem foi juiz Presidente do STJ durante dez anos, depois de ser magistrado de instância sempre de boas referências, não podia ser juiz do TC, quem mais o poderia ser entre nós, senão por um critério consensual só partidário?!
O Dr. Benfeito Ramos mostrou de forma clara, num recente artigo no “A Nação”, as dificuldades jurídicas (inconstitucionalidades) em que se enreda a criação do TC, com juízes suplentes não previstos na CR e com a possibilidade de, contra esta, se nomear como suplentes juízes em exercício de funções sem autorização do Conselho Superior da Magistratura Judicial.
Parecem-me cristalinas essas contrariedades à CR, mas pessoa autorizada já as afirmou: o Doutor Wladimir Brito. Pergunta-se agora: quem julgaria tais inconstitucionalidades? O actual STJ, chamado como quem chama uma Velha Guarda? – Claro que não: o assunto será ultrapassado por um grande e consensual Silêncio Partidário, que, na prática, é mais forte que a própria CR. Só que nem por isso deixaremos de ter, à partida, um TC (logo um TC!) marcado pela inconstitucionalidade.
Uma situação desconfortável actual resulta do facto de serem só 3 os juízes do TC, dois dos quais com pretensões a Presidente, pois nenhum poderá obter dois votos favoráveis se não for contado o seu próprio voto em si mesmo.
Trata-se – ingénuos não somos! – de mais um episódio de teor partidário ligado à instalação do TC e é tudo isso que leva às confusões acima referidas quanto à Justiça Constitucional. Esta é Direito e Justiça em toda a sua nobreza!
O Doutor Wladimir Brito bem que tinha defendido que, a criar-se um TC autónomo, este tivesse no mínimo 6 juízes. Mas para não perder a carroça do consenso partidário alcançado, parece que o importante é avançar a qualquer preço.
Enfim, seria muito melhor (e muitíssimo menos dispendioso) acrescentar mais 3 juízes no STJ, reforçando desse modo a Justiça comum, que bem precisa, e radicando aí a Justiça Constitucional.
Teríamos então 10 juízes num STJ/TC, apetrechados da toda a experiência acumulada na luta para a independência e isenção dos tribunais, para o melhoramento técnico e para fazer vingar os princípios constitucionais, mesmo dentro das limitações e dos defeitos referidos.
Melhor seria assim do que jogar fora – como agora se faz – esse capital cultural e criar um TC autónomo minimalista, de 3 Juízes “desgarrados”, só para mostrar que temos mais uma instituição democrática e constitucional. O Estado não tem meios para suportar custos de ostentação de democracia!
E termino felicitando os três ilustres e doutos eleitos, a quem desejo bom desempenho.