Por: Jorge Querido
Encontrava-me em Lisboa, ainda estudante, vindo de Coimbra, quando Felisberto Vieira Lopes chegou de Cabo Verde para frequentar a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
Apesar de não termos sido colegas ou contemporâneos, nem na escola primária, nem no único Liceu que na altura havia no nosso arquipélago, desde a infância que muitos fatores se conjugaram para que as nossas vidas se cruzassem e seguissem, em grande parte, trajetórias parecidas: nascemos na mesma vila e no mesmo ano; crescemos vivenciando as mesmas experiências que aos poucos foram enriquecendo as nossas mentes, modelando o nosso carácter e contribuindo para a construção e fortalecimento da nossa própria identidade; assistimos, sem o entender em toda a sua extensão, ao quadro de horrores e de desumanidade que foi a fome de 47, facto que teria marcado profundamente e para sempre as nossas mentes de crianças e que teria feito com que, bem cedo, nos tivéssemos dado conta de que estávamos naturalmente posicionados do mesmo lado da barricada, na resistência contra a dominação colonial.
O nosso reencontro em Lisboa, por volta de 1959, já homens feitos, foi como que o retomar de um percurso comum.
Nessa altura, a Secção do PAIGC em Portugal ensaiava os seus primeiros passos e a Casa dos Estudantes do Império, onde ele desde logo se integrou, passou a ser, como ele próprio dizia, “o espaço para a africanização das nossas mentes alienadas”.
Chegámos a viver, durante algum tempo, no mesmo quarto. Tínhamos longas conversas e quase sempre sobre o futuro de Cabo Verde e da África. Admirava a sua capacidade de trabalho, a sua inteligência, a sua enorme sensibilidade e a “pressa” que manifestava em terminar o curso para se poder dedicar inteiramente àquilo para que se considerava destinado. Por várias vezes, durante as nossas conversas, citou-me, em inglês, dois versos do poeta Tennyson que Kwame Nkrumah (um dos seus grandes ídolos da altura) citara na carta dirigida, em 1934, ao Reitor da Universidade de Lincoln, nos Estados Unidos, pedindo a sua admissão: “So many worlds, so much to do/So little done, such things to be” (Tantos mundos, tanto por fazer/Tão pouca coisa já feita, tantas coisas por criar).
Nessa altura, o Felisberto já tinha um grande número de poemas escritos, todos eles em crioulo. Creio até que alguns deles teriam sido trazidos de Cabo Verde. Li, com enorme entusiasmo, os que ele me ia mostrando e sugeri que, no âmbito da nossa ação político-partidária, procurássemos encontrar uma forma de os publicar, não só pela sua grande qualidade poética como ainda e sobretudo pela sua extraordinária força mobilizadora. Já estava criado, por ele, o pseudónimo que iria ser utilizado: KAOBERDIANO DAMBARÁ. Só faltava convencê-lo a aceitar publicar os poemas. O que, diga-se, não foi tarefa fácil. É que ele era um crítico rigoroso e severo da sua própria criação. A luz verde só chegou após um cuidadoso trabalho de seleção, tendo ele próprio desenhado a capa e escolhido o título para o livro.
Não posso precisar a data em que um exemplar dactilografado do livro NOTI foi enviado à Direção Superior do PAIGC, em Conackry, para publicação. Só posso dizer que, quando isso aconteceu, o Felisberto já se encontrava em São Tomé e Príncipe a cumprir o serviço militar obrigatório, como alferes miliciano, o que teria acontecido, se a memória não me falha, em 1961ou 1962.
A preparação do texto foi feita em duas reuniões restritas realizadas na biblioteca da Casa dos Estudantes do Império, em que, além de mim, participaram Francisco Moreira Correia, Arlindo Vicente Silva e Haideia Avelino Pires (que foi quem, baseada em dados científicos da área da linguística, levantou algumas reservas à ortografia por nós “revolucionariamente criada” e utilizada).
O livro foi recebido de forma entusiástica por Amílcar Cabral que, em carta a nós dirigida, realçou o seu valor e a contribuição importante que seguramente iria dar ao avanço da luta de libertação.
A incorporação obrigatória do Felisberto no exército português só aconteceu porque na altura vigorava uma lei do serviço militar que estabelecia que qualquer estudante universitário, do sexo masculino, que perdesse um ano só poderia ter mais um ano de “adiamento” se tivesse a possibilidade de acabar o curso antes de completar os 25 anos de idade.
Assim, ao perder, por doença, o segundo ano do curso, o Felisberto, que já tinha mais de 22 anos, sabia muito bem que a convocação para o serviço militar obrigatório era inevitável.
Face a isso, começámos de imediato a pensar num plano de fuga de Portugal. E o plano adotado, que foi sugerido pelo próprio Felisberto, consistia em aproveitar a viagem a França de um dos autocarros de uma agência de viagens que ia levar adeptos do Benfica que iam apoiar o seu clube.
E lá seguiu o Felisberto trajado à Benfica e agitando freneticamente a bandeirinha de um clube de futebol de que ele só conhecia o nome do Eusébio.
Infelizmente, o plano não resultou. A PIDE deteve-o na fronteira e mandou-o de volta para Lisboa. É que o nome dele já constava da extensa lista dos que não podiam sair de Portugal.
Foi pouco depois incorporado no exército e, apesar de ter apresentado documentos comprovativos da sua situação de convalescente, foi enviado para a base de Lamego, onde eram treinados os comandos e fuzileiros. Felizmente, ele não sucumbiu, como seria por certo o desejo das autoridades fascistas, e alguns meses depois era mobilizado para São Tomé e Príncipe de onde regressou, poucos anos depois, são e salvo.
Retomados os seus estudos, concluiu o curso de Direito, tendo regressado a Cabo Verde nos finais da década de 60, após um curto período de exercício da advocacia em Portugal.
Durante os últimos anos da colonização portuguesa, o advogado, Dr. Vieira Lopes, destacou-se pelo seu envolvimento empenhado e militante na defesa dos presos políticos vítimas das arbitrariedades do poder colonial, sem nada receber em troca.
Após a queda do fascismo e a independência de Cabo Verde, Vieira Lopes fez várias incursões no campo da política, mas sem nunca ter criado uma força política própria ou aderido a qualquer movimento ou partido já existente.
Sempre igual a ele próprio, de uma constância impressionante, preservou sempre a sua total independência de espírito, tendo-se tornado, por vezes, extremamente incómodo ao lançar severas críticas em quase todas as direções.
Profundo conhecedor do Direito, Felisberto Vieira Lopes preocupava-se mais com a Justiça do que com a simples aplicação das leis. Para ele, estas, as leis, não podem ser consideradas como contendo em si moralidade suficiente.
Creio que os últimos anos dele foram inteiramente dedicados à Justiça, no seu verdadeiro significado. Só lamento profundamente não ter ele permitido que se tornasse conhecido o seu enorme talento no domínio da literatura e das artes.
O nosso relacionamento, que se manteve durante uma vida, foi sempre numa base de respeito mútuo, mesmo quando não estávamos de acordo. Posso, porém, afirmar que em tudo o que era verdadeiramente essencial e importante, a nossa sintonia foi quase perfeita.
Adeus Felisberto, meu amigo. Descansa em paz.
Publicado no A NAÇÃO, nº 658, de 09 de Abril de 2020