Por: Milton Monteiro
Amílcar Cabral foi assassinado 20 de janeiro de 1973, em Guiné-Conacri. Com 48 anos de idade e quase duas décadas de luta pela independência do seu povo, tentaram calar a sua voz e travar a sua força, no entanto, era tarde demais, já não existia um Cabral, mas milhares.
Certamente, não estamos falando da morte física, mas sim da simbólica. Parafraseando as Sagradas Escrituras, Cabral sabia que eram “como ovelhas para o meio de lobos […] um irmão entregará à morte outro irmão” (Mateus 10:16 e 21). Por isso não tinha medo de morrer: “quem vai à guerra sabe que pode viver ou morrer” (Unidade e Luta, Cabral, pág. 235).
Para nós cristãos, a morte transcende a realidade física e material. Por exemplo, quando Jesus enviou seus discípulos, falou-lhes sobre a morte espiritual e da vida após a morte: “não temam os que matam o corpo, mas não podem matar a alma” (verso 20). Isso quer dizer que a vida de um homem está na essência de sua “alma”. Uma coisa é viver, outra é respirar; só vive quem tem “alma” – a essência. Pois bem, como é que matamos Cabral? Fisicamente ou na essência?
O primeiro tiro que Cabral recebe todos dos dias
O primeiro tiro que Cabral recebe todos os dias em Cabo Verde é na porta skola. Não porque temos apenas um único liceu no país, como era na sua infância, mas porque negamos às crianças (pequenos cabrais) e aos jovens (grandes cabrais) uma parte da sua história. Como disse Markus Garvey, “um povo sem história é como uma árvore sem raízes”, é seca ou morta. “Um povo que não conhece sua história está condenado a repetí-la” (Edmund Burke). Esta é uma das razões porque ainda cometemos erros do passado e temos fantasmas coloniais na nossa forma de ser, pensar e agir.
“A maioria da população cabo-verdiana, que é muito jovem, não sabe, por exemplo, como foi a conquista da independência. A maioria é filha da independência nacional, mas não conhece o que custou a sua obtenção” (Daniel A. Pereira, Um olhar sobre Cabo Verde: história para jovens, pág. 20). Mas, Cabral já tinha alertado que “temos que construir a consciência nacional do nosso povo, desenvolver cada dia mais a consciência política na nossa população […] para defender aquela conquista da nossa libertação nacional” (Unidade e Luta, pág. 157).
Segundo esse historiador e diplomata, Pereira, de fato, faz todo o sentido a preocupação de Cabral, porque “a independência política, sobretudo de países jovens, como é o caso de Cabo Verde, não é definitiva. As independências ganham-se e perdem-se. A prova do seu enraizamento é o tempo. Uma independência recente é sempre ameaçada. Mesmo que permaneça como fato político, pode extinguir-se como fato cultural.
No mundo de hoje, já não há colônias, mas o colonialismo cultural e econômico pode contribuir, poderosamente, para fazer esvaziar a independência do seu conteúdo essencial. Assim, deve ser natural que um país que lutou com tanto sacrifício pela sua independência nacional, lute com a mesma determinação pela consciência cultural da sua identidade.
Entre as diversas componentes da consciência de identidade, a história coletiva do povo é, sem dúvida, a mais importante” (idem, pág. 16). Para ele, o perigo reside no fato de que “numa terra como Cabo Verde, onde mais de 50% da população tem 20 anos ou menos de idade, essa memória corre o risco real e efetivo de esvaziar-se rapidamente”. Por isso entende que “a apreensão da história do povo nas nossas ilhas nas escolas se revela crucial para o futuro indenitário do país e para a formação da consciência cívica da sua população”, claro, começando pela maior memória – a independência (idem, pág. 16).
PAICV e MpD: os maiores assassinos de Cabral
Percebe-se que o colonialismo cultural e econômico é um fato. Daí, a segunda bala é na faceta cultural, porque além de ainda temos uma versão histórica e uma mentalidade colonial, reproduzimos seus discursos e práticas, inverso do que a independência exigia: “devemos trabalhar muito para liquidar na nossa cabeça a cultura colonial” (Cabral, pág. 188). Vejamos que a independência cultural é tão importante quanto a política: “nós queremos a nossa identidade, a nossa personalidade, em defesa não só dos nossos direitos, mas também daquilo que é a base válida da cultura do nosso povo” (pág. 220). E nisso, não continuamos a luta, pecamos, matamos Cabral.
