PUB

Opinião

“Generosidade controlada”

Por: Arsénio Fermino 

Este é o título do artigo do Alto Representante da União Africana, o economista guineense Carlos Lopes, que foi ex-secretário executivo da Comissão Económica das Nações Unidas para a África, na extensa reportagem da revista Jeune Afrique de Julho/agosto, consagrada à cooperação da China com a África, aonde colherei algumas informações pertinentes para o esclarecimento do que vem sendo divulgado na comunicação social Ocidental contra os objectivos dessa cooperação. Há já largos anos que venho escrevendo sobre a China, sobretudo depois de ter lido o extraordinário livro do historiador americano Jared Diamond, Armas, Germes e Aço – Os destinos das sociedades humanas, de que dei conta aos leitores, numa série de artigos, e me levou a pesquisar mais informações sobre a China, que me permitiram produzir outros artigos versando a evolução económica, científica e social desse país.

Entende-se a difamação da acção da China levada a cabo com insistência pelos países que viveram da exploração das populações e dos recursos naturais da África, permitindo-lhes vida faustosa durante séculos, que se prolongou mesmo depois de algumas independências de países africanos através do neocolonialismo. Usaram de tudo da África, Ásia e América latina como se fossem coisa deles, não permitindo a criação de indústrias de transformação nesses países, escravizando os seus povos durante séculos, não permitindo a criação de escolas para os seus habitantes. Após as independências, obtidas por lutas armadas ferozes ou concedidas de modo condicionado, em combinação com dirigentes submissos e corruptos, permitindo o neocolonialismo que favorece as ex-metrópoles. Segundo resumiu um quadro da OCDE, sobre essas “falsas notícias”, actualmente muito em moda, contra a cooperação chinesa, o Ocidente aceita muito mal que a China desembarque no quintal que lhes pertenceu; a China estaria, afinal, fazendo o mesmo que o FMI e o BM sempre fizeram quando os países deixavam de poder pagar os empréstimos, com os seus famigerados planos de reestruturação económica, levando-os a vender as suas melhores empresas, a diminuir drasticamente os orçamentos dedicados à saúde, educação e segurança social, a baixar os salários dos trabalhadores a flexibilizar os contratos laborais permitindo despedimentos arbitrários, etc., atitudes que a China nunca tomou após endividamento excessivo e dificuldades de saldar dívidas. É facto a corrupção ser menos frequente, ou menos alargada, nos países de ditadura – a China vive em ditadura chamada do proletariado – por ela se limitar a alguns quadros do partido único, já que os restantes cidadãos não dispõem de liberdade para terem iniciativas individuais para actividades corruptas. Paradoxalmente, a corrupção é mais frequente e alargada em democracia, onde a liberdade permite iniciativas para o bem e para o mal. A liberdade de crítica na democracia geralmente não é acompanhada pela punição, até por os corruptos disporem de meios financeiros para pagarem os melhores escritórios de advogados que conseguem safá-los face à inércia e falta de meios humanos e técnicos da justiça.

A China, que também conheceu a humilhação, a exploração e os abusos do Ocidente, libertou-se mais cedo dessa canga colonial, tendo podido desenvolver-se a ponto de ultrapassar muitos países ocidentais em tecnologia e ciência, estando a poucos passos, economicamente, dos EUA, sendo a segunda economia mundial; entre as economias emergentes é a mais poderosa. Como viveu duramente na pele e alma o colonialismo e sofreu humilhações indescritíveis, entende melhor o sofrimento e as necessidades africanas. Não tendo tido colónias nem bases militares noutros países (com a única excepção, a base em Djibuti, em 2017, para proteger e escoltar os seus navios no Golfo de Aden e nas costas da Somália), oferece mais garantia na sua cooperação. A China teve um crescimento rápido sustentado e uma redução impressionante da pobreza de milhões dos seus cidadãos seguindo o seu próprio método, sem atender a conselhos nem aceitando a ingerência exterior. A partir de Deng Xiaoping, adoptou dois sistemas económicos, o comunista e o de economia de mercado. Um estudo recente considera que cerca de dois terços dos seus empréstimos à África seguem as condições do mercado. Alguns países aproximam-se rapidamente do limite do endividamento considerado de risco, o que levou a maior contenção por parte da China na outorga de empréstimos, limitando-os unicamente para infraestruturas que beneficiem toda a população e não para estruturas de luxo e elefantes brancos. Os empréstimos sem juros do início da cooperação chinesa, mal aproveitados por alguns países, foram substituídos por empréstimos consagrados a vastos programas de construção de infraestruturas úteis ao país – pontes, estradas, vias férreas, barragens hidro-eléctricas, portos, aeroportos, estádios, etc. A via-férrea em construção em Djibuti irá desencravar países do interior como a Etiópia, Uganda, Sudão, Ruanda, Zimbabué e Rep. Centro Africana, dando-lhes acesso ao mar.

Em 2013 foi anunciado pelo actual Presidente, Xi Jinping, o grande projecto da Nova Estrada da Seda com um orçamento dez vezes superior ao do Plano Marshall, que liga a China a todo o mundo por estradas, vias férreas e aéreas, portos, etc, uma abertura da China ao mundo. Desde essa data, a China investiu 50 biliões de dólares em África na realização dessa chamada Nova Estrada da Seda.

A China é um dos mais importantes contribuintes no avanço económico africano nos últimos dez anos. Aquando do encerramento da reunião pós Foca (Forum sobre a cooperação sino-africana) organizada em Pekin em Junho de 2019, o ministro senegalês dos Negócios Estrangeiros confirmou a realidade dos factos: 10.000 km de estradas, 6.000 km de vias férreas, 30 portos, 20 aeroportos e 80 centrais eléctricas construídas por empresas chinesas no continente africano. Não há que pôr em dúvida a capacidade chinesa na realização desse grandioso projecto por dispor de tecnologia e ciência para tal e grandes empresas de construção e técnicos competentes que já demonstraram essa capacidade em Marrocos, Djibuti, Quénia, projecto de ponte ligando Maputo a Catembe, etc. A maior ponte do mundo foi construída na China: tem 164 km de extensão!

As PME chinesas, que já não têm grandes possibilidades de aumento de número na China devido ao aumento dos salários dos trabalhadores chineses, estão a dirigir-se para a África; pequenas e médias empresas que dão trabalho a operários locais e subempregam outras empresas locais para a produção de produtos de que necessitam para as suas empresas.

A China é o país que mais investe em anergias renováveis visto não possuir petróleo e ter necessidade de muita energia; vem utilizando a sua riqueza em carvão que é altamente poluidora. Possui grande quantidade de minerais raros indispensáveis ao fabrico de aparelhagem sofisticada dos computadores, painéis solares, telemóveis, elementos dos moinhos eólicos, televisores, etc.

A grande virtude da cooperação chinesa é poder reforçar a capacidade dos países africanos a valorizar o seu potencial humano e as matérias-primas por si próprias, com auxílio inicial chinês, construindo estruturas industriais, sociais e científicas que beneficiam toda a população. Convém, no entanto, não nos iludirmos: em negócios não há amizades, há interesses, como, de resto, em política. Os chineses foram sempre mestres a negociar e há que ter isso em consideração na cooperação sino-africana.

Parede, Agosto de 2019                                                           

* Pediatra e sócio-honorário da Adeco 

(Publicado no A NAÇÃO impresso, nº 628,  de 12 de Setembro de 2019)

PUB

PUB

PUB

To Top