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Fogo

Cidade de São Filipe, quase um século de passos desencontrados

Da edição semanal do A NAÇÃO

A dois anos de completar um século da sua ascensão à cidade, no contexto de Cabo Verde, São Filipe é conhecida pelos seus sobrados. Sobrados, para quem não sabe, são construções de dois pisos, no estilo colonial português, em que o rés-do-chão era destinado ao comércio e armazéns, e o primeiro andar, como moradia do seu proprietário.

Fausto do Rosário, professor e activista cultural do Fogo, entende que os “sobrados” definem e referenciam uma época específica, que se situa no fim da abolição de escravatura (século XIX), e daquilo que chama o primeiro êxodo rural do Fogo, período este em que os grandes proprietários deixaram as suas casas no campo para passarem a residir, mais tempo, na cidade (1860/70).

Este movimento implicou o desenvolvimento, primeiro, do povoado de São Filipe, depois vila e, por fim, rapidamente cresceu ao ponto de, pouco mais de meio século (1870 a 1922), saltar para cidade.

Aquele professor considera que tudo isso é história que é necessário preservar, compreender, ensinar e divulgar, e não ficar preso no tempo. Sublinha que São Filipe é chamada justamente de Cidade dos Sobrados, por conter aquele que é o maior núcleo representativo desse tipo de construção em todo Cabo Verde.

“Isso não significa, porém, que São Filipe fique pelos sobrados, poderá ser a cidade do vinho, do café, das festas tradicionais dos santos e das romarias e poderá ter vários epítetos e que um planeamento pode fazer desabrochar”, defende.

 

Ao sabor da história

Do ponto de vista de organização política, segundo Fausto do Rosário, com a independência de Cabo Verde, em 1975, São Filipe ressentiu-se fortemente da substituição das estruturas camarárias de então pelo novo Secretariado Administrativo.

Essa “mudança” aconteceu não só a nível de procedimento de hierarquia de todo o organigrama de serviço, mas também ao nível das próprias competências do poder local da altura.

Esta é uma das razões apontadas, por aquele professor, para a gradual “desorganização” do burgo de São Filipe.

“Evidentemente, com o tempo, as estruturas do Conselho Deliberativo foram mudando, assumindo ou reassumindo as suas competências, e o próprio partido (PAIGC/CV) reconheceu isso e trouxe para a ilha vários quadros da administração colonial que deram alguma estabilidade ao ainda titubeante conselho deliberativo/secretariado administrativo do Fogo”, refere.

Tudo isso, no dizer de Fausto do Rosário, deu lugar a uma cultura administrativa, que até hoje se verifica, com a cidade a crescer, desordenadamente, por pressão do êxodo rural, e, ao mesmo tempo, com São Filipe a passar a ser uma espécie de “espaço de transição”, de “fixação temporária”, para aqueles que, na verdade, pretendem rumar para a Cidade da Praia, em busca de uma vida melhor, ou então daqueles que aguardam uma chamada para América.

São Filipe, diz Fausto do Rosário, carece de uma planificação, porque a expansão que vem registando não contempla um conjunto de equipamentos sociais que garantam a qualidade de vida da sua população – “não há espaços verdes, de lazer, de concentração de pessoas”.

 

Saneamento deficiente e inexistência de rede de esgotos

A isso soma-se, actualmente, a perda de qualidade de vida em São Filipe, em termos de limpeza urbana, com a cidade a ser pensada de “forma retrógrada”. “Não se pode pensar que só a Câmara Municipal tem a obrigação de limpar”, observa.

“O código de posturas que vigorava antes da independência obrigava as pessoas a limpar as cercanias da casa, não dispor do lixo de uma forma desordenada e a pintar as suas casas, de dois em dois anos ou de quatro em quatro anos. Isto era feito e respeitado, não havia o facilitismo de hoje, o desenrascar a qualquer preço, em que as pessoas constroem e não há o reboco, não há pintura nem acabamento”.

Sobre a inexistência de rede de esgotos em São Filipe, uma reivindicação antiga do final da década de 50 do século passado, Rosário indicou que há coisas que nem vale a pena falar por ser elementar.

“A minha geração nasceu e cresceu ouvindo falar de rede de esgotos para a cidade”, referiu, sublinhando que ela ainda não existe por falta do sentido de responsabilidade, compromisso e continuidade.

“Uma coisa que existia entre os diversos administradores da ilha foi o sentido de compromisso e de continuidade. Entre o calcetamento da parte baixa da então vila de São Filipe (1870) até se chegar ao calcetamento de Cruz dos Passos, Aguadinha e estrada para o aeródromo há um hiato de perto de 100 anos”, advogou Fausto Rosário, explicando que isso aconteceu porque os vários administradores que foram passando, nenhum deles destruiu para consertar, mas deram continuidade à obra feita.

Para Rosário, os autarcas não podem pensar e agir, pelo facto, de terem sido eleitos, estava tudo errado e agora vai se fazer tudo certo.

“Há esta cultura, infelizmente, e no dia em que passamos a ter o sentimento de compromisso, responsabilidade e preservando o que de bom se fez e concertando o que não se fez bem, não duvido que haverá um salto qualitativo e esta questão da rede de esgoto será resolvida”, sustentou.

 

Falta do sentimento de compromisso

A falta do sentimento de compromisso, responsabilidade e continuidade é sentida em outros sectores, nomeadamente da cultura. São Filipe não pode continuar a ter uma cultura que se referencie apenas por efemérides, defende do Rosário.

“A cultura não pode ser apenas a festa de São Filipe em que de repente descobrimos que somos o maior de Cabo Verde para no dia 03 de Maio voltarmos a ser ninguém de Cabo Verde”, disse Fausto Rosário, acrescentando que “a cultura não pode ser apenas uma referência por ocasião do aniversário da Cidade, pelas festas de São João ou São Pedro ou quando um filho do Fogo se lembra que aqui nasceu e decide apresentar um livro ou outra obra qualquer”.

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