Poucas horas antes de ter tido o ataque de alergia que quase a levou à morte, Inna Luna ainda pôde opinar que una murer tiene ele diretcho de ser ciumenta, pêro tiene tambien ele dever de ser rusta. Ela disse isso quando lhe contei que me chamaste de velho baboso ao leres, na carta que ingenuamente te escrevi, os elogios e palavras bonitas que lhe fui dirigindo ao longo dos dias que permanecemos às ordens da Casa d’África na ilha de Tenerife. Tinham sido dias divertidos, com muitas estórias e risadas e comezainas e copos, de modo que ela foi peremptória a teu respeito: diz à tua amiga que chamar-te velho baboso foi um insulto gratuito. Ela podia ter-te chamado de velho meloso, ou velho manhoso, pêro baboso non.
Preferi, no entanto, não reproduzir-te as palavras da Inna Luna. E fiz bem, porque se calhar ambas têm razão, ela ao exortar-te a ser justa, tu ao manifestar dessa forma imprópria os teus ciúmes invejosos.
E também não nego ter ficado contente ao ouvir-te dizer de forma tão clara que gostarias que um único dia eu te elogiasse a ti como fiz a ela durante oito. E também gostarias que eu manifestasse ter algum ciúme do teu Betinho! E para além de um certo ciúme, também lhe tivesse alguma inveja! E inclusivé quisesse imitá-lo nessa adoração que lhe faz ficar literalmente pasmado aos teus pés de cada vez que vocês se encontram. Compreendo a tua frustração, mas infelizmente tal não é possível, é que ele tem a sorte de estar contigo apenas uma ou duas vezes por ano e por breves dias, enquanto que eu…
Mas não sendo embora ciúmes, não penses que não registei com atenção a tua estouvada vingança quando te disse que a Inna Luna me chamou de Cariño. Logo retrucaste alegre, Ah, também o Betinho muitas vezes me trata por Cariño, adoro ouvir a sua forte voz de homem macho a dizer “Cariño”, sai-lhe da garganta em forma de um som melodioso e leve como se me fizesse uma carícia na alma que me faz estremecer dos pés à cabeça na fome de uma urgente carícia nos lábios, depois por todo o corpo…
Talvez devesse ser uma boa hora para manifestar um pouco de ciúmes por essas sonhadas carícias na alma, mas a minha curiosidade é mais forte: Nunca me tinhas dito que o Betinho te namora em espanhol! Nem que às vezes também te chama de “Cariño, disse-te sem esconder o meu desapontamento…
É verdade que ela me conta todos os seus momentos de comunhão com um prazer safado, sobretudo quando deixa escapar como que por acaso que em cada ano o Betinho escolhe um pedaço do seu corpo para adorar. Sei que o seu objetivo é simplesmente tentar desencadear em mim uma onda de irreprimível ciúme, mas a minha natural e fortíssima tendência para a bisbilhotice não me deixa espaço para pensar nisso. Por exemplo, no imediato não tinha entendido o que queria dizer com essa de “escolher uma parte do meu corpo para adorar”, porque eu vejo o corpo de uma mulher como uma unidade insuscetível de ser esquartejada para qualquer efeito, nomeadamente o efeito de uma eventual adoração. Mas quando delicadamente tentei fazer-te ver isso, limitaste-te a dizer amuada que eu simplesmente estava a ser bruto sem necessidade, na realidade ele não esquarteja coisa alguma, explicaste, apenas seciona mentalmente uma parte ou uma peça do meu corpo que delimita fisicamente e elege como objeto de veneração daquele ano, como se quisesse dizer, 2005 – ano do polegar direito; 2006 – ano do mindinho esquerdo!, coisas assim!
