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Cabo Verde: Recessão Económica, “Helicopter Money” e Plano de Recuperação

Por: João Serra

Recessão Económica

Segundo alguns especialistas, a pandemia de Covid-19 tem um potencial recessivo só comparável ao episódio da Grande Crise de 1929.

Na verdade, vem-se assistindo a uma recessão à escala planetária, com uma contração simultânea do consumo e da produção.

No entanto, diferentemente da situação ocorrida em 1929, a crise provocada pela pandemia de Covid-19 é peculiar, na medida em que sujeita o processo de produção de bens e serviços a enormes restrições, devido ao elevado risco de contágio do novo coronavírus provocador da doença de Covid-19. Pelo que, não será possível sair da crise económica sem antes resolver a crise sanitária.

Para o economista norte-americano Paul Krugman, Prémio Nobel da Economia em 2008, a crise provocada pela pandemia de Covid-19 tem um misto de recessão económica e de desastre natural. Assim sendo, a resposta dos governos ao problema deve ter em conta as características dessa crise, não devendo cingir-se a estímulos e apoios às empresas. “Apenas parte daquilo a que estamos a assistir é uma recessão convencional, que pode ser mitigada pela política monetária e orçamental. O resto é mais uma espécie de desastre natural, em que o papel do governo é ajudar as famílias a evitar as dificuldades económicas, não pô-las a trabalhar”, comentou o economista na sua conta pessoal no Twitter.

Em outras mensagens, também no Twitter, Krugman reconhece que a pandemia de Covid-19 trouxe um choque simultâneo sobre os lados da oferta e da procura, estando a maior parte do impacto aparentemente do lado da procura. Todavia, uma parte substancial da destruição de emprego é imputável ao choque do lado da oferta.

Krugman é também da opinião que não se deve tentar compensar o choque na oferta, uma vez que resulta do facto de as empresas terem trabalhadores doentes e outros que estão em casa por causa da quarentena. “O que devemos tentar evitar são as perdas adicionais de empregos motivadas pela quebra da procura”, defende o economista.

Prevê-se que Cabo Verde vá passar por uma “recessão grande” e graves desequilíbrios macroeconómicos este ano em resultado da pandemia de Covid-19, restando saber qual será a sua duração, dimensão e como será a recuperação económica.

A última projeção conhecida é da Agência de notação financeira Fitch Ratings, no relatório publicado a 12 de maio corrente. Segundo a Fitch Ratings, uma forte contração na atividade económica é inevitável, por causa do impacto da pandemia de Covid-19 na aviação e nos padrões de turismo, já que o turismo representa 23% da economia. Por isso prevê uma queda de 14% no crescimento económico, num contexto em que a procura externa estanca e o consumo privado é constrangido pelas restrições à movimentação.

No documento ora divulgado, a Fitch Ratings desceu o “rating” de Cabo Verde para B-, prevendo, ainda, a subida da dívida pública para 154% do PIB e o alargamento do défice das contas públicas para 10,2% do PIB este ano, devido ao impacto da pandemia na economia, nas receitas fiscais e no financiamento das respostas do Governo à pandemia.

Já para 2021, a Fitch Ratings prevê uma forte recuperação, antevendo um crescimento do PIB na ordem dos 8,5%, que depois abrandará para uma média de 5% nos anos seguintes, apoiado pela recuperação no turismo global e nos investimentos diretos estrangeiros nos sectores da aviação e do turismo.

No entanto, tudo isso está rodeado de incerteza, na medida em que ainda não é possível saber qual será a duração da pandemia, bem como da própria recessão. Também, ainda não se sabe qual vai ser a forma de recuperação, se vai ser em ‘U’, com um período maior de contração económica, ou em ‘V’, com uma recuperação rápida depois de uma queda abrupta.

Para muitos economistas, o cenário atual sugere que não se pode esperar que a recuperação económica tenha uma fase ascendente tão rápida. É bem provável que se tenha uma recuperação mais lenta, isto é, será menos vertiginosa na subida do que fora na descida. Além disso, a recuperação económica demorará muito mais tempo a chegar aos níveis antes do início da pandemia de Covid-19.

