A tentativa de assassinato de José Luís Neves veio, mais uma vez, pôr a nu as fragilidades e incompetências do Estado cabo-verdiano na área da segurança. As decisões para combater a pequena e a grande criminalidade foram tomadas há já algum tempo, mas, até hoje, não passam de declarações de princípio. E os criminosos já se deram conta desse “chove não molha”.
Depois de vários assassinatos, que nem sempre foram levados em devida conta porque se pensava que se tratavam de meros ajustes de conta entre gente ligada à criminalidade organizada, nos últimos meses os alvos passaram a ser outros. O primeiro caso que chocou o país foi o assassinato da mãe da inspectora da Polícia Judiciária (PJ) Cátia Tavares e agora, já no cair de 2014, a tentativa de homicídio de José Luís Neves, filho do Primeiro-Ministro, José Maria Neves.
Aquando do assassinato da mãe da inspectora da PJ chegou-se a falar que outras entidades, nomeadamente políticos e magistrados, estavam sob ameaça de narcotraficantes. Só que em vez de se reforçar a segurança dos diversos agentes, com intervenção directa ou indirecta no combate à grande criminalidade, optou-se pela via mais fácil: “casa roubada, trancas à porta”, reforçando a segurança de Cátia Tavares e família, esquecendo-se dos potenciais alvos de atentado. Isto como se os criminosos não fossem inteligentes e capazes de agir na altura mais conveniente.
DESAFIO À AUTORIDADE DO ESTADO
De acordo com um perito em matéria de inteligência e contra-inteligência, Cabo Verde está, neste momento, perante uma situação que ultrapassa a mera questão de segurança interna, porquanto a segurança nacional foi posta em causa, com o atentado a um familiar muito próximo de uma das mais altas figuras do Estado, o Primeiro-Ministro, José Maria Neves.
“Quando os órgãos de soberania são postos em causa, está-se perante uma situação de ameaça à segurança nacional. Para mim, o atentado ao filho do PM é, antes de tudo, uma ameaça da criminalidade organizada que começa a insurgir-se contra o poder instituído”, realça o nosso interlocutor.
Este defende que, perante tal ameaça, todos os órgãos que concorrem para a Segurança Nacional devem ser chamados para que, numa acção concertada, possam dar combate à grande criminalidade que ameaça os órgãos de soberania, a tranquilidade e paz social. “Neste momento, estamos perante um poder paralelo, sem rosto, que quer enfrentar o poder instituído.
INFORMAÇÃO DA REPÚBLICA
A nossa fonte, que lamenta a fraca performance do Serviço de Informação da República (SIR), por considerar que tem tido um papel “praticamente nulo” em relação ao combate à criminalidade organizada, defende, no entanto, que, perante a situação de ameaça real, as Forças Armadas, através do Ministério da Defesa, deveriam assumir a coordenação da segurança. Isto tendo em conta que “estamos diante de uma situação de ameaça nacional, o que ultrapassa a questão de segurança interna”.
“O SIR reponde, politicamente, perante o Primeiro-Ministro, mas, do meu de ponto vista, deveria, em questões técnicas, prestar informações às entidades que lidam no dia a dia com questões de segurança nacional”, defende esse perito, que trabalha com questões de informação desde a década de 80. “Hoje em dia sem informação não se pode fazer nada”, alerta.
PROLIFERAÇÃO DE ARMAS
A questão de proliferação de armas ligeiras e de pequeno calibre, que “infelizmente não tem sido bem tratada pelas autoridades competentes”, é, na óptica do mesmo analista, um dos aspectos que mais têm contribuído para o recrudescimento de situações de violência no país, com reflexos directos na percepção de segurança por parte da sociedade cabo-verdiana.
“Um dos factores que mais têm dificultado o combate, tanto da pequena como da grande criminalidade tem sido o número cada vez mais crescente de armas em mãos indevidas”, realça a nossa fonte que questiona também a eficácia da nova Lei de Armas.
“Sempre defendi uma lei que instituísse uma progressiva eliminação da circulação de armas em Cabo Verde”, acrescenta o nosso interlocutor, recordando que a posse ilegal de arma em Cabo Verde não dá cadeia. “Uma pessoa apanhada com uma arma ilegal está sujeita, apenas, a uma simples multa, o que para mim, não desestimula essa prática. Um indivíduo apanhado com arma ilegal deve ir imediatamente para prisão preventiva”, defende.