Por exemplo, há três anos atrás ele tinha eleito o seu cotovelo. Tanto eu como ela achamos de duvidoso gosto, realmente o cotovelo está longe de ser uma peça bonita e acariciável, concluímos em comum. Mas ele lá tinha as suas razões para escolher o cotovelo que, conforme me contou com algum humor à mistura, ele andou olhando durante horas, revirando e analisando de todos os ângulos e triângulos, levantando ou torcendo o braço de forma impiedosa, tudo para melhor decifrar a geografia que se esconde nas suas dobras e rugas, uma espécie de mapa onde ele dizia encontrar sinais ocultos de mistérios da alma humana ainda por decifrar e que tinha devotamente estudado e aprendido a ler durante as suas peregrinações pela Ásia profunda e devota. Ciência que agora lhe permitia adivinhar toda a tua vida passada e presente, incluindo todos os homens com quem estiveste, incluindo até aquele gabiru cubano de quem nunca me tinhas falado e só depois contaste que o rapaz era um grande ator de teatro, porém, muito anarca, basta dizer que se tinham conhecido e apaixonado e ele a tinha levado para um hotelzinho onde passaram três dias e três noites sem dar notícias, o chefe da companhia como louco buscando o fulano pela cidade, eles fechados no quartinho desesperadamente conhecendo-se e despedindo-se porque na verdade nunca mais se encontraram nem souberam um do outro. Por isso não te contei sobre o Fidelito, disseste, esqueci-me dele completamente. Chamava-lhe assim, porque realmente nunca soube o nome dele. E eu, como estou no meio de toda essa ciência do teu Betinho, quis saber. Bem, ele é mais “o nosso Betinho”, meu e teu, do que apenas meu, mas na realidade nunca falou de ti, respondeste, aliás nunca falou de ninguém em concreto, é um homem discreto, diz que é um conhecimento que só lhe interessa a ele, não tem que o partilhar, tanto mais que está longe de me exigir fidelidade.
É um charlatão, esse teu Betinho, resumi. Porque dizes isso, questionaste-me. Porque só um charlatão aceita saber sem protestar que a mulher que ama durma com outro homem. Mas ele não sabe que dormimos, tu e eu, ele não sabe da tua existência quanto mais o resto, portanto não é por isso que é charlatão. Bem, então é porquê, pergunto. Eu não disse que ele é charlatão. Admitiste sem querer, ao dizer que não é por isso que ele é charlatão, então quero saber porque o achas charlatão, tu que o conheces tão bem. Deixa-me em paz, acabas por dizer exasperada.
Está bem, concedo, deixo-te em paz com o teu Betinho que achas charlatão mas dizes que não é, e mais o teu Fidelito de que nunca me falaste, não tem importância de maior, o que é importante é estarmos de acordo sobre esse ponto. Voltemos antes ao ano que foi o ano do joelho. De acordo com o que dizes, este ano corrente foi o ano da palma da mão, o ano da leitura da sorte como aprendeu com os ciganos, enquanto que o ano passado foi o ano do joelho, pelo que constato o rapaz tem a mania das superfícies rugosas… esquerdo ou direito? Esquerdo, sempre esquerdo! Alguma reminiscência do esquerdismo pequeno burguês? Não, apenas o facto de ser o lado do coração, ele diz que mais rico e mais fértil em material de análise. Foi ele que disse isso? Parece-me desnecessário se realmente não te exige fidelidade. Bem, quando diz que não me exige fidelidade está a falar de uma maneira abstrata, tanto mais que não tem nenhuma razão para duvidar de mim, nunca lhe dei motivos para desconfiar de seja o que for, mas conta-me como foi que a tal Inna te chamou “Cariño”. É importante para ti saber, tens ciúmes da Inna Luna?
Ficas um bocado calada diante das minhas perguntas, mas acabas por responder, Sim, creio que sim, que tenho ciúmes da tua espanhola. Ela não é espanhola, corrijo-te, ela diz-se canarina, todos eles fazem questão de afirmar que nada têm a ver com aquela gente da Península. Sim, sim, mas diz logo como ela te chamou Cariño.
Fico hesitante em contar, porque não tinha sido realmente assim, isto é, ela não me tinha diretamente chamado “Cariño”, ela tinha acabado por usar a palavra numa frase que fixei porque a achei muito bonita, “Cariño, que pretendes di mim?”, mas em verdade e infelizmente não diretamente dirigida a mim, antes ao namorado presente. Mas mesmo assim acabei por apanhar a minha parte da frase, ainda que um pequeno pedacinho, pode-se dizer, isso porque o fulano insistia em encher-lhe o copo de vinho, duas, três, quatro vezes, era vinho branco e estava frio e estava um calor de matar não obstante o ar condicionado, e ela via o copo cheio e esvaziava-o e ele voltava a encher, e então ela terá dado conta de que o rapaz eventualmente a queria embebedar para mais depressa a mandar para a cama e ficar livre para alguma eventual pouca vergonha inconfessável, e então ela teve essa frase esplendorosa, Carinõ, que