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O que significa 5 de Julho? 

Por: Milton Monteiro

Kamaradinha, o dia chegou, não comemorarei a Independência contigo. Sim, estou partindo, “quem vai a guerra sabe que pode viver ou morrer” (P.A.I.G.C – Unidade e Luta, pg. 235). Mas eu estou indo com plena certeza de que amanhã será um novo dia. Na verdade, o raiar já começou: “há uma África nova que surgiu, para a independência, para o progresso” e “já transformamos muito, porque hoje, na nossa terra, na maior parte da nossa terra, o tuga não manda [dois terços do território foi libertado até 1970]” (pg. 129, 131).

 Não sei o que te contarão, se é que te contarão. Só espero que a nossa história não seja também assassinada, pois “um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la” (Edmund Burke). Então, me permita, ressuscitar rapidamente algumas memórias que nem a própria morte da colonização deve apagar. Presta atenção, Cabralzinho!, porque se você não souber o que aconteceu entre 1460 e a Libertação, então, não saberá minimamente o valor da Independência. Pergunta aos teus avós, porque se eles voltassem no tempo – naqueles terríveis dias – dir-te-iam sobre o mundo que o colonialismo português criou: 

 “Somos um povo explorado pelos colonialistas portugueses […] somos uma terra desenvolvida? Não. Somos atrasados economicamente sem desenvolvimento nenhum […] não há indústria a sério, a agricultura é atrasada, a nossa agricultura é do tempo dos nossos avós. As riquezas da nossa terra foram tiradas, sobretudo, do trabalho do homem. Mas os tugas não fizeram nada para desenvolver qualquer riqueza da nossa terra, absolutamente nada. Os nossos portos não valem nada […]. Poderiam ter feito bons portos, mas fizeram uns cais acostáveis que não valem nada” (pg. 110, 111).

Somos “um povo cujo principal meio de vida é a agricultura. Cultivar a terra para tirar o necessário para comer e nem sempre tirar o necessário […] Tantos anos [quinhentos!] de presença dos tugas e a situação sempre na mesma, atrasados economicamente. Não podemos falar de indústria a sério […], 3 fábricas de conserva de peixe em que os tugas trabalham o tempo que querem, enchem os bolsos de dinheiro, fecham a fábrica e vão descansar. E para conhecerem melhor a pouca vergonha dos tugas, eu lembro-me, por exemplo, que quando eu estava no liceu, a minha mãe foi para Cabo Verde, empregou-se na fábrica de conserva de peixe, porque a costura não dava nada. E sabem quanto é que ela ganhava por hora? Cinco tostões” (pág. 111, 112, 113). E, você acha que tínhamos direito de protestar ou reclamar? Que nada, “as greves e as manifestações, os tugas respondem caindo em cima de nós para matar todos, para acabar com tudo” (pg. 99). É sufri kaladu! Qualquer organização política só na clandestinidade.

 Todos conheciam “qual é a realidade social da nossa terra, a desgraça da exploração colonialista […] desgraça também da exploração da nossa gente pela nossa gente. […] Muito povo de Cabo Verde sofreu, por causa da exploração dos donos das terras, cabo-verdianos mesmo. […] A nossa gente passa miséria […] na maior parte do tempo, em que não há chuvas suficientes, há fome. Em Cabo Verde já morreu de fome mais gente do que aquela que vive lá, hoje, durante estes últimos 50 anos. Contratados para S. Tomé, e transportados como bichos nos porões (se morrem – deita-se ao mar), mandados para Angola. […] existia toda a exploração dos colonialistas: trabalho forçado nas estradas, toda a espécie de vexames, insultos, humilhações. E médicos portugueses que estudaram a situação em Cabo Verde, disseram que uma certeza levaram com eles, segura, na sua cabeça de cientistas: é que toda a gente está numa situação de fome. Se não é fome total é fome específica, quer dizer: falta de certos elementos que são precisos para o corpo humano viver bem. […] na nossa terra uma pessoa com 30 anos já começa a envelhecer. Na nossa terra é raro encontrar velhos, velhos de cabelos brancos, barba. A média de vida na nossa terra, na Guiné ou em Cabo Verde, é de 30 anos [hoje é de 75 anos]. […] Essa é a condição social da nossa terra. Abusos dos tugas, abusos daqueles filhos da nossa terra que abusam nos outros, miséria, sofrimentos, doenças, fome e vida curta ainda por cima. Condição difícil, muito difícil, camaradas” (pg. 113, 114, 115).

