Filinto Elísio
Escrita estelar
Penso que, desta feita, deva escrever sobre o volver das estrelas. Do que antes era negra, como um piercing na bandeira, sendo depois uma profusão das brancas, cada uma pedaço deste cataclismo (de que continente) como no-lo vaticinou o poeta Jorge Barbosa. O volver das estrelas que não param, senão no firmamento, decerto no pensamento. E a escrita, muito aquém do alumbramento, do fogo de artifício do encantamento, belas letras e tutti quanti, é sentimento. Gosto da imagem de Umberto Eco sobre a escrita, algo quase como um prolongamento da mão e, nesse sentido, quase biológica. Para Eco, não poderemos renunciar à escrita. Avant la letre, a escrita não passa de pensamento. E esta mão a resguardá-la…
Por uma nova catedral
Não me venham entoar hinos e louvações, nem recitar que tendes um espingarda de ferro, agora que o sonho acabou e é este acordar que a ninguém poupa. Não há paciência para o carnaval da vitória, nem para a procissão dos afoitos, aqui todos, aos trancos e barrancos e a dar respiração assistida ao jubileu da nossa catedral. Meio judiado pela réstia do dia grande, não faço verso, nem ouso prosa pelas parábolas anunciadas. Aconteçam alvíssaras e outros fogueteiros nas ilhas. Trovoadas. Raios e coriscos. O corporativismo político. E o estrondo no mundo. Entre a eternidade e a impertinência do Sol, tão senhoril quão paternalista, a iluminar as horas, haverá quem lhe pressinta, com todas as dores, cada pulsar que aí vai e consintam que este solilóquio atravesse seu espelho no meio do caminho. Entrementes, sem a síndrome de Timon de Atenas que (cretino e poderoso) bradava, segundo Shakespeare, “Morro, Sol, deixa de brilhar!”. Dos estilhaços de vidro deixados atrás, quem sabe faça os vitrais de uma nova catedral.
Moldura penal
E, havendo tanta fantasia de destruição, essa discussão em torno do aumento da moldura penal entrou na agenda pública e a lei que o consagra aprovada nos últimos dias no Parlamento. Um imensurável ruim do templo, diga-se. Já só nos faltará o rebaixamento da idade penal. Ou, in extremis, a famigerada pena capital. Todavia, não será pelo agravamento das penas e/ou pelo aumento da população carcerária que resolveremos o sério problema (social, económico, cívico e educativo, sobretudo) da enorme prevalência da criminalidade violenta. O buraco, convenhamos, é mais em baixo e a via, sem desvio de rota, não será por aí. Vamos, pois, combater a pobreza, a desigualdade e o ostracismo. Vamos, pois, promover a civilidade, a distribuição social do rendimento e a produtividade. Serenidade, para além da superficialidade política e da distorção mediática. Quo vadis? Agora, ocorre-me de Ítalo Calvino estas palavras sobre Clarice, a cidade gloriosa, para a vossa reflexão: “Talvez Clarice haja sempre sido apenas uma barafunda de bugigangas partidas, mal combinadas e for de uso”. Venham novos suspiros a cada volver das estrelas.
Estrelas
Os cidadãos precisam de muito mais. Como afirma a letra da música “Comida” cantada pela banda Titãs, a gente quer algo mais. Nesta toada: “A gente não quer só comida/ A gente quer comida, diversão e arte/ A gente não quer só comida,/ A gente quer saída para qualquer parte,/ A gente não quer só comida,/ A gente quer bebida, diversão, balé / A gente não quer só comida,/ A gente quer a vida como a vida quer”. Se calhar, de mais volver das estrelas.