pretendes de mim? E como parece que ele nada pretendia porque limitou-se a sorrir sem palavras, eu acabei por tomar conta da situação elogiando essa frase de belo efeito, sobretudo quando dito em espanhol, não obstante a Inma ter a voz um pouco roufenha e nada apropriada à leitura poética, coisa que ela infelizmente adora fazer, por exemplo, ainda nessa manhã, durante uma das sessões do seminário que ali nos juntava, ela ofereceu-se sem sequer ser convidada, e denodada e irreverentemente atirou-se ao Lorca e à sua canção do gitano. Inna concentrou um ar empoado e feroz, mas a isso se resumiu a sua prestação porque enganou-se em muitas palavras, outras saltou-as ou comeu-lhes as sílabas e, o mais grave, não sabe que fazer com as mãos que ficam por ali desocupadas e saltitantes. Mas mesmo assim demos-lhe muitas palmas, muitos de nós provavelmente por ela ter saltado algumas estrofes do poema, e também lhe demos beijinhos. E como prenda pela “deliciosa manhã”, pedi na receção do hotel que me encomendasse o que julguei que seria “um ramo de flores” para lhe oferecer. Porém, tive que falar em castelhano e seguramente que cometi algum erro na indicação das quantidades, e só quando vi dois braçais a entrar no hotel em passadas largas transportando grandes molhes de flores como se fossem feixes de palha, dei pela asneira. E antes que os da receção me vissem, escondi-me atrás de uma coluna donde via os marçanos depositando as flores no chão junto ao balcão à espera que o dono aparecesse para as reivindicar. Eram lindas, umas brancas, outras vermelhas, negras, verdes, abertas, em botão, mas naquele momento a minha única preocupação foi a fortuna que já antevia a sair do meu cartão de crédito para a conta do hotel. De todo o modo não podia deixar todo aquele mato a atravancar a receção, de modo que afastei-me mais um pouco e telefonei para lá a pedir que levassem para o quarto 404 as flores que tinha encomendado logo que fossem entregues. Acabam de ser entregues, disseram, uma grande quantidade. Arrumem tudo no quarto 404. Com estética: sobre a cama, sobre os móveis, no chão…
Mas eu andava ainda às voltas com o elogio da frase, quando o namorado disse, Volto já!, e desapareceu. De modo que ficámos Inna e eu sozinhos, e continuei a elogiar a bela frase, e de tal modo o fiz que ela acabou finalmente por tocar a sua delicada mão no meu rosto numa carícia suave e disse sorrindo, És um cariño, porque não escreves todas essas coisas bonitas que me dizes?
Falei-lhe a verdade: Já fui escritor, porém a musa que me inspirava morreu! Ela não entendeu o que eu queria dizer, por isso repeti, morreu, matei-a. E não foste preso, julgado, condenado? Ninguém soube, disse-lhe. Como assim, que fizeste com o corpo? Ela não tinha corpo. E foi então que ela se aproximou de mim e depositou um suave ósculo no canto exterior esquerdo da minha boca, e pediu docemente, Carinho, conta o que aconteceu, juro que não irei denunciar-te. E então contei-lhe que quando escrevo tenho sempre alguém a quem estou a contar uma estória, normalmente uma mulher. Até agora tem sido sempre ela, disse-lhe referindo-me a ti, mas depois começaste a trair-me e por isso comecei também a não te invocar. Trair-te?, com quem, quis saber a Inna. Com diversos, esclareci, primeiro foi com um moçambicano preto de pele áspera, conforme me disseste, um fulano que descobriste não sei onde nem como e por quem te apaixonaste durante uns dias, mas suficientes para me enfeitar a testa com profusão, conforme tu mesma virias a contar-me com pormenores. Depois foi com um cantor brasileiro de voz melodiosa e que tu mesma virias a descobrir horrorizada ser bissexual no dia em que te entrou porta adentro na companhia de um jovem musculoso que deveria cometer a proeza de vos possuir à vez… Cariño, disse Inna Luna beijando-me a testa suada, sofreste muito com essa murer. Ainda sofro, disse-lhe, ela não me larga a braguilha. Tens que ser forte, firme, exortou-me. Sou forte e firme, digo-lhe, mas não com ela. E precisavas contar que te traí, disseste, esse era um segredo nosso! Nosso e de todos aqueles outros, o moçambicano, o brasileiro, o cubano, achas que não me dói saber-te esponjada com aqueles todos? Sabes, a dor de corno atua com efeito retroativo, isto é, atua no passado, no presente e no futuro.
Está bem, pronto, disseste, e tu e mais essa Inna Luna, como estão? Não sei, tive que fugir, houve um percalço inesperado: ser a Inna Luna alérgica a toda a espécie de flores! De tal modo alérgica que mal abriu a porta do quarto o intenso e estonteante bafo a atirou ao chão cambaleante e já sem sentidos, e ali teria ficado se felizmente não tivesse passado uma empregada que deu alarme para a receção do hotel.
Germano Almeida
Inna Luna
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