 “Infelizmente temos grandes dificuldades em conseguir artigos de primeira necessidade, porque não temos dinheiro bastante” (165). “Ainda hoje existe o sistema de escravatura em África” (223), temática esse que nem temos tempo para falar;  “nós estávamos sempre divididos”, utilizaram “umas raças contra as outras” (pg. 226), dividiram para reinar. O racismo e o complexo de inferioridade são por causa da ideia da superioridade racial e do “apartheid à portuguesa”. 

 E do ponto de vista cultural e educacional? Com certeza, você não saberia ler o que estou escrevendo se nascesse naqueles dias. Cabo Verde é “85% de analfabetos [hoje é ao contrário]. Mas daqueles que sabem ler, eu fiz a experiência em 1949, quando fui passar férias lá: gente com 2º grau no mato, em Godim ou em Santa Catarina, por exemplo, dá-se-lhes o jornal para lerem, fizeram o 2º grau já havia 4 ou 5 anos, não sabia ler nada porque leem, mas não sabem o que estão a ler. Esses também são analfabetos. Na Guiné, 97% da população não podia ir à escola. A escola era só para os assimilados [“negros brancos”], ou filhos de assimilados […] é uma desgraça que o tuga pós na nossa terra, não deixar os nossos filhos avançarem, aprender, entender a realidade da nossa vida, da nossa terra, da nossa sociedade, entender a realidade da África, do mundo de hoje” (pg. 115, 116). 

 Nós éramos obrigados a saber tudo sobre Portugal e nada sobre o nosso país. Nem te conto o sufoco que passei! Você sabia que quase não estudei e, consequentemente, a tua independência retardada por mais tempo? Então, o drama foi seguinte: “os colonialistas deixaram estudar os cabo-verdianos na medida em que precisavam de gente para fazer agentes do colonialismo, para servir de agentes, como utilizaram os indianos. […] Mas a certa altura barraram o caminho de uma vez, nem mais do que um certo numero de escolas primárias, nem mais do que um liceu, um liceu apenas que aliás Vieira Machado, antigo Ministro do “Ultramar”, queria transformar em escola de pescadores e carpinteiros na altura em que eu entrei para o liceu. Estive três meses sem frequentar o liceu, porque o fecharam, para eles bastava, não era preciso. A partir de então, só escolas para pescadores e carpinteiros. A população é que se levantou, protestou, e o liceu começou a funcionar de novo” (pg. 117).

 Você acha que foi fácil? “No começo [quase vinte anos atrás] era difícil. Desde aquele homem que perguntou: – ‘mas como é que vamos lutar contra o tuga, se nós nem roupa temos, se nós não sabemos ler nem escrever? A guerra do tuga, é de Comandantes Majores, etc., formados na Universidade, em altas Academias, como é que vamos arranjar meio para lutar, como é que isso pode ser?’” (pg. 129). 

 E acha que não corri risco e nem fui tachado de tudo? “Não era possível uma reunião de camaradas […] eu chamei os melhores amigos da minha casa, e lhes disse: ‘camaradas, vocês são muito amigos da minha mãe, são meus amigos também, vocês vêm a minha a casa, nós comemos. Brincamos, mas a hora da brincadeira acabou, comecemos a fazer umas pequenas conversas’. Sim senhor. Nós conversamos, marcamos uma reunião. Mas não vieram, só vieram um ou dois. Não vieram porque eles pensavam que era uma doidice” (pg. 132). 

 Até inimigos internos tivemos – traidores – “gente da nossa terra, que enganada pelos tugas, tinha pegado em armas contra nós” (pg. 144) e “lacaios ou cachorros dos brancos”, que “quer mandar, quer ser Presidente da República, quer ser Ministro, para poder explorar o seu próprio povo” (pg. 128). Não existe “possibilidades concretas e iguais para qualquer filho da nossa terra, homem ou mulher, avançar como ser humano” (pg. 138). “Eu vi gente morrer de fome em Cabo Verde e vi gente morrer de açoites na Guiné (com bofetadas, pontapés, trabalho forçado) entendem? Essa que é a razão da minha revolta”(pg. 91).

