Por: Filinto Elísio
Às vezes, é difícil escrever sob cativeiro, com este que se vive em tempos de pandemia. Desmotiva tanta privação e limitação, como desestimula falar sempre das mesmas coisas, já que a probabilidade de tudo se repetir é exponencial, razão de alguma síndroma de página branca. Outras vezes, em prisão domiciliária ou em liberdade condicional, a inspiração ressurge nas ínfimas malhas da subversão. Já dizia um poeta que a subversão é o húmus da criação, como corroborava outro em como mordaças a um poeta ser o único impossível. Felizmente que, entre os estados da alma a povoaram os dias, o ofício da escrita, a gosto ou a contragosto, emerge como missão, apanágio de qualquer cronista, afinal sujeito afeito às letras.
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E, depois de tanto confinamento, vejo tudo a desconfinar-se. Não havendo certeza alguma e sendo dúvida o que se instaurou por estes dias, fica também difícil inferir a bondade das decisões que são tomadas e as quais exigem de nós estrito cumprimento. Antes, era tudo sem máscaras, agora é tudo com máscaras; antes, um metro, agora, dois metros; o perigo das superfícies, agora nem por isso, antes o confinamento, agora a imunidade de grupo. Uma única certeza se tanto: é um pandemónio como adenda ao caos as notícias de curar com a cloroquina, porque, nestes casos, mais do que a mensagem, tais mensageiros são um deus-nos-acuda. Há gente que fala em fim de globalização, quando não retorno à Idade Média, sendo que, nesta angústia toda, apetece baralhar a mão e jogar as cartas de novo. As marcadas, tais como a conhecemos, sejam incineradas.
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Estou mesmo perdidamente desolado com a civilização. Nas ilhas, todos são especialistas em generalidades e, no meio do caos, Cabo Verde aparece no mapa quase a caminho do Brasil. Creio que é para que afastar do continente africano, sonho da elite burra das ilhas. Mas pode apenas ser efeito do vírus, que ainda não se inferir até onde vai a morbilidade mental desta peste. O arquipélago, sendo uma espécie de porta-aviões, para o pensar geoestratégico, pode virar uma jangada de pedra e navegar por aí, em marinhagens e mareações infindas. Afinal, os pescadores perdidos, vez por outra, dão à costa nas Terras de Vera Cruz, sucedidos que talvez tenham inspirado aos missionários do luso-tropicalismo. Quiçá seja do Covid-19 este não dizer coisa com coisa…
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Agora, deu-me a pensar que, de entre escribas, escrivães e escritores, raros são os momentos em que as duas missões se abraçam em simbiose. Um desses momentos terá sido o de Pêro Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, a dar conta em Carta ao El Rei Dom Manuel da terra que nessa “navegação se achou” e que viria a ser chamada Brasil. Este documento, hoje inscrito no Programa Memória do Mundo da UNESCO, epistola em modo crónica, faz pensar o quanto o cronista precisa transpor os seus estados de alma e se deslumbrar, pois tudo é desassombradamente arte, “de suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência, que nisso não havia vergonha nenhuma”.