Por: Milton J. Monteiro*
Para João, pecado é “transgressão da lei” (I Jo 3:4). E isso alinha com o jusnaturalismo paulino (Rm 2:14-15), que prega sacralidade e confirmação da lei (Rm. 3:21): “eu não saberia o que é pecado, a não ser por meio da lei. De fato, a lei é santa, e o mandamento é santo, justo e bom” (Rm. 7:7,12). Analogamente, vindo do Estado de Direito Democrático, a Constituição (CRCV) não pode ser abolida e nem pisada, pois é a lei mãe. Sendo assim, eis o primeiro pecado capital do ensino pró-católico:
1. Inconstitucionalidade.
A CRCV consagra no art. 49º que “as igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são independentes e livres na sua organização e exercício das suas atividades próprias […]”. Quanto à educação, é indubitável que a atividade sui generis do altar é ensino catequético e transmissão de seus valores, já a do Estado é qualquer outra que não seja isso. Daí, o princípio de separação, neutralidade e também o da aconfessionalidade pregada no art. 50º: “d) A PROIBIÇÃO DE ENSINO PÚBLICO CONFESSIONAL”.
2. Favoritismo.
Embebedada na reminiscência do regalismo colonial, a realidade de fato aponta que transformar o ensino religioso em confessional foi num primeiro momento privilegiar a religião majoritária, que tem interesse na manutenção da sua hegemonia. Segundo vem constatando o governo Norte-americano, com relatórios anuais sobre liberdade religiosa: “O governo continuou a conceder privilégios à Igreja Católica que outros grupos não receberam, incluindo em instituições de ensino, em instalações governamentais e acesso à mídia”(Cabo Verde 2018 International Religious Freedom Report). Pew Research Center corrobora ao dizer que “em 2014, a concordata entre a nação insular de Cabo Verde e o Vaticano concedeu privilégios à Igreja Católica que não foram disponíveis para outros grupos”. Infelizmente, é essa pactuação repudiável que direcionou a configuração do ensino religioso no país. O dirigismo estatal e supervalorização dos valores católicos permeia o discurso dos políticos e até de acadêmicos.
Contrariando o art. 48º, programou-se esse ensino segundo diretrizes religiosas, em nome da majoritariedade, esquecendo das minorias. Isso é perceptível quando se exigiu o mínimo de 30 alunos para que certa confissão requeira sua disciplina. Se a liberdade religiosa é um direito fundamental, e a disciplina está sendo colocada como tal, então o acesso não deveria ser garantido a todos? Outra: pensa-se nos cidadãos que compõe o segundo maior grupo no país? Os sem religião, com 10,8%. Não se deveria levar em conta também o sentimento deles?
3. Proselitismo.
Legalmente pode ser catecismo e até moral que não necessariamente vai ao encontro de políticas públicas como as associadas aos métodos contraceptivos, aborto e questões de gênero. A Concordata impõe: “é da competência exclusiva da autoridade eclesiástica a definição do conteúdo do ensino da religião e moral católicas”. Já a Lei n.o 64/VIII/2014 estabelece: “o ensino de religião e moral nas escolas públicas deve respeitar o pluralismo religioso da sociedade cabo-verdiana […] e não incluir qualquer forma de proselitismo”. Ora, como respeitar o pluralismo e não ter proselitismo se na prática é impossível ministrar ensino religioso confessional sem ser proselitista?
Além dos problemas que envolvem avaliação e finalidade pedagógica, tudo isso é um campo minado para terna criança que, num mesmo espaço, poderá receber informações divergentes, os quais ela não tem condições suficientes de avaliar. Portanto, o ensino religioso em Cabo Verde é mais uma priorização da tradição religiosa hegemônica do que a implementação de fato de uma disciplina sobre religião na matriz curricular. Quando se fala em catequese desagradam, mas o objetivo fim é a moralização, manutenção e aquisição de fieis e não a cientificidade do fenômeno religioso.
4. Diferenciação
Qualquer professor em Cabo Verde é um profissional e um burocrata, menos o dessa disciplina, pois este é admitido na qualidade de representante da igreja também. O que é inadmissível. Como que a investidura e posse de um funcionário público depende do ato de vontade de uma confissão religiosa? Para lá de ferir o princípio de separação, é autoridade eclesiástica suplantando o poder estatal, pois segundo é exigido pela Concordata: “em nenhum caso, o ensino da religião moral católicas será ministrado por quem não seja considerado idôneo pela autoridade eclesiástica competente. […] São nomeados ou contratados, transferidos e excluídos do exercício da docência da disciplina pelo Estado, de acordo com a autoridade eclesiástica competente”. Ou seja, esse professor, que tem processo seletivo diferenciado, pode perder o cargo a qualquer momento, basta perder apoio e aval da igreja e ter credenciamento cancelado.
Pergunta-se ao Ministério: qual é o perfil epistemológico e pedagógico dele? Deveria ser neutro e cientista da religião? Pelo menos, não deveria ter licenciatura em área específica e pós-graduação em Ciência da Religião? A resposta é que com a pressa, apenas deu tempo para uma formação teológica básica na igreja, poucos dias antes do início do ano letivo, demostrando que o mais importante é conseguir espaço, lecionar e viver segundo a moral proposta.
5. Improbidade.
É esse o cheiro, no sentido de que há lesão aos cofres públicos. Por que, em nome da parceria (art. 49º), não se falou em lecionar essa disciplina voluntariamente? Como acontece na assistência militar, a igreja deveria dispor de recursos próprios para patrocinar o seu ensino e não usurpar verbas públicas. Além de apropriação do espaço público, onde deveria falar em nome de/e para todos, inclusive os sem religião, esse ensino particular, facultativo e que não compõe o conteúdo mínimo do ensino básico, está sendo bancado por um Estado pobre e que mal consegue iniciar um ano letivo sem percalços e constrangimentos de sempre. Resta dúvida se cumpre ao Governo o dever de custear esse ensino e à sua promoção direta. O certo é que o país não tem condições técnicas e financeiras para priorizar e expandir o ensino católico.
6. Separatismo.
Separar alunos, especialmente os do ensino básico, em turmas de religiões diferentes, mesmo que pontualmente, pode ser um estímulo ao estereótipo, preconceito e intolerância. O proselitismo na esfera pública pode fortalecer a intolerância religiosa existente no país e que num passado recente foi mais abrasador.
Há também um problema a ser resolvido: o que será dos alunos que não optarem por essa disciplina? Ela é opcional, mas “não alternativa a qualquer área ou disciplina”. Isto é, tem horário próprio, não pode ser substituída por outra, mesmo que sobrecarregue os que fazem a Educação para a Cidadania. Esta sim, deveria pregar a educação moral e cívica do cabo-verdiano, mas está sendo substituídas nas escolas católicas.
7. Eximição.
Pela importância na formação e por dar dentro das portas do Estado, este não deveria ter terceirizado o ensino religioso. Mas, foram priorizados os interesses alheios no lugar das reais necessidades dos alunos – educação para diversidade e respeito às crenças alheias. Confundiu-se ensino cívico e moral com a EMRC, apesar da moral da polis não caber de per si a nenhuma denominação. É obvio que neutralidade absoluta é impossível, mas objetividade é imperativa, até porque a doutrinação não ajuda nem a escola e nem a religião.
*Cabo-verdiano, radicado no Brasil, é membro-fundador do Observatório da Liberdade Religiosa (OLIR Brasi) e Professor-Doutor efetivado na Universidade Federal do Tocantins
Publicada na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 635, de 31 de Outubro de 2019