Por: Arsenio Pina
Venho-me debatendo, não com especulações viciosas, mas lendo e reflectindo sobre os assuntos do título. Vou pegar de algumas reflexões do historiador, escritor e divulgador dotado judeu, Yuval Noah Harari, para tentar explicar a estupidez – a estupidez é um mal de nascença, genético ou congénito – do centralismo político, seja ele democrático (uma impossibilidade, visto quem optar por centralismo não escutar nem ouvir outrem), ou totalitário, o que parece ser a sua essência e vocação. Dizia o Mestre Baltasar, que “quem não sabe (por ignorância) deve perguntar ou estudar”, para aprender; quem é estúpido persiste na sua estupidez mesmo informando-se e estudando. A estupidez humana é uma das forças mais importantes da História, mas costumamos desvalorizá-la, não havendo deus nem lei da natureza que nos proteja dela.
No final do século XX, as democracias tiveram um desempenho melhor do que as ditaduras por serem melhores a processar dados. E porquê? Porque dispersaram o poder e a informação, tomando decisões com o contributo de várias pessoas e instituições, ao passo que as ditaduras (da União Soviética e outras ditaduras aparentadas) concentraram a informação e o poder num só local, isto é, centralizaram o poder. Devido à tecnologia e complexidade do século XX, e cada vez mais no século XXI, não era, nem é eficiente concentrar muita informação e muito poder num lugar apenas. Ninguém tinha, nem tem capacidade para processar toda a informação com velocidade suficiente e tomar decisões certas. Isso aconteceu no fascismo, no nazismo, na União Soviética e vem acontecendo entre nós em Cabo Verde, com consequências nefastas para o país em geral. É facto que o poder em excesso distorce, inevitavelmente, a verdade porque funciona como um buraco negro que distorce tudo à sua volta.
Vejamos alguns aspectos do nacionalismo, da sua faceta benigna e da maligna, para melhor entendermos a necessidade de não concentrar o poder, isto é, a necessidade de descentralizar o poder, delegando noutras pessoas e instituições periféricas parte dos poderes delegáveis, os que o poder central geralmente tem dificuldades ou não consegue, nem tem vocação, para gerir com eficiência e em tempo útil.
É verdade que os humanos são animais sociais, com a noção de lealdade de grupo impressa nos genes; de qualquer modo, durante milhões de anos, mais do que viverem em grandes estados-nação, os humanos, ou seus percursores, viveram em pequenas comunidades próximas.
O Homo sapiens acabou por aprender a utilizar a cultura, a acumulação de experiências úteis, como base de cooperação em larga escala, o que é a chave para o nosso sucesso enquanto espécie; mas as culturas são flexíveis. Assim, ao contrário das abelhas e dos chimpanzés, os sapiens conseguem organizar-se de muitas maneiras diferentes, adaptadas às circunstâncias, sempre em mudança. Os estados-nação são apenas uma das opções existentes no menu dos sapiens, como tribos, cidades-estado, igrejas e corporações, e, no futuro, será possível uma espécie de união global.
Apesar das vantagens da reunião de tribos numa nação, isso não foi fácil, nem na Antiguidade, nem nos dias de hoje. O nacionalismo tem duas componentes em si mesmo, uma delas, fácil, e a outra, muito difícil. A parte fácil é preferir pessoas-como-nós a estranhos. Os humanos fazem isso há milhões de anos. A xenofobia faz parte do nosso ADN. A componente difícil do nacionalismo é, por vezes, preferir estranhos aos nossos amigos e familiares. Os países liberais pacíficos e prósperos como a Suécia, a Alemanha e a Suíça desfrutam todos de um sentimento de nacionalismo saudável. A lista de países sem laços nacionais robustos inclui o Afeganistão, a Somália, o Congo (ex-Zaire) e a maioria dos Estados falhados.