As características da atual crise obrigam-nos a ser muito cautelosos nas previsões que fazemos. O tempo de confinamento, paragem e restrições será uma variável determinante para avaliar a dimensão e profundidade da recessão. Ou seja, em função da duração da interrupção e restrição da atividade económica, teremos um maior ou menor efeito na destruição da capacidade produtiva. Do mesmo modo, em função do tempo em que os trabalhadores permanecerem inativos, o capital humano sofrerá uma maior ou menor depreciação.

Medidas de Apoio e “Helicopter Money” (“Dinheiro de Helicóptero”)

Helicopter Money

Face à crise decorrente da pandemia provocada pelo novo coronavírus, vários países vêm tentando mitigar o seu impacto económico e social negativo com uma vasta panóplia de medidas, orçamentais, fiscais, monetárias e de auxílio social direto.

Há países com mecanismos de apoio aos salários (“lay-off”) muito generosos e outros com soluções do tipo Rendimento Básico Incondicional em tempos de pandemia, que, na prática, significa dar dinheiro aos cidadãos sem quaisquer condições e nem necessidade de trabalhar para o obter. 

Foram ainda tomadas medidas dessa natureza mesmo por países que são contra esses tipos de conceitos, embora com condições, na medida em que essas medidas se centram nas pessoas com maiores dificuldades e durante um determinado período de tempo. 

Outrossim, abriu-se, em muitos países, a discussão para um novo contrato social que possa ter algumas soluções acima referidas.

Em Cabo Verde, o Governo tomou um conjunto de medidas de natureza fiscal, parafiscal, de apoio a rendimentos de trabalho, de auxílio social, bem como de estímulo para o acesso ao crédito bancário por parte das empresas. De um modo geral, as medidas anunciadas e em implementação foram consideradas ajustadas ao momento em que vivemos. Também nos parece bem que as medidas adotadas pelo Governo de estímulo à atividade empresarial se tenham começado pelas linhas de crédito com garantias públicas e taxas de juro controladas e não com empréstimos a fundo perdido, caso contrário as empresas deixariam de ter o estímulo para se adaptarem, constituindo-se num “moral hazard”.

O Banco de Cabo Verde (BCV), por sua vez, vem assegurando que as instituições de crédito disponham de condições e incentivos para financiarem, em condições favoráveis, as empresas e as famílias, mesmo num contexto desafiante como o que resulta da pandemia de Covid-19. Para o efeito, colocou à disposição dos bancos comerciais liquidez em larga escala e com prazos de vencimento relativamente longos, para além de medidas de alívio de exigências prudenciais. 

As medidas e os estímulos, do Governo e do Banco Central, estão a funcionar e estão, gradualmente, a chegar às famílias e à economia real. Contudo, pede-se tempo para que produzam os efeitos desejados.

A crise pandémica trouxe novamente à mesa o debate sobre o “Helicopter Money” (“Dinheiro de Helicóptero”), um sistema de injeções de dinheiro diretas no bolso dos consumidores para que gastem rapidamente e, desse modo, apoiem a recuperação económica.

“Uma vez findo o confinamento, quando deixar de haver apoio do Estado, particularmente no pagamento dos salários, colocar-se-á, muito provavelmente, a questão de redução dos empregos a partir do momento em que os empregadores tenham de pagar 100% do salário.”

Vários países no mundo já estão a implementar este sistema não convencional para sair da crise ou para animar a economia. É o caso, por exemplo, dos Estados Unidos, que prevê no seu plano de resgate um cheque de 3.000 dólares para as famílias com dois filhos, de Hong Kong, que paga mais de mil euros aos seus habitantes, ou de Macau, que dá cartões com dinheiro a todos os residentes na cidade.