 “Em Cabo Verde, embora saibamos que a nossa luta é para servir fundamentalmente aqueles que estão a sofrer, que não tem terra para lavrar, que não tem emprego, que são contratados para irem morrer em S. Tomé; que  a nossa luta é para aquelas mães que carregam sacos no cais de S. Vicente, que morrem de fome ao lado dos seus filhos, no tempo da crise […]. A nossa luta na Guiné é para a nossa gente do mato, em primeiro lugar, gente que viveu durante séculos e séculos dentre duma tabanca, sem conhecer para além de 5 km da sua casa, gente que não sabe o que é uma escola, o que é um medicamento para curar doenças que lhe enchem o corpo. […] A nossa resistência na Guiné é para acabar com todos os abusos contra aqueles que abusam, tanto no mato como nas cidades. Para os filhos da nossa terra conhecerem a sua profissão como deve ser e para que nenhum estrangeiro dirija a nossa terra” (144, 145). 

 Enfim, “nós procuramos conquistar os nossos direitos de povo que deve ser livre, soberano, quer dizer que manda em si mesmo, conquistar a independência nacional da nossa terra” (155); “queremos fazer uma terra onde todo o homem de qualquer parte do mundo, desde que respeite o direito do nosso povo de mandar em si mesmo, pode viver, trabalhar e viver como deve ser” (pg. 148); “nós queremos a nossa identidade, a nossa personalidade, em defesa ao só dos nossos direitos, mas também daquilo que é a base válida da cultura do nosso povo” (pg. 220). 

 “Por outro lado, o tuga faz força para destruir completamente […] bombardeamos, napalm, assaltos com helicópteros para aterrorizar a população, para a população abandonar o nosso país […] queima as nossas colheitas e as nossas tabancas, destroem tudo, matam as nossas vacas, qualquer bicho que vêm a mexer, matam-no. E como criminosos que são, matam a nossa população, crianças, mulheres, velhos, quanto mais homens válidos. Tudo isso não só por causa da guerra, não, é para destruir, para acabar com a nossa resistência […] o inimigo, portanto, faz tudo o que pode, e mesmo em relação a medicamentos e outras coisas, tecidos, que arranjamos para a nossa gente, para os Armazéns do Povo, para os hospitais, etc., ele faz força para acabar com isso, para destruir. […] os tugas estão dispostos a queimar completamente a nossa terra, se for preciso, a fazer a política da terra queimada, a reduzir tudo a cinzas, só para não ganharmos a luta” (160, 161).

 Proibimos “tudo quanto possa ser crime, tudo que, no nosso espírito, seja ódio, desejo de sangue”, já “cortar a cabeça e as orelhas […]  é fácil para os tugas. E o nosso inimigo, que é criminoso de pior espécie, bárbaro, da gente da pior espécie, da gente pior que já apareceu no mundo, tem vergonha diante da pureza, da consciência elevada da nossa luta armada de libertação nacional” (pg. 232). “Nos sugeriram fazer certas atrocidades. Mas recusámo-nos a isso […] matar mulheres, matar crianças brancas, só porque são brancas. Nós recusámo-nos a isso duma vez para sempre. Por quê? Porque queremos fazer uma resistência política para servir o nosso povo, não queremos que o nosso povo seja um sanguinário, não queremos que o nosso povo faça sangue só por fazer sangue. […] Demos ordem para que cada um que pegou em armas e a largou, não seja considerado maus inimigo: é um ser humano que devemos tratar bem.” (pg. 149). “Nós não lutamos contra o povo português, nem contra os portugueses; nós lutamos contra o colonialismo português, contra os colonialistas portugueses” (pg. 147). 

 Então, o que significa 5 de julho? Estude, meu filho, e ensine para os outros o milagre que aconteceu na nossa terra: “homens e mulheres que se reuniram para mobilizar o nosso povo para a luta, para acabar com o sofrimento, com a miséria, com a desgraça, com as bofetadas, os pontapés, o trabalho forçado, etc.” (pg. 211). “A resistência dum povo exige coragem para nos transformarmos em semente para criar uma nova plantação que dará então a felicidade desse povo, na liberdade” (pg. 136). É isso, você é uma nova semente, conhece sua história, celebre hoje, e continua a luta amanhã, pois “os problemas grandes estão é para frente” (pg. 179)! E lembre-se: “a nossa desgraça é começar e não acabar” (206), eu comecei a Independência, e agora, você precisa acabar. 

Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 670, de 02 de Julho de 2020

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