Os badios e sampadjudos sempre se entenderam mais ou menos bem, embora permutassem piadas inofensivas, jocosas, sobre o crioulo, alguns costumes e a tostadura da pele, mas somos da mesma família e povo. O chamado melting pot (miscigenação) que se processou em Cabo Verde em consequência das secas periódicas e da fome que lhes seguia, com minguados recursos naturais, impedia a possibilidade de exploração agrícola e outra, à semelhança das outras colónias, fez com que Portugal não se empenhasse em investir e desenvolver Cabo Verde, deixando-o ao Deus-dará, depois de ter ensaiado a adaptação de plantas e animais às ilhas numa espécie de estação experimental agropecuária; também trabalho louvável através da Igreja Católica e seus missionários que ensinaram os escravos a ler e a escrever para poderem transmitir-lhes as mensagens evangélicas. Deixados à sua triste sina, como a carne é fraca, as escravas, escravos e elementos europeus que incluía um bom contingente de cristãos novos (judeus) que fugiram de Portugal da Inquisição, aproveitados no povoamento, misturaram-se, menosprezando a condição da escravatura, nascendo, assim, o cabo-verdiano. Este foi assim vivendo e ocupando as outras ilhas, sofrendo razias devastadoras nos períodos de seca por fome, emigrando, quando podia, para as sete partidas do mundo, mas sempre regressando à terra natal quando garantia meios que lhe garantissem a sobrevivência em caso de crise e fome. As escolas criadas, primeiro, na Brava, depois, em Santiago, S. Nicolau e S. Vicente, permitiram qualificar patrícios que ocuparam grande parte do funcionalismo das colónias. Não é de admirar que o Padre António Vieira, na sua segunda viagem de Portugal para o Brasil, fazendo escala em Santiago (em 1652) tivesse escrito: […] “Há aqui clérigos e cónegos tão negros como azeviche, mas tão compostos, tão autorizados, tão doutos, tão grandes músicos, tão discretos e bem morigerados, que podem fazer inveja aos que lá vemos nas nossas catedrais”.
Somente depois da independência é que, devido ao centralismo extremado do poder, alguns badios convenceram-se ser mais genuinamente cabo-verdianos do que os das outras ilhas, valorizando, portanto, a faceta ruim do nacionalismo. É pena e condenável que isso aconteça, dado que o cabo-verdiano assumiu, bastante cedo, a sua identidade, sentindo, precocemente, pertencer a uma nação, o que facilitou o enxerto da qualidade de Estado com a independência. Até durante o período das descobertas e colonial, o povoamento das ilhas fez-se com europeus e escravos africanos, portanto, de modo diferente das outras colónias, por as ilhas estarem desertas aquando da descoberta; sendo a população portuguesa dessa época bastante pequena, pouco mais de um milhão, saber pouco a nada de doenças por carências que provocavam grande mortandade nos marinheiros (beri beri, escorbuto e malnutrição), as caravelas portuguesas, ao cabo de algum tempo, passaram a utilizar os chamados soldados e marinheiros-escravos em substituição dos falecidos, na marinha e na defesa das fortalezas e fortificações que se iam constituindo, sendo a ilha de Santiago o local onde os escravos trazidos do continente africano se ladinizavam, aprendiam algumas artes militares e aprendiam o crioulo, que já existia e era mais fácil do que o português, crioulo inventado, segundo o filólogo Derek Bickerton, pelas crianças nascidas em Santiago, que ouviam várias línguas dos respectivos pais, e o português preponderante do colonizador que lhes serviu de base para a invenção do nosso crioulo. O missionário Francisco Xavier – que viria a ser santo – esteve algum tempo em Cabo Verde a aprender o crioulo antes de seguir para a Índia, como veremos em pormenor no livro a ser lançado proximamente, em Cabo Verde, do amigo moçambicano Eng. José Carlos Mucangana Horta.
Bem, toda essa questão da descentralização e regionalização, transformada em riola nacional, é resultado da transformação do patriotismo benigno em nacionalismo chauvinista de alguns patrícios de Santiago que se julgam autenticamente cabo-verdianos, como se nós-outros menos chamuscados, doutras ilhas, fôssemos imigrantes antigos. Será que contra isso nem Deus, nem lei da natureza, nos podem valer?
Parede, Janeiro de 2020
*Pediatra e sócio-honorário da Adeco
Publicado na edição semanal do jornal A NAÇÃO, nº 644, de 02 de Janeiro de 2020