VIDEO-VIGILÂNCIA E ILUMINAÇÃO PÚBLICA
Para que as questões de segurança nacional possam ser levadas com o rigor e a seriedade que merecem, o nosso interlocutor é de opinião que é “necessário um pacto de regime” sobre essa matéria.
Aponta como exemplo a questão da videovigilância: “Não resolve o problema, mas contribuiu para combater tanto a pequena como a grande criminalidade”, afirma a nossa fonte apontando, também, a “deficiente” iluminação pública como um dos factores propiciadores e facilitadores da criminalidade.
Em relação à videovigilância sabe-se que para a implementação deste mecanismo considerado de extrema importância para o combate à pequena e grande criminalidade, tudo está a depender da instalação da Comissão de Protecção de Dados, que está encalhada, há anos no Parlamento. Enquanto os deputados não se entendem em relação a esta matéria estruturante para o país, a criminalidade vai ganhando terreno.
MOLDURA PENAL
O aumento da grande criminalidade e de crimes de sangue esteve, recentemente, na origem de uma petição, que circulou nas redes sociais a favor do aumento da pena máxima em Cabo Verde.
O narcotráfico e a criminalidade conexa lançaram, em Setembro último, o temor no país, com o assassinato da mãe de uma inspectora da Polícia Judiciária, mas, também, a pequena criminalidade continua a “aterrorizar” a sociedade cabo-verdiana, que, quase todos dias, recebe notícias de homicídios. O ponto alto aconteceu no dia 30 de Dezembro com a tentativa de assassinato de José Luís Neves.
Para se ter ideia do impacto da pequena e grande criminalidade na paz social em Cabo Verde, a Polícia Nacional registou, de Janeiro a Setembro deste ano, um total de 50 homicídios, isto é, 5,5 por mês e um em cada seis dias. Ou seja, conforme esses dados fornecidos por uma fonte policial, rara é a semana em que não morre alguém vítima de alguma bala ou de outra forma, afectando de forma grave a imagem de um país ordeiro e pacífico, ideal para nele se investir e viver.
Confrontado por jornalistas sobre a petição que circulava nas redes sociais, o primeiro-ministro, José Maria Neves, disse, na altura, que “só o aumento das penas não resolve o problema”.
“Teremos de encontrar formas de agravar algumas penas e ter uma acção mais musculada em relação aos criminosos, respeitando os direitos, as liberdades e as garantias de todos os cidadãos, mas toda a sociedade cabo-verdiana deve mobilizar-se no sentido de combatermos a criminalidade”, frisava.
PRISÃO DE ALTA SEGURANÇA
O nosso interlocutor defende uma diferenciação clara no enclausuramento de criminosos que praticam homicídios violentos, tráfico de drogas e a criminalidade conexa, daqueles que cometem pequenos ilícitos.
“O Governo tem de projectar a construção de uma nova cadeia destinada exclusivamente à grande criminalidade, com um regime mais duro e com privilégios no mínimo dos toleráveis pelos direitos.
As coisas, como estão neste momento, não podem continuar”, alega a nossa fonte exemplificando com as “mordomias” que alguns condenados em processos de tráfico de drogas vêm tendo. “Saem aos fins-de-semana, têm direito a mini-férias de quatro a cinco dias, podem frequentar universidade como se estivessem em liberdade, uso de telemóvel, dentre outras benesses”.
GOTA D’ÁGUA
José Luís Neves, economista, 36 anos, atingido com vários disparos à porta de casa, chegou consciente ao Hospital Agostinho Neto, cidade da Praia, onde foi submetido a uma intervenção cirúrgica com “sucesso”. Desde então, segundo os sucessivos boletins clínicos, o estado de saúde do filho do PM é “estável”, tendo já registado uma evolução “positiva”.
Este acto criminoso está a levantar várias interpretações, com algumas pessoas a ligarem o caso ao narcotráfico, tendo em conta o combate que se tem dado nos últimos tempos contra o tráfico de drogas e lavagem de capitais. Cercado, o narcotráfico cabo-verdiano resolveu partir para a contra-ofensiva, na linha do que vem acontecendo em certos lugares da América do Norte, como o México e El Salvador, na América Central, onde se instalou o clima de guerra civil entre o Estado e esse tipo de criminalidade.
Autoridade do Estado posta à prova pela criminalidade organizada
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