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Opinião

Do centralismo democrático e democracia participativa à descentralização

Por: Arsénio Fermino de Pina*

Tenho-me pronunciado bastas vezes sobre o assunto em epígrafe, e muito do que escrevi e disse está contido em dois livros colectivos publicados pelo Grupo de Reflexão sobre a Descentralização e Regionalização de Cabo Verde. Confessei aos companheiros do Grupo, coautores dos livros, que iria deixar de escrever e falar da descentralização e regionalização por me ter convencido da falta de vontade e determinação políticas dos partidos da área de governação nisso, muito embora advoguem a descentralização/regionalização em promessas e discursos para enganar papalvos, mas, quando içados ao poder, nada fazem, com receio de abrir mãos de poderes que caberiam à descentralização. Actualmente, todos os partidos são, em teoria, favoráveis à sua execução, e o Governo que quase jurou realizá-la, tendo escrito preto no branco a execução da descentralização/regionalização, vai adiando o compromisso assumido, quando o Presidente da República é francamente favorável à sua realização. Se volto ao assunto, até com menos acutilância, é por pura teimosia, como prova de vida, por estar fora do país e não ter podido participar com os companheiros da luta nas manifestações de protesto.

Não estranho esse adiamento nem as tergiversações do Governo, por acontecer o mesmo em Portugal, onde também se vai adiando a descentralização/regionalização, e nós sermos useiros e vezeiros em imitar Portugal, lamentavelmente mais vezes nas coisas más. Desconfio que o Governo ainda não atinou com o modo de fazer a descentralização e a regionalização e aguarda o lamiré de Portugal quando este as executar. Acho que poderá fazer isso sem se envergonhar, e irei dar, com a devida vénia, algumas dicas nesse sentido. 

Li, recentemente, uma entrevista ao coordenador da Comissão Independente para a Descentralização, João Cravinho, ex-ministro socialista, que nos dá conta de alguns aspectos das propostas dessa Comissão, estando convencido de que a regionalização poderá ser feita ao cabo de dois anos. Respigo dessa entrevista algumas sugestões do coordenador de interesse para a apreciação da viabilidade do processo.

Os países mais desenvolvidos são descentralizados, segundo garante a OCDE. Cabo Verde esteve sempre centralizado. Esta realidade tem elevados custos ao nível da eficácia e equidade das políticas e da provisão de serviços a cidadãos e empresas, ao mesmo tempo que alimenta um perigoso sentimento de abandono por parte das populações, as quais se sentem abandonadas, esquecidas e cada vez mais longe dos decisores políticos vistos como distantes e inacessíveis, segundo relata a Comissão Independente para a Descentralização.

O centralismo, dito democrático, que nos governou durante quinze anos (cinco anos seriam toleráveis…), foi de inspiração Marxista-Leninista, na moda nessa altura nos países africanos recém-independentes, em que o Partido Único dirigia o Estado, com o seu sistema de segurança semelhante à odiosa PIDE; nunca foi democrático por o povo ser representado por elementos superiores do Partido Único que se autoproclamou legítimo representante do Povo e da Nação, só podendo haver diálogo e crítica entre eles em nome e substituindo o povo; as conclusões e decisões vinham, estrondosamente, de cima, como sendo do povo, mesmo quando desagradáveis, limitativas e punitivas. A isso chamaram Democracia Participativa, como se houvesse democracia não participativa ou autocrática. Democracia é uma só, com liberdades garantidas e justiça independente.

Enquanto os governantes ruminam tranquilamente a regionalização, à espera que Portugal avance nisso, poderiam ir-se treinando, pondo em prática a descentralização, para se habituarem a aceitar a limitação ou partilha de certos poderes com a periferia (ilhas). A vantagem da descentralização é não implicar transferência de poderes para entidades híbridas criadas artificialmente, com eleitos, representantes e nomeados.

Não basta descentralizar e criar regiões. É preciso dar-lhes condições, meios. Para além de nossa lei de quadro é preciso uma lei eleitoral regional. A descentralização/regionalização deve ser um processo gradual, faseado e com metas de transferências para as regiões administrativas, com permanente monitorização e avaliação e o calendário previsto. A Comissão recomenda também que a governação das regiões seja moderna e eficiente, assente na digitalização, transparência e prevenção da corrupção, ou seja, que todos os cidadãos possam escrutinar tudo o que ali é decidido e feito, o que não irá ser fácil mas absolutamente necessário, dados os exemplos conhecidos da condenável prática municipal. A Comissão propõe a existência de uma Assembleia Regional e uma Junta Regional. Os deputados da Assembleia serão eleitos por sistema misto que inclua círculos uninominais nas regiões, círculos regionais e ainda eleitos pelas assembleias municipais reconhecidos de cada região. Os deputados estariam em tempo parcial, pagos por senhas de presença.

Ainda não entendi a razão de tanto medo ou hesitação relativamente à descentralização de certos poderes para a periferia, daqueles que, geralmente, o Estado gere mal, preguiçosamente. O Estado democrático é responsável por alguns dos poderes mais importantes da vida colectiva, como a soberania, segurança, justiça, democracia e liberdades individuais. Obviamente que estes poderes irão continuar a ser centralizados, e os restantes poderes transferidos para instituições eleitas da periferia (ilhas) descentralizadas. Se se der esse primeiro passo – descentralização – presumo que a regionalização deixaria de ser um bicho-de-sete-cabeças e poderia impor-se, naturalmente, por vontade e até com reconhecimento de vantagens colectivas, por agrupamentos de ilhas com interesses afins em vez de isoladas em ilhas.

Quem se der ao trabalho de ler o que tenho escrito sobre a matéria chegará à conclusão de que defendi sempre, em primeiro lugar, a descentralização, a qual, com o tempo e a prática, facilitará a execução da regionalização. A coisa está difícil dado que quem governa e se habituou a ter nas mãos todos os poderes, muito dificilmente prescinde de alguns, usando todos os subterfúgios para evitar a perda de alguns.

Parede, Agosto de 2019                                                                       

* Pediatra e sócio-honorário da Adeco 

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