Com certeza, os maiores assassinos de Cabral em Cabo Verde se chamam PAICV e MPD. O primeiro, que deveria difundir os seus valores e ideais, não o fez, nem na forma de pregar e nem de viver a política. Ou seja, o matou.
Já o segundo o enterrou, fazendo várias tentativas para acabar com a sua memória, como se o partido único fosse o próprio Cabral. Por exemplo, o dia da Liberdade passou a ser 13 de janeiro e o 5 de julho timidamente comemorado. Tudo isso pela ganância do poder e pela falta de entendimento de que Cabral não é um partido, este era apenas um instrumento. Cabral não se resume ao PAICV, ele é mais do que um partido. Cabral é legado de todos os cabo-verdianos, o maior de todos nós; é o elo que divide a nossa história em duas eras: antes e depois da colonização.
Falando nisso, enquanto Cabral, para fazer essa divisão de águas entre o antes e o depois, conseguiu um dos maiores milagres na África: “unidade para lutarmos” e “luta para realizarmos a nossa unidade, para construirmos a nossa terra como deve ser” (pág.78). Já os dois partidos dividem-nos para reinar, utilizando a mesma tática colonial. Por isso, enquanto temos partidismo (dedicação excessiva ou adesão cega ao PAICV ou MPD, que conduz: a divisão entre os cabo-verdianos, a escravização e monopolização de mentes, inclusive a dos jovens, a inimizades entre familiares e amigos) estaremos matando Cabral.
Forma de fazer política: Cabral foi morto na sua essência
Pior ainda do que isso, é que Cabral foi morto na sua essência, na forma de fazer a política. Numa entrevista dada por ocasião do 45º Aniversário da Independência, Pedro Pires rasgou o verbo: “entendo que há muita coisa a mudar no nosso comportamento. Nós instituímos na política, em invés da responsabilização, uma outra coisa, que é o clientelismo. Eu faço política para ter acesso a tal coisa, a tal vantagem. Portanto, deve haver qualquer mudança na natureza ética da nossa forma como vemos a política e fazemos ela. Se nós fazemos política na intenção de realizar objetivos pessoais, aí sim vamos ter problemas [já temos!], não vamos resolver os problemas que temos [não temos resolvido muitos por causa disso!]. Temos de fazer política na intenção de servir, servir o país, servir a sociedade. E nós, vamos ter que fazer a política nessa intenção de dar atenção ao interesse comum, aquele que é comum que nos ajuda, porque se nós fazemos numa perspectiva individualista, não dá, temos que ter uma outra perspectiva”.
Ou seja, não muito diferente do resto da África, a política é um meio de ganha-pão em Cabo Verde, o que contraria a ética de Cabral: “nenhum responsável tem o direito de usar [política] para obter proveitos pessoais contra os interesses do povo. O [político] deve viver no meio do povo, como seu filho e seu defensor” (pág. 38). Para ele, o “direito e o dever de lutar pela nossa terra”, “é o caminho da resistência política, de quem de fato quer lutar ou pegar no duro, para servir o seu povo e não para servir a sua barriga” (pág. 145).
“Com certeza, os maiores assassinos de Cabral em Cabo Verde se chamam PAICV e MPD. O primeiro, que deveria difundir os seus valores e ideais, não o fez, nem na forma de pregar e nem de viver a política. Ou seja, o matou.
Já o segundo o enterrou, fazendo várias tentativas para acabar com a sua memória, como se o partido único fosse o próprio Cabral. Por exemplo, o dia da Liberdade passou a ser 13 de janeiro e o 5 de julho timidamente comemorado. Tudo isso pela ganância do poder e pela falta de entendimento de que Cabral não é um partido, este era apenas um instrumento. Cabral não se resume ao PAICV, ele é mais do que um partido. Cabral é legado de todos os cabo-verdianos, o maior de todos nós; é o elo que divide a nossa história em duas eras: antes e depois da colonização.”
Será que Cabral compraria votos, trocando B.I. por quinhentos escudos ou instrumentalizaria a política? “A nossa luta não é para mim, do ponto de vista material, de melhorar a vida […] E mesmo os dirigentes da nossa terra amanhã viverem tão bem […], isso quererá dizer que o nosso país é muito rico […] devemos estar vigilantes para não deixarmos os nossos dirigentes viverem assim [aquém do que o país pode pagar], porque é uma vida demasiadamente boa para um país pobre que tem que trabalhar muito ainda” (pág. 144).