A expressão “Helicopter Money” foi criada pelo economista americano Milton Friedman, da Escola de Chicago, considerado um dos pais do neoliberalismo e prémio Nobel da Economia em 1976. Foi empregue, pela primeira vez, numa conferência no final de 1967. Serviu para exemplificar o caráter de urgência relativo a situações que exigem a rápida recomposição dos rendimentos das famílias e das empresas, num contexto em que o manancial de ferramentas da política monetária tradicional dos bancos centrais, designadamente taxas de juros de referência, base monetária e depósitos obrigatórios, não é capaz de estimular a reativação da economia na intensidade e ritmo desejáveis e pretendidos. Como explicou Friedman no seu texto “The Optimum Quantity of Money”, num contexto de armadilha de liquidez, só um enorme fluxo de dinheiro atirado diretamente nas mãos de quem mais precisa pode impedir a estagnação ou o colapso.

A imagem do helicóptero a sobrevoar uma região e, de repente, a começar a atirar da janela uma chuva de dinheiro pelas ruas foi dada ao mundo por Friedman, em 1969. Apesar de assemelhar-se a uma cena digna de uma produção cinematográfica, sem conexão com a realidade, a imagem tem subjacente um conceito.

De forma muito simples, o “Helicopter Money” consiste no seguinte: Como a política monetária nem sempre é eficaz e a orçamental tampouco, porque existem muitos intermediários, é mais eficaz entregar dinheiro, diretamente, ao consumidor, dando-lhe uma quantia global ou mensal. Ao comprar bens com esse dinheiro, o consumidor terá, teoricamente, um efeito mais rápido sobre a economia e, em consequência, sobre a recuperação económica.

Assim, após a disrupção brutal da atividade económica devido ao novo coronavírus, para que a recuperação seja o mais rápida possível, muito países e economistas consideram que talvez seja melhor recorrer à política do “Dinheiro de Helicóptero.” No entanto, a medida é muito polémica. Os economistas não estão de acordo entre si sobre os seus resultados e alguns duvidam de que tenha um impacto determinante no consumo, designadamente pela seguinte razão: caso não haja um prazo para o consumidor gastar esse dinheiro, existe o risco de que o economize, fazendo com que a medida não tenha o efeito pretendido. Por outro, existem dificuldades técnicas para que um banco central pague diretamente aos consumidores. Ademais, a situação é diferente entre os países, uns possuem muito dinheiro e outros não, para além do caráter pontual da medida.

Dar dinheiro aos cidadãos é uma ideia antiga, exponenciada atualmente pela pandemia. Dar dinheiro é também útil para Cabo Verde, particularmente agora. Mas com a abrangência que atualmente está sendo feito, só poderá ser solução para uns meses, pela inevitável falta de dinheiro e elevado nível da dívida pública. Assim, em Cabo Verde, o “Helicopter Money” tem de revestir necessariamente uma natureza assistencial e não de política económica com um objetivo macroeconómico. Dito doutro modo, por causa da pouca margem orçamental, o Estado, apenas, deve garantir a manutenção de rendimentos na ausência de atividade económica e assegurar os consumos mínimos necessários à subsistência das famílias e das empresas, evitando distúrbios sociais. 

Plano de Recuperação

Uma vez findo o confinamento, quando deixar de haver apoio do Estado, particularmente no pagamento dos salários, colocar-se-á, muito provavelmente, a questão de redução dos empregos a partir do momento em que os empregadores tenham de pagar 100% do salário. Estará certamente em risco a perda de milhares postos de trabalho e o subsequente aumento do desemprego, com todas as consequências daí advenientes. Por esta e outras razões, torna-se, assim, imperativo uma rápida recuperação da economia. 

Neste quadro, a prioridade do Governo é evitar que as pessoas contraiam a doença (Covid-19) e curar as que a contraírem, ainda que para o efeito tenha que fazer avultados investimentos no setor da saúde.

Com a confiança fortemente abalada pela crise, precisa-se de um forte impulso à confiança dos agentes económicos, de modo a acreditarem que é possível e vai haver a retoma económica. Para o efeito, é fundamental que as autoridades públicas atuem de uma forma que faça com que os agentes económicos criem expetativas positivas e compreendam que a situação está sob controlo, apesar de vivermos tempos difíceis. Para tal, é imprescindível que, em primeiro lugar, seja restabelecida a confiança na segurança sanitária, com medidas credíveis e eficazes.

