Por: Filinto Elísio
Nossa Senhora da Graça
Por mais estradas que perca, errante pelo mundo, a cidade da Praia é o meu único porto seguro. Não que eu viva de ilusões bairristas, como aqueles que olham para sua beira e se acham no paraíso, nem que ache tudo divino e maravilhoso, sem assaltos e demais sobressaltos. A minha cidade (já que literalmente não tenho outra) cresceu sem rei nem roque, arrebentou-se pelas costuras e transbordou-se das margens. Tornou-se sem margens, baía ocupada e agora gentrificada. Alguém olhará para o novo postal ou para o vídeo tirado de um drone, e a topografia não se desmerece. Todavia, um zoom mais direto, uma abordagem mais pessoal e um olhar mais atento, há de ver o contraponto ao crescer que nem um Frankenstein e a inequação de uma bissetriz de ângulos incongruentes. E a cidade, para além do asfalto, do semáforo, do condomínio e da rotunda, é gente sofrida, pobre e marginalizada; é gente dos interiores e das ilhas, da sub-região africana e da franja mais pobre da distante China; é indigente da pós escravatura e neo-escravatura; é contingente ainda do funcionalismo baço pós colonial e da elite neocolonial. Para além do ginásio público, do edifício envidraçado, do parquímetro no Platô e da gala musical, a cidade ainda é gente que não aprendeu ainda a entoar “Liberdade”, de Sérgio Godinho, a rezar “Só há liberdade a sério quando houver/A paz, o pão/ habitação/saúde, educação”. A minha cidade mantém-se igual e repetível aos poemas de António Nunes, Arménio Vieira e Jorge Carlos Fonseca; cidade repetente, surrealista e ansiosa que se presta ao desfrute de alguns que, despeitados, a tentam humilhar e subalternizar. Por mais estradas que perca, não terei outro regresso que não este à cidade da Praia. O meu inferno do riso, com causa e consequência. Da Freguesia de Nossa Senhora da Graça, como a que vai na minha Certidão de Nascimento.
Dia da Juventude
Foi aí há dias o Dia da Juventude. Era uma roda de conversa. Malta jovem e cheia de genica. Na flor da idade. Esperança a transbordar, ti lança. Todavia, só metade sabia quem foi Amílcar Cabral, a mesma metade que já ouvira falar de Baltasar Lopes da Silva. De Eugénio Tavares sabiam o “si ka badu, ka ta biradu” e de Cesária Évora, uns cantavam aquela cena de “Sodad, sodad, sodad, des nha terra Saniclau” e outros mandavam o refrão de “Angola, Angola, ó k pove sabe”. Conheciam outras coisas, tinham outras experiências, quiçá manejam o youtube e, tal como um hashtagger de triste figura, twitavam-nos o juízo de manhã à noite. Não curtiam poesia, nem mesmo “A Invenção do Amor”, de Daniel Filipe e alguns tatuavam escritos num português apócrifa, pior mesmo que a sessão parlamentar. Disseste não é possível que estes jovens salvem o país com esta onda de sigui sabura, nem que cheguem às universidades (nacionais e estrangeiras) sem conhecer Luís Loff de Vasconcelos, Abílio Macedo, António Pedro Costa, Juvenal Cabral, Simão de Barros, António Carreira, Abílio Duarte, José Leitão da Graça, Manuel Duarte, João Vário, Corsino Fortes e Mário Fonseca entre muitos outros. E não lhes digo sobre a morte de Samir Amin, pois alguém há de perguntar, com este nosso racismo que não se justifica só pela ignorância, se foi algum mandjaku. Entrementes, estes jovens são mais interessantes que ser progenitores, mil vezes mais desempoeirados, só que não basta. Entrementes (e se calhar por andar tudo ligado), a nave, tomada de redundantes loucos, navega desnorteada e à mercê da conjugação astral. Sem bússola, nem gps.
Duas notas sobre a cidade
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