Associado à falta de ética na política, matamos Cabral também porque a independência não se trata apenas de livrar da exploração imperialista, mas também de nós mesmos: “vamos acabar com a exploração dos tugas, mas vamos acabar com a exploração do nosso povo pela nossa própria gente” (pág. 126). Ou seja, tomamos a independência política, a externa, mas não a interna, dos políticos.
Vejam, que há duas formas de exploração, consequentemente duas independências: “não sejamos tão acusadores dos colonialistas. Desgraça também da exploração da nossa gente pela nossa gente […] uma grande parte do sofrimento do nosso povo estava nas mãos da nossa própria gente [continua?]. Isso não podemos esquecer de maneira nenhuma, para podermos saber o que é que vamos fazer no futuro” (pág. 114). Então, futuro chegou, estamos fazendo o certo? Por exemplo, fazemos promessas que não cumprimos? “Devemos evitar a demagogia, as promessas que não podemos cumprir, a exploração dos sentimentos do povo e das ambições dos oportunistas. Devemos agir de acordo com as realidades, dar a cada um a possibilidade de progredir” (pág. 56).
Matamos Cabral na própria forma de governar
Ainda, matamos Cabral na própria forma de governar o país. Temos lei de transparência e de responsabilidade fiscal? Cabral prestaria conta ao povo ou admitiria erro? “Cometemos esse erro, mas temos que esclarecer o povo, contar-lhe claro, como temos feito sempre” (pág. 180). Prezamos pela meritocracia ou pela padrinhagem? Os Artigos 24º, 56º e 240º, 241º da nossa Constituição são cumpridos? Então, matamos Cabral, pois ele defendia que “o nosso objetivo é […] criarmos um estado novo, diferente, na base da justiça, do trabalho e da igualdade de oportunidade para todos os filhos da terra”
Matamos Cabral na governação porque ele de fato pensou a fundo Cabo Verde e tinha um projeto para o país, além da independência. Vejamos alguns planos: “desde já temos que preparar os nossos planos para a economia da nossa terra na independência” (pág. 172); “quando fizermos Cabo Verde um centro magnífico para turismo mundial [fizemos?]” (pág 126); “o sistema de transporte [temos?], de comunicações, é tão importante para um país avançar como é importante os vasos sanguíneos, as artérias” (pág. 174). E o que dizer da agricultura, a revolução que ele sonhou, concretizamos? “Na nossa terra talvez a agricultura seja a arte de ficar pobre por toda a vida, se de fato não mudarmos o tipo de agricultura na nossa terra, se não fizermos uma verdadeira revolução no plano agrícola na nossa terra. Tanto na Guiné como em Cabo Verde, apesar de haver períodos de seca em Cabo Verde, o que não é razão nenhuma para desastre na agricultura na nossa época, com tantas conquistas da ciência de hoje e que devem estar à disposição de todos os homens do mundo” (pág. 169).
Para onde estamos indo? Por exemplo, planejamos e concretizamos o desenvolvimento de um bairro, ilha ou pensamos que inaugurar uma obrinha ali e acolá é desenvolvimento? Como estamos indo? Endividados até o pescoço, matando Cabral? “Devemos fazer economia, quer dizer, aumentar o ganho e diminuir despesas. É uma coisa que custa muito a entender os camaradas […] não têm o menor cuidado, a menor atenção que não se deve gastar muito” (pág. 173).
Enfim, nu mata Cabral na Kabu Verdi? Não deixe isso acontecer, você é a semente de uma planta semeada por ele: “a resistência dum povo exige coragem para nos transformarmos em semente para criar uma nova plantação que dará então a felicidade desse povo, na liberdade” (pág. 136). Portanto, siga o exemplo de Cabral e dos demais digníssimos heróis da Pátria: “nós resolvemos fazer das nossas cabeças aquela semente que se põe na terra para fazer nascer novas plantas” (pág. 135). Tome consciência porque “só quando numa terra alguns filhos do povo tomam consciência e entendem claro o caminho que se deve seguir para a resistência, então a resistência é definida claramente”. Avancemos, a luta não acabou, “quando nós queremos, quando nós decidimos de fato, somos capazes de fazer” (idem, pág. 177). Então, façamos a Terceira República em Cabo Verde!