Para o restabelecimento da confiança na recuperação económica, é necessária a existência de um ousado Plano de Recuperação, orientado pelo lema sugerido pelas Nações Unidas “build back better” (“reconstruir de uma forma melhor”). Precisamos de medidas fortes, assertivas e inovadoras para impulsionarmos a atividade económica. Como escreveu o Eurodeputado Pedro Marques, “estes não são tempos normais, por isso é preciso pensar fora da caixa. Correr riscos, sim. Ir onde nunca fomos, sim.”

A atual crise de saúde atinge todos os países de forma, praticamente, simétrica. No entanto, na fase de recuperação económica, nem todos eles terão as mesmas condições para ajudar, em resultado dos diferentes níveis de dívida pública que apresentam.

Cabo Verde tem, à partida, um problema de dívida pública e este problema poderá dificultar o combate à crise económica decorrente da Covid-19. Por isso, uma importante iniciativa a ser tomada no âmbito do Plano de Recuperação, em estreita articulação e concertação com outros países em situação similar e parceiros internacionais interessados, é uma forte ofensiva diplomática para o alívio ou perdão da dívida externa, que representa cerca de 70% da dívida total do país.

Contudo, independentemente dos constrangimentos resultantes da elevada dívida pública, o Estado terá de atuar, de forma ativa, no esforço de relançamento da economia nacional. Nesta segunda fase, o Estado, necessariamente, vai ter que entrar também enquanto agente da procura, no quadro da implementação de um programa tradicional keynesiano por via do investimento público que cria oportunidades para a geração de iniciativas privadas e novos postos de trabalho, no contexto de um novo paradigma económico. 

O limite dessa intervenção pública deverá ser a preservação do regime cambial de “peg” fixo do escudo face ao euro existente no país, que deverá ser salvaguardado.

O esforço público a ser feito, a começar no reforço da capacidade de resposta do setor público da saúde, deverá contar com forte suporte dos parceiros de desenvolvimento de Cabo Verde. O país precisa urgentemente de doações ou empréstimos sem juros para financiar os investimentos que, de outra forma, talvez não consiga suportar. 

Deverá haver um plano para apoiar todos os operadores económicos (incluindo empresas e famílias que operam no setor informal) no processo de retoma da atividade. É importante que os mais atingidos pelo impacto da pandemia não vão à falência nem percam o seu sustento. Particularmente, as famílias que mantêm pequenos negócios ligados ao turismo e os trabalhadores de empresas fechadas por causa da pandemia precisam de especial apoio para superar a crise.

Deve-se, ainda, estudar a viabilidade e o “trade-off” do alívio da carga fiscal sobre as empresas e setores mais vulneráveis, como transportes, turismo e hotelaria, bem assim de ajuda temporária, direcionada e oportuna para apoiar o fluxo de caixa das empresas e pessoas mais afetadas, até que a atividade se estabilize.

Também deverão, na medida das possibilidades de recursos financeiros, ser reforçados os chamados estabilizadores automáticos – a redução dos impostos e o aumento dos subsídios de desemprego e de outros benefícios para os que tiveram uma diminuição nos seus rendimentos ou ficaram sem emprego.

Paralelamente, o BCV, enquanto banco central, no âmbito das medidas de política monetária, convencionais e não convencionais, deverá fazer tudo o que for necessário no quadro do seu mandato para evitar que a crise causada por esta emergência sanitária traga restrições ao financiamento à economia como um todo.

A urgência com a recuperação económica implica que o Plano de Recuperação contenha um conjunto de medidas de curto e médio prazo. No entanto, tudo o que os estímulos podem fazer, nesse período de tempo, é “comprar tempo” para que o Estado de Cabo Verde possa, finalmente, avançar com um conjunto de reformas estruturais que removam os obstáculos existentes e aumentem a produtividade e a flexibilidade da economia nacional.

Praia, 18 de maio de 2020

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